A incrível aventura do Endurance de Shackleton e de Hurley, seu fotógrafo

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Parte da tripulação do Endurance aquece-se frente ao fogo — CLIQUE PARA AMPLIAR

Publicado em 5 de janeiro de 2013 no Sul21

A celebridade do explorador irlandês Ernest Henry Shackleton, nascido em 15 de Fevereiro de 1874 e que morreu em 5 de Janeiro de 1922, é devida à incrível aventura do Endurance, mas também ao fotógrafo australiano Frank Hurley. Foram dele as fotos que imortalizaram a expedição, uma daquelas pioneiras viagens suicidas ao continente antártico, realizadas no início do século XX. Na verdade, o grande herói polar — norte e sul — não foi Shackleton e sim o norueguês Roald Amundsen, mas a documentação do Endurance é muito mais rica, graças a Hurley. Enquanto que as fotos de Amundsen são prosaicas, apresentando homens em fotografias posadas, Shackleton levou um artista entre os 27 tripulantes do barco, como os leitores do Sul21 poderão comprovar. Hurley capta a beleza das paisagens, a vida possível na Antártida e a tragédia.

A edição desta sexta-feira (4) do Guardian informa que um grupo australiano, aproveitando o aniversário de morte de Shackleton, anunciou que irá refazer a clássica viagem que vamos resumir aqui, uma das mais incríveis jornadas de sobrevivência conhecidas.

Sir Ernest Shackleton — CLIQUE PARA AMPLIAR

Assim como Amundsen, Shackleton foi tema de diversos livros que se assemelham às narrativas modernas de Amyr Klink e de alpinistas que arriscam tentativas de chegar ao topo do Everest, por exemplo. São atos aparentemente inúteis e perfeitamente humanos, como ressaltou o montanhista George Mallory (1886-1924). Numa conferência, ao ser questionado sobre o motivo pelo qual desejava tanto escalar o monte Everest, Mallory replicou a um repórter: “Quero porque ele está lá”. A Antártida também estava lá para Shackleton e ele desejava ser o primeiro a chegar ao Polo Sul. Na primeira tentativa, em novembro de 1902, numa expedição comandada por Robert Scott,  alcançaram 82°16 S, o ponto mais austral alcançado pelo homem até então. Doente de escorbuto, Shackleton viu a expedição ser abortada. Motivado com a experiência, organizou sua própria expedição e, em 9 de janeiro de 1909, após muitas dificuldades, alcança o recorde de latitude, 88°23 S, porém é forçado a abandoná-la a apenas 150 km do Polo Sul. O motivo de ter virado as costas à glória foi a segurança de seus homens. Após  percorrerem 3000 km na Antártica, ele regressaram à Inglaterra.

Amundsen: o maior de todos não tinha um fotógrafo à altura

Dois anos depois, em dezembro de 1911, o imbatível Amundsen, seus cães e trenós, alcançaram o Polo Sul. Naquele ano, o norueguês e Robert Falcon Scott protagonizaram uma verdadeira corrida pelos 90 graus: partiram com apenas duas semanas de diferença em outubro de 1911, ambos da plataforma de Ross. Amundsen atingiu o polo em 14 de dezembro, iniciando o retorno no início de janeiro. O grupo de Scott chegou ao mesmo local em 17 de janeiro, encontrando lá a bandeira norueguesa. No caminho de volta, Scott e seus cinco expedicionários morreram de fome e exaustão.

(Parêntese sobre Amundsen: já dissemos que este norueguês liderou a expedição à Antártida (1910-1912) que descobriu o Pólo Sul em dezembro de 1911. Também foi o líder da expedição que chegou pela primeira vez ao Polo Norte em 1926. Como se não bastasse, foi o primeiro a atravessar a Passagem do Noroeste, entre os anos de 1903 e 1906. A Passagem do Noroeste consiste em, de navio, entrar pelo oeste do Alaska, fazendo o contorno pelo norte da América, rente ao Polo Norte, até chegar à Groenlândia).

Já presos na neve, os tripulantes passeiam com os cães — CLIQUE PARA AMPLIAR

Perdida a corrida ao Polo Sul, Shackleton impôs-se um novo desafio: o de atravessar o continente a pé, passando sobre o Polo. Em agosto de 1914, partiu da Inglaterra no Endurance (palavra que significa resistência) com 27 homens. Eles viveriam uma das histórias mais complicadas da exploração polar. O resultado foi mais um fracasso. Após perderem o Endurance, foram resgatados pelo Yelcho, graças à generosidade do comandante chileno Luis Pardo Villalón. Ao voltar à Inglaterra, em 1917, Shackleton e seus homens foram recebidos como heróis.

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Endurance era um navio de madeira que partiu da Inglaterra em 8 de agosto de 1914, menos de uma semana depois do início da Primeira Guerra Mundial. Após passagens pela Argentina e pela ilha de Geórgia do Sul, rumou para a Antártida. Ao chegarem à  Baía de Vahsel, uma grossa camada de gelo formou-se em torno do navio, impedindo-o de ir em frente. Deste modo, a tripulação preparou-se para permanecer presa durante todo o inverno até o verão, quando pretendiam retomar a viagem.

Jogo de futebol nas imediações do Endurance. (CLIQUE PARA AMPLIAR)

Enclausurados no navio, os homens matavam o tempo lendo, cantando e jogando baralho ou xadrez. Também exercitavam-se nas planícies congeladas, brincavam com os cães e jogavam futebol no gelo. Depois, o inverno glacial deixou o Endurance por quase quatro meses na mais completa escuridão.

A pressão exercida pelo gelo nas estruturas do navio assustava. Estalos eram ouvidos por todos. No final de outubro, o gelo esmagou o Endurance como se este fosse um limão de caipirinha, destruindo-o inteiramente em 21 de novembro de 1915. Contando apenas com os três botes salva-vidas levados a bordo, Shackleton e seus homens montaram acampamento no local batizado ironicamente de Patience Camp enquanto preparavam um desesperado plano de regresso.

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Com os restos do navio, imensos esquis foram adaptados sob os botes para que  pudessem ser arrastados até o local mais próximo onde encontrariam terra firme. Para tanto, teriam que percorrer 400 quilômetros. Após frustradas tentativas de prosseguir viagem, pois não conseguiam avançar mais do que dois quilômetros por dia, resolveram esperar o degelo e que a correnteza os levasse sobre blocos de gelo para um local mais próximo da terra firme.

Em 17/03/1916, quase dezesseis meses após a partida, a expedição encontrava-se a menos de 100 quilômetros do objetivo. Porém, o bloco de gelo onde se encontravam partiu-se, obrigando-os a cobrir o resto do percurso em botes salva-vidas.

Entre pinguins, uma estátua de Shackleton na Elephant Island | Foto de autoria desconhecida — CLIQUE PARA AMPLIAR

Durante cinco dias, os 27 homens enfrentaram o frio da região, a chuva e a neve intensa, além do mar revolto. Nos dois dias finais, não havia mais água potável a bordo e a ração tinha acabado. Eles estavam há 70 horas sem dormir. Foi assim que chegaram à terra firme, mais exatamente à Elephant Island, onde acamparam após quase quinhentos dias no mar entre pinguins. Mas não podiam permanecer ali. Shackleton, então, optou por uma estratégia desesperada e quase suicida: cruzar o extremo Oceano Atlântico de volta à Georgia do Sul, de onde partiram.

Adaptações e reforços foram feitos ao James Caird, um dos botes salva-vidas, para que Shackleton e mais cinco tripulantes tentassem atingir o novo destino em busca de resgate. Partindo em 24/04/1916, eles enfrentaram por quinze dias o perigoso Atlântico Sul. Exatamente naqueles dias, um cargueiro de 500 toneladas naufragou na mesma região.

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O Endurance tragado pelo gelo marítimo — CLIQUE PARA AMPLIAR

Como se não bastassem as dificuldades da travessia, as bússolas não funcionavam de forma confiável, dada a proximidade com um dos pólos magnéticos da Terra. Sendo assim, toda a navegação era à base de sextante, cartas náuticas e instinto.  As medições do neozelandês Frank Worsley, naturalmente baseadas nas posições do sol, lua e estrelas eram prejudicadas por nevoeiros e pela quase incessante chuva e neve.

Worlsey e Shackleton conseguiram levar o James Caird até uma praia deserta da ilha Geórgia do Sul onde, mortos de frio e cansaço, desembarcaram no dia 8 de maio de 1916. Mas desgraça pouca é bobagem: o desembarque ocorreu no lado oposto de onde ficava a estação baleeira de Stromness. Restava ao grupo atravessar gigantescas montanhas cobertas de neve. Três homens ficaram no bote e três caminharam 36 horas até chegarem à estação de onde tinham saído.

Os incrédulos membros da estação norueguesa de Stormness ficaram olhando o trio como se fossem fantasmas. Mas o drama não acabou aí. Após o resgate dos três integrantes que haviam ficado no outro lado da ilha, Shackleton desesperou-se em frustradas tentativas de organizar uma viagem de volta à Elephant Island para reencontrar os outros 21 companheiros que deixara lá. Sem o apoio do governo inglês, envolvido nos esforços de guerra, ele apelou aos países sul-americanos, suplicando-lhes ajuda.

Foram quatro meses de apelos à Inglaterra, Argentina, Chile e Uruguai para organizar a viagem de resgate. Neste período, Shackleton teria, segundo palavras de Worlsey, envelhecido mais do que durante todo o resto da viagem. Seu rosto ficou completamente enrugado e seus cabelos grisalhos.

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A ilha Georgia do Sul — CLIQUE PARA AMPLIAR

Foi quando o navio chileno Yelcho apontou no horizonte da Geórgia do Sul e o comandante chileno Luis Pardo Villalón concordou em fazer o resgate. O Yelcho chegou à Elephant Island, vinte e quatro meses e vinte e dois dias após o início da viagem. De forma inacreditável, nenhuma vida foi perdida sob o comando de Shackleton.

Equipado com máquinas semelhantes à dos lambe-lambe, Frank Hurley produziu um belíssimo registro da aventura. As fotos de Hurley que reproduzimos nesta matéria retiradas do livro Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida, de Caroline Alexander. O livro foi fotografado pelo fotógrafo do Sul21 Ramiro Furquim.

De tudo isso, fica uma pergunta: como Shackleton conseguiu que seus 27 tripulantes permanecessem com moral, esperanças e saúde física e mental? Foram mais de 24 meses almoçando foca e jantando pinguins. Como foi capaz de evitar o desespero causado pela fome, sede, frio e cansaço? Não temos ideia. Para finalizar: o ambicioso projeto de Shackleton — a travessia do continente Antártico só se concretizou quase quarenta anos depois.

Matéria escrita com o auxílio do citado livro de Caroline Alexander, “Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida” (Companhia das Letras, 1999, 242 páginas), do fotógrafo Ramiro Furquim e do blog Não Posso Evitar, que acertou a cronologia da acidentada narrativa, evitando que eu me confundisse com tantas datas.

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Mais fotos de Hurley:

Brincadeira com os imensos cães
Frank Hurley trabalhando em um dos mastros do Endurance
O sol da meia-noite sobre o navio
O início do fim do Endurance. À esquerda, na foto, um dos botes salvadores.

O fotógrafo Frank Hurley

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4 comments / Add your comment below

  1. A gente costuma comparar a história de Shackleton à de Robert Scott. Nos dois casos, o que fez diferença — para o bem e para o mal — foi a capacidade de liderança. São duas belíssimas histórias, por razões diversas.

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