Acabo de escrever 10 mil caracteres sobre Heitor Villa-Lobos. Por minha biblioteca estar longe, praticamente só utilizei a memória, além da ajuda no site do Museu Villa-Lobos. Sob a pressão de ter de entregar a matéria, acabei lembrando de coisas que nem sabia mais… Tive que conferir tudo e acho que não menti muito. A coisa deve ser publicada amanhã no Sul21.
Mas não estou aqui para me gabar. Todos têm memória. Só que é tanta coisa armazenada que a gente mal consegue fazer aflorar e deixar disponível. Eu, por exemplo, sou lentíssimo. Precisei de uma noite de sono e de preocupação. Porém, hoje pela manhã, cheguei a recordar a voz de Villa-Lobos, presente em um de meus CDs. Ainda estou surpreso e lembro agora de uma cena aterradora.
Em 1993, no velório de meu pai, fiz-lhe um carinho e ele estava frio como nunca estivera. Notei que toda a memória que ele tinha de mim se esvaíra e este pensamento acabou comigo. Muito do que ele sabia de mim se fora, muito do que eu ainda podia saber se perdera. Isto me deixa triste e choramingas até hoje. Ele morreu cedo demais.
(Fazia tempo que eu não publicava nada na categoria “Em torno do meu umbigo”…)
Essa crônica tão minúscula demonstra o complexo emaranhado de associações que o cérebro utiliza. Recordar e elaborar são operações necessárias para que uma lembrança tome sentido: imagens e afetos, lobo frontal e hipotálamo.
Tive uma sensação parecida com a sua, quando meu pai morreu.
Quanto a mim, tinha uma boa memória, mas esqueci onde a deixei.
“…Notei que toda a memória que ele tinha de mim se esvaíra e este pensamento acabou comigo. Muito do que ele sabia de mim se fora, muito do que eu ainda podia saber se perdera. Isto me deixa triste e choramingas até hoje. Ele morreu cedo demais…”
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Querido Milton,
o que escreveste é somente uma metade de alguma coisa que poderíamos denominar verdade… Sem dúvida, a lembrança de teu pai, que só tu sabes, essa, sim, efetivamente está perdida em ti, mas a parte principal, aquela que se transforma está viva: afirmo redundantemente que ela está vivíssima, não em ti, mas nos teus filhos e em nós – teus leitores…
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Ora, de onde veio o teu amor à música que compartilhas com todos nós? Ora, de onde, o teu amor aos livros? Sem qualquer dúvida de teus pais… O que denominamos de memória se transforma: esse é o verdadeiro milagre… Sabe por que estou aqui, dentro do possível, sempre poeticamente? Ora, por causa da memória sentimental de minha mãe, ainda viva, que paulatinamente transformo em doação a todos que caminham por aqui… E isso acontece, aqui, com todos: sinto-me um receptáculo de memórias amorosas, felizes e infelizes, que se desabotoam… Isso acontece no planeta inteiro e isso denomino – sagrado.
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A memória é sempre um novo contar de histórias aos amigos e também aos inimigos…: o nosso último suspiro, mas que nascerá de novo em outras memórias pequeninas que contarão inocentemente de novo… (É um milagre, Milton…).
Já que estamos
a falar de memória:
eis a minha cultural…
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PARA CLARICE
by Ramiro Conceição
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Entre os dionisíacos tropeços de vinhos,
de mil pedaços nasceu um espantalho
apolíneo, que teima em proteger todos os ninhos.
Por isso com malícia Picasso recorta espaços
de um quadro, a ensinar Portinari; enquanto Einstein
ao tempo lança pedrinhas; mas Garrincha ri ao vento,
pois deixou Van Gogh a procurar o amarelo dum gol
dourado de Pelé, num sonho de Pessoa que, bêbado,
dorme até a hora da chegança de Caeiro com os seus
carneiros a balir entre os dentes os poemas de Dante,
de Goethe, de Poe, de Rilke, de Bandeira, de Whitman,
de Drummond à colossal manhã provisória do mundo.
Nietzsche explica o eterno retorno… Mas Shakespeare
reescreve: sem matar ninguém; e Cervantes abandona
Dulcineia a Camões que não é só zarolho; e triste, Marx procura
decifrar a história que Dostoievski crê estar nas batatas de Deus
que Machado doou ao vencedor; Sócrates cutuca Platão!: Freud
está feliz!; enquanto Joyce, Homero, Bach e Lennon&McCartney
inventam um cancioneiro para Beethoven, que pela primeira vez
irá ouvir, e para Clarice que quase completamente ri, plena de si.
FILHOS DO SOL
by Ramiro Conceição
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Inocentemente, daquela vez,
caminhávamos…Lembra-se
do quanto brilhávamos?
E daquela…, quando brigamos,
mas voltamos, lembra-se do cuidado
que nos olhávamos? E quando daquela outra
que morremos…Lembra do quanto choramos.
E da última em que nos amamos, lembra?
Pois bem: éramos, somos e seremos
embora incompletos… filhos do Sol.
Desculpem-me a redundância,
mas é que tudo incrivelmente,
em meu coração, se resume a isso: