Publicado em 5 de maio de 2013 no Sul21
Toda a obra de ficção é catártica.
(Ao menos para) Ernesto Sabato
A última terça-feira, 30 de abril, marcou o segundo aniversário de morte de um dos maiores mestres da literatura latino-americana, o argentino Ernesto Sabato. O autor de Sobre Heróis e Tumbas nasceu em 1911 e morreu em 2011, a menos de dois meses de tornar-se centenário. Vista em perspectiva, a trajetória de Sabato – brilhante, desigual e surpreendente – não está nada longe de seus personagens tortuosos. Jogador de futebol na juventude, comunista, físico de grande futuro, súbita desistência da carreira científica, ficcionista, artista plástico, equívoco e espetacular correção de rumos frente à ditadura argentina, o que não fez Sabato?
Aos 22 anos, estudante na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas de La Plata, foi um dos fundadores o Grupo Insurrexit, de tendência comunista, que atuava na reforma da universidade. Ainda no mesmo ano de 1933, foi eleito Secretário Geral da Juventude Comunista e conheceu Matilde Kusminsky Richter, uma estudante de 17 anos que abandonou a casa de seus pais a fim de viver com ele.
Quando jovem, Sabato foi um promissor físico. Aos 25 anos, trabalhava no Laboratório Curie de Paris, realizando estudos sobre radiação atômica, e um ano depois, já estava no renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos EUA. Trocou Paris pelos Estados Unidos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, retornou à Argentina para ser professor na Universidade de Buenos Aires e, em 1943, em crise existencial — ele cita que via “um vazio de sentido” naquilo que fazia — , desistiu das ciências exatas pela literatura e pintura.
Os romances e ensaios de Sabato não traem o cientista que ele fora, nem o humanista que sempre demonstrou ser. O poeta, romancista e ensaísta Fernando Monteiro chama-o com toda a razão de “o último dos renascentistas”. Dotado de uma vasta cultura, escreveu sobre os mais variados assuntos como se deles tudo soubesse – e parecia sabê-lo. Politicamente, causou espanto por ter sido um anti-stalinista de primeira hora. Sua posição, mais facetada e complexa a que a do comum dos militantes, fez com que fosse atacado como imperialista pela esquerda e como comunista pela direita. “Não vou ser complacente com o stalinismo e o que ele representa, não sou comunista de salão”, disse na época. Também o intelectual não traía a paixão mais chã pelo futebol – ele era um interessado hincha do Estudiantes de Plata – e pela música popular. Na música popular, há uma história recente contada pelo grande compositor e músico sérvio Goran Bregovic numa entrevista ao El Pais.
Disse Bregovic: “Ao chegar a meu hotel em Buenos Aires, me deram um pacote da parte de Ernesto Sabato, escritor que conhecia muito bem. Ele continha sua obra-prima Sobre Heróis e Tumbas, além de uma carta em que me pedia desculpas por não poder ir ao concerto em função da idade. Me explicava que minha música o havia salvado em momentos de depressão. Aquilo era incrível. Quando eu cumpria o serviço militar em Niš, na época do comunismo da Iugoslávia, roubei um exemplar deste livro do quartel. Era um romance extraordinário! Eu tinha o livro na biblioteca de minha casa em Sarajevo. Com a guerra perdi tudo, inclusive a biblioteca. Você pode começar uma nova vida, mas não pode começar duas vezes uma biblioteca”.
Mas Sabato também cometeu erros incríveis: levado por seu ódio ao peronismo, dois meses após o golpe militar de 1976, participou de animado convescote com Jorge Rafael Videla, representantes religiosos e Jorge Luis Borges. Sabato elogiou a cultura de Videla, a quem tomou por um líder moderado. Escritor à antiga, Sabato manteve sempre uma independência que não levava em conta quem eram os beneficiários ou as vítimas de suas opiniões.
Porém, quando deu-se conta de onde tinha embarcado, retirou imediatamente seu apoio e, após o final da ditadura, colocando-se a 180 graus da posição inicial, tornou-se o presidente da Conadep (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que teve por objetivo investigar as graves e reiteradas violações aos direitos humanos durante o Terrorismo de Estado entre 1976 e 1983. Sabato foi o responsável por reunir o testemunho e a documentação de 8960 desaparecimentos, assim como da existência de 340 centros de detenção e tortura. A Comissão recebeu milhares de declarações e depoimentos, verificando in loco a existência de centenas de locais de tortura e prisão em todo o país. Foi este o instrumento que permitiu o início dos processos e a condenação dos responsáveis máximos das juntas militares, começando justamente por Jorge Rafael Videla. Foi uma correção e tanto de rumo.
Sabato não foi um escritor prolífico. Em 1945, publicou seu primeiro livro, Nós e o universo, uma série de artigos filosóficos nos quais critica a neutralidade moral da ciência e alerta sobre os processos de desumanização nas sociedades tecnológicas.
Em 1948, publicou a novela O Túnel, a qual fez com que os hofolotes se voltassem para ele a partir do entusiasmo de Albert Camus pela narrativa. Trata-se de uma curiosa história policial, narrada pelo autor de um assassinato, o artista plástico Juan Pablo Castel. Seu tema é a solidão e a incapacidade de criarmos conexões com outras pessoas. A obra termina com uma oração que diz “Senhor, livra-me de mim”. O Túnel é uma espécie de um longo desabafo — de notável fluência e eficiência — que reconstrói os fatos e os sentimentos que levaram ao crime. Castel apenas busca que alguém, “ainda que uma só pessoa”, compreenda seu ato. Logo, o leitor entende que Castel matara a “única pessoa” que poderia ouvi-lo, Maria. “Adotei a narrativa em primeira pessoa depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitiria passar a sensação da realidade externa a partir de um coração e de uma cabeça, a partir da subjetividade total…”.
Juan Pablo conta como conheceu Maria, objeto de seu desejo e de sua obsessão, em uma de suas exposições. Explica que Maria foi a única pessoa a notar uma pequena cena em um de seus quadros: a cena de uma mulher numa janela. Quando Maria revela que não viu senão ausência de esperança em sua obra e pede insistentemente que a deixe em paz, o artista é dominado por ciúmes e mata a única pessoa que se aproximou dele. O Túnel tem notável construção de personagens e pode, deve, ser filiado ao existencialismo. Albert Camus fez com que a obra fosse traduzida para o francês. O livro foi lançado pela célebre editora Gallimard e o fato, como sói acontecer na América Latina, fez com que Sabato passasse a ser imediatamente reconhecido na Argentina.
Muitos consideram Sobre Heróis e Tumbas (1961) o melhor romance latino-americano do século XX. E ele certamente é um dos melhores. Nele, a voz do narrador é absolutamente furiosa e expressionista, ou seja, a realidade é deformada a fim de expressar a natureza e o ser humano, dando total precedência aos sentimentos em relação à descrição objetiva da realidade. Trata-se de um longo e complexo romance dividido em quatro partes. Resumidamente, podemos dizer que seus fios condutores são a história (o “romance de formação”) de Martín e a decadência da família Vidal Olmos, de onde provém a extraordinária e misteriosa personagem Alejandra Vidal, pela qual Martín e os leitores imediatamente se apaixonam. Se Martín é o melancólico e apático filho de um pintor fracassado de uma mulher da rua, Alejandra é sua antítese.
Há cenas que descrevem os anos finais do primeiro governo Perón e outras do século XIX, pois a família de Alejandra, os Vidal Olmos, é histórica, tradicional, rançosa e… parece estar inexoravelmente destinada a uma descida aos infernos. Alejandra tem uma relação de amor e ódio com seu pai Fernando, que a estuprou quando criança, e de apenas ódio com sua mãe, que fazia vistas grossas ao fato. A terceira parte do livro, Informe sopre Cegos, é a mais famosa e pode ser lida separadamente. O informe pode ser chamado de “narrativa pânica e paranoica”. Fala sobre um estranho complô milenário e demoníaco, regido pela Seita Sagrada dos Cegos, que governaria o sentido do mundo e as ações dos homens. Não, não estamos mais em terreno naturalista, mas no metafórico. A história refere-se a algo mais profundo e misterioso, aninhado em seus próprios medos inerentes da humanidade.
O metrô de Buenos Aires, os túneis secretos que ligariam a Escola Nacional da cidade com a antiga aduana, outras passagens que sairiam da igreja do bairro de Belgrano para se transformarem nas incomensuráveis cavernas que levam o protagonista — que aqui já é Fernando Vidal Olmos — à sua perdição, são símbolos subjetivos da condição e dos medos do homem diante da morte, da incompreensão da vida e das dúvidas sobre o certo e o errado, o bem e o mal. Com método e rigor científicos — é um informe –, lemos um relatório de absoluto pesadelo. Os agentes são pessoas cegas — metáfora retomada anos depois por Saramago — , mas Fernando Vidal Olmos também parece sê-lo. O leitor torna-se um espectador que contempla ao mesmo tempo céu e inferno.
Sabato foi o mestre das histórias trágicas e dos personagens angustiados. Seu estilo furioso e suas muitas histórias e questionamentos — quase todos eles sem resposta — exigem grande atenção do leitor. Depois, o escritor publicou uma série de ensaios, mas somente mais um romance: Abaddón, o exterminador. Se antes havia dúvidas sobre quem venceria a partida, aqui o mal triunfa. O livro mistura ficção, realidade, considerações filosóficas e crítica. Decididamente apocalíptico, temos grande número de referências a fatos trágicos da história argentina, assim como também à Segunda Guerra Mundial, às bombas de Hiroxima e Nagasaki e à Guerra do Vietname. Não é um bom romance e Sabato abandonou o gênero com Abaddón.
Ernesto Sabato faleceu em 2011. Vivia há mais de uma década sem a mulher, a Matilde de sua juventude, e agora sem o filho, Jorge Federico, ambos falecidos. Morava e era amparado pela governanta da família, Elvira. Ao final da vida, refugiava-se na pintura, sua antiga paixão.
Quem olhava a tranquila figura de Sabato em seus últimos anos, após receber todas as distinções literárias e doutorados honoris causa imagináveis — à exceção do fugitivo Nobel — jamais imaginaria o oceano de ódio e angústia que ele poderia carregar no peito. Um sinal externo disto era certamente o fato do escritor pintar quadros e mais quadros para depois deixá-los na rua, a céu aberto, destruindo-se. De forma muito peculiar, Sabato jamais saiu da Paris dos anos 30 onde “pela manhã me sepultava entre os eletrômetros e provetas, para depois anoitecer nos bares, com os delirantes surrealistas, alcoolizado com aqueles enviados do caos e da transgressão, passando horas e horas elaborando cadáveres refinados”.
Deus existe, mas às vezes dorme, seus pesadelos são nossa existência.
(Ao menos na opinião de) Ernesto Sabato
Para um desdobramento, em profundidade, do tema desse post, recomendo a leitura da tese de doutorado de Janer Cristaldo, defendida na Sorbonne. Quero deixar claro que discordo do Janer quanto ao futuro humano via o capitalismo; todavia, o conhecimento é o confrontar-se inocentemente, não estupidamente!, com a contradição…
A ESCADA
by Ramiro Conceição
*
*
A arte?… Ora, é a escada alada
sobre o mar de fadas e de fatos.
O artista?… Ora, é o decifrador,
o cantor-carregador dos fados.
*
Há uma escada no telhado.
Quem subiu e a esqueceu?
Mas, se subiu, foi pra onde
(acima há somente o céu)?
*
Será que foi Sábato que quase aos 100,
por ironia, morreu num triste sábado?
Será que alguém pulou, fugiu e deixou
aquela escada esquecida no telhado?
*
Talvez tenha caído d’algum helicóptero
americano que invadiu o espaço aéreo
ao seu bel-prazer como é de costume.
Ou será que caiu de dentro dum ovni?
*
Convoquemos a corja da grande imprensa.
Organizemos uma miríade de intelectuais,
de bandidos, digo, de políticos; de padres;
de pastores; e não esqueçamos do dito
papa bento com o seu defunto papa santo.
Coloquemos de prontidão a armada!
*
Afinal, quem esqueceu aquela escada?