Eu fazia Engenharia Elétrica na UFRGS — jamais me formei — e tinha um colega chamado Antônio Carvalho Sarmento, que não sei onde anda. Ele não tem Facebook nem há referências a ele no Google. O cara aparentemente volatilizou-se. Ele era o mais engraçado, o mais louco e corajoso dos colegas. Nós fazíamos várias disciplinas juntos. Na verdade, éramos bons amigos e procurávamos nos inscrever nas mesmas cadeiras, normalmente acompanhados pelo Ricardo Branco e pelo Pedro Spohr, o primeiro se formou, o segundo é cantor lírico dos bons.
Então, estávamos numa aula de Mecânica dos Fluidos, uma dessas coisas que a gente aprendia para nunca usar. Havia várias cadeiras assim. Talvez a ideia fosse nos torturar, incentivando-nos a largar o curso, coisa que acontecia com metade dos alunos naquela segunda metade dos anos 70.
Vou focar no dia de nossa primeira prova da cadeira. O professor distribuiu as questões e eu e Antônio nos olhamos. Não sabíamos responder a nenhuma delas. Ele abriu os braços sorrindo, como quem diz: “Tiramos zero”. Era um sujeito pequeno, mas tinha voz poderosa e um talento natural de ator. Passaram-se uns cinco minutos e ele se ergueu subitamente, anunciando com toda a seriedade:
— Professor, eu me nego a fazer esta prova!
O professor era um sujeito muito inseguro de sobrenome Maestri — esqueci o primeiro nome — e gaguejou lamentavelmente.
— Mas… Por quê?
— Ora, esta prova é um lixo de mal escrita, contém claras inconsistências, é uma vergonha para a Escola de Engenharia desta Universidade! — disparou Antônio com ar doutíssimo.
— Que inconsistências?
— Céus, e eu ainda vou ter que lhe explicar, criando constrangimento para o senhor na frente de seus alunos? Quem sabe o senhor reescreve tudo e fazemos nova prova?
Neste momento, a tese de Antônio ganhou muitos adeptos, pois ninguém sabia porra nenhuma, ninguém dava importância àquela cadeira. Claro que os dois ou três mais estudiosos protestaram, dizendo que a prova era bem feita. Porém…
— Isso, isso, fazemos nova prova na próxima aula — dizia a voz do povo.
— Mas…. Ao menos assina o teu nome — pediu o professor a Antônio.
— O quê? Eu, botar meu nome nesta merda?
Naquele momento, a turma já se levantava indignada, pronta para ir embora. Não havia mais clima. Quem não sabia nada, ou seja, a maioria absoluta, rindo muito, devolvia a prova para o pobre professor Maestri.
Grande Antônio! Na aula seguinte, Maestri deu uma prova bem fácil, cheia de questões que já tínhamos resolvido em aula.
Pô, Milton,
esse Antônio Carvalho era e/ou é um gênio… Carvalho não era só o sobrenome, mas a cara de pau do Antônio…
Ídolo!
Pois na faculdade eu era o oposto desse Antonio: com excesso de altura e uma timidez que ficava pior ainda devido ao gingado de girafa bêbada que tem os que ainda se junta a seu desafortunado genótipo uma magreza osteoporótica. Parênteses: eu realmente era uma figura que mesmo eu tenho dificuldades em acreditar que eu tenha sobrevivido: cabelos compridos e gago, e um óculos de lentes verdes (lentes verdes, mãe? Verdes? Luto contra a vontade de dizer que jamais te perdoarei por esse sarcasmo de finíssima ação devastadora).
Fiz jornalismo, mas abandonei. Comecei a fazer veterinária, e abandonei no segundo ano. Não sabia o que fazer da vida. Resolvi voltar para a veterinária, e quase pus tudo a perder porque eu simplesmente odiava uma matéria inócua como essa que o Milton diz no texto, só que a minha era Estatística. Eu sempre odiei estatística. Sempre tive a plena convicção que a classe dos economistas e dos estatísticos são as mais idiotas e sem função em qualquer campo da vida prática entre o leque de profissões ornamentais. Tá. Minha aversão era tanta que eu não fui assistir às aulas. Quando menos percebi, eu havia matado todo o semestre, sem realizar nenhuma prova e sem dar as caras.
Eu estava em uma encruzilhada: ou eu avançava na veterinária de uma vez, ou contava toda a verdade para minha mãe de que eu passara todo um ano andando pela cidade e lendo nas bibliotecas simulando estar indo para a faculdade, e assim me metia a tentar ganhar a vida com algum serviço informal no mercado negro ou como limpador de carros em algum país cujo sub-emprego me aceitasse com algum razoável grau de sobrevivência mais ou menos digna. E bombar em Estatística seria a porta para que eu fosse jubilado e esquecer de ter o tão essencial diploma superior.
Eu me armei de tudo que eu sabia que não tinha, de toda a coragem e a teatralidade, para chegar ao professor de Estatística e inventar alguma mentira incrível que me desse alguma chance. Nem sabia o que falar. Foi uma das vezes em que eu acho que eu fui tomado por algum orixá, ou algum xamã compadecido, pois no final de quase uma hora em que estávamos apenas eu e o professor em sua sala, a história que eu inventei fez que uma lágrima discreta quase escorresse pelo canto do olho do bom homem. Ele era um francês católico, ruivo, de barba, óculos, e tinha a mirradice dos que passaram a vida toda estudando e devido a isso, estava sempre de sobre-guarda contra as enganações que o mundo tinha a oferecer aos poupados pela vida real.
Eu me vi falando que meu pai morrera, sucumbido por um enorme tronco de aroeira que lhe caiu em cima em seu último dia como madeireiro na Amazônia, e que, por causa desse infortúnio, eu não pude e não tive mais ânimo de continuar a faculdade. Mas que, por ter uma mãe que dependia que eu me tornasse alguém para lhe dar segurança, eu tinha que voltar aos estudos, etc, etc, etc.
Não me lembro do nome desse professor. (Eugênio?) Sei que ele me deu uma enorme chance: ele abateria todas as minhas faltas, mas por ter fechado o semestre, não tinha como me dar as duas provas. Eu teria que cometer o milagre de tirar algo como 9,5 na terceira prova, mais 9,5 na segunda, para ir para a quinta prova (a recuperação) precisando de 9,5. Algo assim, no esquema de pesos bimestrais. Minha sorte é que a matéria casada com Estatística era Genética, que encerrava o ano, e eu só teria que estudar Estatística na prova de recuperação, se eu conseguisse o mérito de poder fazê-la.
Só sei que eu consegui. Estudei tanto, que tomei gosto pela veterinária, e me tornei um aluno razoável, formando entre os medianos, o que já era uma glória para um suicida institucional como eu. Do terceiro para o quarto ano, como o Capitão América, meu corpo sofreu uma avalanche natural de hormônios e eu deixei de ser magro. Os que me chamavam de osteoporótico me perguntavam com certo respeito se eu havia malhado durante as férias.
O mais legal disso tudo é que eu me compungia por achar que fizera um bom homem de otário. Mal conseguia olhar nos olhos desse professor. Eu me emudecia interiormente sobre as arestas do engodo canastrão que havia lhe aplicado: como ele não ficara sabendo que eu faltara APENAS na matéria dele, para que colasse a treta de que eu estivera afastado das salas?
Até hoje não sei quem foi o bobo de quem. Se ele me tratou mesmo com piedade diante minha figura tão fragilizada, diante meu raquitismo e minha aparência geral de alienígena no mundo, foi o único entre todos os educadores da minha vida que foi realmente humanista. Quem enganou quem?
Consequência disso: até hoje tenho terríveis pesadelos de que não consegui me formar, de que fiquei sem fazer uma prova, de que me bombaram. Acordo em pânico.
Charlles, isso passa, isso passa…
🙂
Matéria inócua? Coisa que se aprende para nunca mais usar? Tortura? Pelo visto bom mesmo é “focar no mercado”, estudar só o que tem aplicação imediata. Não existe curso de engenharia no mundo onde não haja mecânica dos fluidos. Ao menos, quando se fala de curso decente, algo cada vez mais raro, especialmente no Brasil (conforme atestado nos testes internacionais como o PISA). A engenharia envolve uma série de conceitos básicos, que compõe o fundo teórico a partir do qual o engenheiro pensa o mundo, em busca de soluções. Por outro lado, se o “engenheiro” que se quer é só um apertador de botões de máquinas que os gringos construíram, bom, neste caso não se precisa de mecânica dos fluidos.