As rev(f)erências de outros grandes autores a Stevenson (1850-1894) são mais do que justas. Nabokov, Borges e James, fora alguns que se apaixonaram pela obra do escocês. O que impressiona é sua qualidade como narrador, coisa que Nabokov esmiúça ao final do volume ao analisar longamente todos os artifícios que tornam O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde a obra-prima que é. Stevenson tem uma arrebatadora capacidade narrativa que envolve não somente uma cuidadosa distribuição de spoilers — corretos ou dúbios — como dá ao leitor uma curiosa noção de espaço, o que o torna muito visual, como se escrevesse para o cinema.
O belo volume da Cosac Naify abre com O Clube do Suicídio, uma novela de quase 100 páginas que conta sobre um clube privado que apenas pode ser frequentado por quem quer morrer e ou não tem coragem de fazê-lo ou não deseja deixar sobre si ou sobre sua família a vergonha de um suicídio. E mais não digo sobre os esquemas ficcionalmente geniais do clube. O príncipe Florizel, da Boêmia, é um homem com gosto por aventuras. Ele fica sabendo da existência do clube e lá entrando convence a todos que deseja morrer. Então, tem sua morte providenciada, mas, contra toda a prudência e os conselhos de seu amigo e escudeiro, o Coronel Geraldine…
O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde é conhecidíssimo. Ao final do volume, há um texto de Vladimir Nabokov onde o russo examina os artifícios de Stevenson praticamente parágrafo a parágrafo. O médico e o monstro é um clássico de primeira linha da literatura fantástica.
Markheim é pura música de câmara, é uma pequena e rara joia. Um perdulário contumaz vai a um antiquário antes da noite de Natal, quer comprar um presente para uma mulher e ficamos por aqui. Por alguma razão, amo O demônio da garrafa, outro conto fantástico. O argumento do conto não é de Stevenson, mas de uma famosa peça teatral de sua época. Especie de Fausto matemático do qual todos desconfiam, no fundo é uma bela história de amor. A base é a história do gênio da lâmpada das 1001 Noites, só que a garrafa onde ele reside TEM DE SER vendida por um preço menor do que foi comprada da última vez. Seu dono pode pedir o que quiser ao gênio e será atendido, mas tem de vendê-la sempre por um preço menor, correto? Caso morra com ela, sua alma irá para o inferno. Bem, um dia, ela terá de ser vendida por um 1 centavo, concordam?
O ladrão de cadáveres é outro conto soberbo e terrível. Dois colegas trabalhavam na sala de dissecação de um grande médico, um certo Dr. K. Ele roubavam cadáveres para que ele os dissecassem em uma universidade. Mas descobrem que há mais do que o simples roubo. O que se passava? Uma bela história de horror, sem dúvida. O vestíbulo é a brevíssima, esplêndida muito original narrativa de um assassinato. Ela é muito, mas muito Jorge Luis Borges.
Ah, sim, Nabokov, James e Borges… Os três juntos jamais errariam. A tradução, excelente, é de Andréa Rocha.
Uma citação dum romance meu:
“Tenho passado bons maus momentos com a leitura de um livro que emprestei à biblioteca, O Clube do Suicídio, de Robert Louis Stevenson. Nada impróprio sua presença nas estantes de uma clínica para drogados, apesar do título. Mesmo sob suspeita, Stevenson parecia ser daqueles que acreditavam em valores absolutos, como honra, dignidade, nobreza. Até em um deus, ou vários deles. Ele acredita no saber, nos bons métodos, na existência de bons caminhos. Não acredito em nada disso, não gostaria de acreditar, não conheço ninguém que realmente leva a sério essas bobagens. Mesmo assim, sendo um livro novo, este se encontra bastante avariado, sinal que já foi lido, ou pelo menos retirado e manuseado, por muitos outros… hóspedes daqui.
De início me surpreendi com a fotografia do autor, semelhante a um padre, mas de fisionomia sátira, com seus olhos grandes sobre leves bolsas de olheiras que parecem avermelhadas, as sobrancelhas grossas mas inexpressivas em um rosto magro, meio sorriso sob um bigode espesso, a grande testa clara mal emoldurada por cabelos sebosos, grudados no couro cabeludo, entre as grandes orelhas, sua metade de corpo esquálido metido em um fato negro, deixando em destaques as mãos frágeis com seus dedos compridos entrelaçados, todo o conjunto querendo denotar dignidade e sobriedade, entrevendo, no entanto, a ambiguidade de seu Doutor Jekyll a guardar carinhosamente em si Mr. Hyde – essa descrição foi parar no meu prontuário, prova do retorno do meu poder de observação, logo de minha sensatez, mas não sonho com a alta, não quero alta.
O livro, voltemos ao livro. Porque neste livro, O Clube do Suicídio, se encontra a novela O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
Ah, mas não tem Ingrid Bergman! Meu avô talvez saiba, se é que leu essa história. O filme tem pouco dela. Não há mergulho na “depravação” dos bordéis ingleses, nos bares frequentados por prostitutas. Não há uma puta nessas páginas, que dirá uma puta com a fisionomia divina de Ingrid Bergman!
Em compensação, há cocaína. Para quem é um viciado como eu, cocaína existe em todo lugar. Alguém que carrega na rua em frente à minha janela uma lata de Leite Ninho está carregando, é claro, cocaína para toda sua família.
Mas, juro, há mesmo cocaína nessa história. Lê só essa parte: “comprei de uma só vez, de um atacadista de produtos químicos, uma grande quantidade de determinado sal.” Sal? Um pó branco. Só pode ser cocaína, para prover toda a transformação pela qual passa o doutor. Que se regozija com os efeitos. Mais uma vez, lê só: “a droga não tinha ação discriminatória; não era diabólica nem divina; o que ela fazia só era derrubar as portas da prisão da minha personalidade”
A satisfação dele quando se percebe capaz de pensar e até de realizar tudo que pode pensar, e causar aos outros todos os males que sua força quase sobrehumana pode causar, é própria de quem está sobre efeito da excitação de uma droga como a cocaína.”
Sem querer chatear muito, o restante:
“Vejamos: ele tenta retomar as rédeas como Jekyll, o homem em maior parte, mas não de todo, bom, e virtuoso; mas a parte Hyde pressiona até vencer e declarar Jekyll um impostor para si mesmo; Dr. Jekyll nada mais seria do que uma máscara social aceitável para bem ocultar o seu verdadeiro rosto, o rosto de Mr. Hyde que prevalecia em sua consciência e era libertado pela droga. Assim, como eu, depois de um curto período de abstinência, volta Jekyll ao seu vício, fechando caminhos atrás de si, tornando impossível a volta. Sem antídoto, forçado a reconhecer a si mesmo, restou a Jekyll uma última desesperada tentativa de volta, mas que parece a qualquer leitor mais perceptivo outra coisa: suicídio.
Vocês não acreditam? Leiam então: “Meu estoque de sal, que nunca foi renovado desde o dia da primeira experiência, começou a chegar ao fim. Mandei comprar um novo suprimento e misturei a poção; houve a ebulição, seguiu-se a primeira mudança de cor, mas não a segunda; bebi e não fez efeito” – aqui a explicação dada é que o primeiro lote seria impuro, enquanto novos lotes, insatisfatórios, seriam puros. Alguém como eu, e claro, lê, e só pode fazer isso, inversamente: na verdade, o uso prolongado da cocaína pura passou a exigir dosagens cada vez maiores quando ela deixou de o ser e, por fim, só grandes quantidades poderiam surtir algum efeito, mas estes passariam a ser cada vez mais rápidos, provocando insatisfação contínua. Com o aumento da dosagem além do possível, vem a overdose e a morte.
Não é paranóia de drogado, não é mesmo. Leiam mais: “Mais ou menos uma semana se passou e agora termino este relato sob a influência do que restava do velho pó”.
Como aconteceu com o Dr. Jekyll, em mim, passado o período de crise de abstinência mais severo, vem a nostalgia da minha potência interior, aquela que só se manifesta com a alteração da química do meu corpo, com a soltura aleatória de meus disparos neuronais, a inversão de suas descargas elétricas, a expressão do que seria a possível liberdade interior que nada mais é do que um tipo de prisão que elimina temporariamente a visão de suas paredes, de suas grades, de suas ferramentas de tortura.
Há diferença: eu prossigo sem ser aquele ser moral que Dr. Jekyll representava ser sabendo muito bem o que era, embora eu nunca tivesse me transformado em algo tão radicalmente devotado ao mal quanto Mr. Hyde. Só acreditei que, através da cocaína, lograsse atingir a verdade mesma da minha consciência, o uso criativo e sem amarras de minha inteligência, uma tesoura capaz de cortar todas as censuras que impediam a realização de meus desejos. Por muito tempo acreditei nisso. Embora saiba perfeitamente bem, hoje, que a cocaína só nos remete a um universo de luz exagerada, enganosa, que transforma tudo e a nós mesmos em coisas que nunca chegaram a existir, só foram desejadas por nosso egoísmo, vaidade e orgulho, embora perceba o fatal autoengano de ser refém de uma substância química que transforma o que eu sou em um autômato dirigido para a beira de um precipício de onde não quero saltar, a tentação ainda é grande e, por mais que me reconheça como homem, e não como um super-homem que a droga me levava a crer que era, para depois de algum tempo me reduzir ao super-merda que também sabia não ser, mas nele habitava depois de passado todo o efeito da droga e esgotado os estoques, mesmo assim… Dr. Jekyll reconhece sua derrota, sua incapacidade de negar que seu herói profano, Mr. Hyde, já rompeu todos os preceitos da boa ordem e exige sua morte, como uma doença que destrói o organismo e, assim, apressa a morte de suas próprias células, de suas próprias bactérias em expansão, que logo se extinguem.”
Eu comprei essa edição da Cosac por recomendação sua, Milton; comprei ela e a da Moby Dick por sua causa, na mesma remessa em que comprei Os embaixadores por recomendação da Rachel e do Marcos Nunes, de modos que quando o grande pacote chegou foi como uma festa infantil de natal, todos esses belos livros da Cosac (para completar, havia o de ficção completa do Bruno Schulz).
Adorei o Stevenson. Até então, nunca pensava nesse autor, mesmo com tantas recomendações de Borges, e só havia lido o Mr. Hyde. Confesso que o que menos me impressionou neste livro foi essa imortal narrativa: gostei mais da história do título (que, em menção à descrição de Stevenson no relato acima do Nunes, uma das causas principais do desgosto pela existência nos componentes do Clube era a recente teoria da evolução de Darwin), e os outros contos. Markheim é incrível: as distorções das sombras por sobre os objetos do antiquário, e o aparecimento do demônio são cenas maravilhosas, absolutamente modernas.
Mandei um e-mail para a Cosac sugerindo que eles fizessem uma edição com todos os contos do padre Brown, do Chesterton. Há uma edição suculenta deles em Portugal. Acho Chesterton ainda melhor que Stevenson, porque ele tem a mesma excepcionalidade mas com um tanto mais de inteligência sarcástica e irônica. O que eu lamentei em Stevenson é que, de um certo modo implicante da minha parte, ele é muito localizado em seu tempo, muito senso comum. O conto do Clube é maravilhoso, mas o verdadeiro herói é posto como vilão, ou alguém aqui não viu que o chefe do Clube é o niilista perfeito, humanitário, o que tem uma profunda compreensão social e existencial, pautada por uma piedade pragmática, que falta por completo ao filhinho de papai e burguês boçal do Príncipe Florizel, esse desenhado como herói? Há uma cena em que Florizel é descrito como um deus elegante e infalivelmente inteligente. E a tocaia que Florizel e seus puxa-sacos (que estão ali simplesmente porque Florizel lhes prometem benefícios sociais) fazem ao líder do Clube é de uma covardia fora do comum. Desde o início, a perseguição que fazem ao líder do Clube já é uma sentença de morte incontornável. É um conto maravilhoso, reafirmo, mas nas mãos de Chesterton tais coisas não passariam batido.
Stevenson percebe seu maniqueísmo lá pelo final do conto, e tenta dourar a pilula colocando uma informação nova para tornar o chefe do Clube com melhor aparência de vilão, dizendo que ele era um estelionatário.
Última nota: o Clube do Stevenson é óbvia inspiração para o filme O clube da luta.