Em primeiro lugar, talvez devesse dizer que vejo futebol sem som na TV. SEMPRE.
Ouço música enquanto vejo o jogo.
Talvez eu vá ao estádio pela beleza plástica do jogo ou de sua tática (na TV não é tão bonito, nem tão interessante), mas talvez vá pela beleza do gramado, iluminado pelo sol ou pelos holofotes em jogos noturnos, ou quem sabe apenas por amor à disputa e ao Inter, mas acredito que a verdadeira razão é a de que o futebol é um gênero de espetáculo que produz maior variação de humores e participação do que qualquer outro que conheça. Por exemplo, se você for a um concerto, provavelmente não poderá ofender o artista ou, num museu, será no mínimo estranho se começar a vaiar o quadro. Vou a muitos concertos; sei que escolho bem e, quase sempre, saio feliz. Às vezes, ele é apenas aceitável. Há possibilidades bem tristes, é claro, porém elas raramente incluem a vaia, chamar o artista de filha-da-puta ou a disposição de odiar o time e odiar a si mesmo a ponto de desejar a própria derrota – em outras palavras, de desejar o próprio fracasso.
Estou enrolando para dizer isso: um concerto ou qualquer outro espetáculo que aconteça dentro de um teatro são representações mais incompletas da vida do que um jogo de futebol. Pronto, disse! Talvez não consiga dormir hoje. Os fantasmas de Shakespeare, Pirandello, Tchekhov, Bergman, Wagner (ai que medo!), Sófocles e de tantos outros me perturbarão a noite. Sei que os aspectos culturais envolvidos fariam o futebol perder de goleada nos primeiros minutos de uma discussão, mas experimente olhar de frente para uma torcida de futebol com o jogo se desenvolvendo às nossas costas. O sofrimento, a alegria, a expectativa, a frustração e quase todos os sentimentos são coisas presentes, visíveis quase a ponto de serem fenômenos físicos. Talvez até o amor romântico tenha representação no futebol… No teatro elisabetano – época de Shakespeare -, os assistentes manifestavam-se, podiam gritar e fazer piadas sobre Otelo, Iago e Desdêmona, mas, hoje, fazer isto seria uma tremenda falta de educação e eu até concordo. Pô, já imaginaram um cara berrando ao nosso lado, fazendo-nos perder as falas?
A possibilidade de amar, de ser indiferente ou de detestar o próprio time, de ridicularizar e sentir medo do adversário, de aplaudir ou desejar a própria derrota é exercida plenamente apenas quando estamos no estádio. Não sinto e, mais, acharia ridículo sentir tanta coisa na frente da TV. A maravilha está no campo de batalha e no leque de opções por ele oferecidas. Na proximidade do fato e no oscilar entre o píncaro da glória e o possível funeral está o fascínio da coisa.
Acho que a narração da TV deveria ser substituída pelo simples som ambiente do estádio. Sério! Apenas ele, o som, os gritos e cantos da torcida, quiçá o som da casamata com as ordens, palavrões e lamentações dos técnicos. Quem sabe umas mensagens escritas, indicando o tempo de jogo e as substituições. Sim, sei que sou lido por vários jornalistas e eles poderiam (e até deveriam) chamar o sindicato para intervir num caso desses, mas quando lembro de Galvão Bueno e alguns “famosos alguéns” de nosso Rio Grande, fico com esta posição.
Lindo texto, Milton. Como sempre, pensei um monte de coisas enquanto o lia. Mas vc está com sorte, hj estou cansada demais para listar 1, 2, 3….10!
Mas pensei principalmente na emoção como algo definidor do ritual. Assim como a capacidade dele de criar ou transformar alguma coisa. O que me fascina nos ritos da sociedade dita “complexa” como a nossa, marcada pelo individualismo, é a capacida de criar um coletivo com uma identidade, um pertencimento – com emoção, ou justamente através dela. Vc tem razão, creio que o futebol entre os nossos ritos contemporâneos faz isso tudo em proporções impressionantes e numa intensidade que creio que só com “observação participante” in loco mesmo para ter a noção das dimensões da coisa. (Não é à toa que existem tantos estudos em antropologia sobre futebol!)
E eu que nunca vi um jogo num estádio de futebol… acredita?
Que vergonha…
A idéia é interessantíssima! Se fosse em um sistema surround, gravado em 5.1 canais, microfones na arquibancada, outros em vários pontos do campo, junto ao escanteio, dentro do gol, próximo ao banco de reservas…
Imagine o trabalho que os engenheiros de som teriam para equalizar tudo ao vivo! Ia ser realmente fantástico!
Uma Ola em 5.1! Delírio no estádio e em casa!
Não, não… Acho que não ia dar certo: imagine quantas pessoas iam querer ficar em casa para aproveitar esta maravilha tecnológica? Os estádios iriam esvaziar e o futebol acabar! Vade retro Milton Ribeiro, com suas idéias demoníacas!
Pois é, Milton… Nada se compara a assitir ao jogo no meio da galera e, principalmente, sem o “bem amigos da rede globo”…
Saudade de ir nos Aflitos ver o Náutico jogar =P
A sacralização do futebol poderia matá-lo ou, quando pouco, sentenciá-lo ao ostracismo. É preciso a fúria, que, em muitos momentos, traduz-se em gozo. É o que chamam de “gladiação” (como se esse substantivo realmente existisse), o confronto, quase um pugilato romano entre duas tribos – cada uma com 11 guerreiros.
Assisto a jogos do Boca com prazer visual; a jogos do Flamengo com o regozijo do som. A torcida e, claro, as narrações suspeitas de alguns locutores de tevê fechada ou aberta. Tanto faz. Torcem como se pudessem, como se seu trabalho não fosse apenas fazer locução.
Mas vá lá. São unanimemente perdoados.
Só para constar: no meu ptimeiro time de fitebol-de-mesa (ou botão, como querem os prosaicos), por volta de 73-74, havia um jogador, em acrílico vermelho e branco, de nome “Escurinho”. E um dos meus beques, claro, chama-se “Elias”.
Milton, meu marido dizia – não sei com ou sem razão, pois sou pequenininha e não entendo nada, que futebol e como casamento: só junto, só ao vivo.
Ah.. ele era Botafogo.
😉
beijos
As narrações da TV eram calmas ainda nos finais de 80, pelo que me lembro vagamente. Minhas memórias dessa época são do Celestino Valenzuela narrando
“Fulano……………….Beltrano………………….agora Ciclano……………….Gol.”
E nas reticências o som da torcida. Talvez você possa me corrigir, pois é muitíssimo mais velho que eu, que ainda nem 3 décadas tenho.
Não havia uma máxima no início do football na TV que dizia que a narração deveria ser mínima pois o cidadão lá na sua casa estaria vendo, e que a histeria era desnecessária? Lembro do Cléber Machado falando no assunto. A questão é que ele dizia que nessa época eles estavam errados, o que o cidadão quer é histeria mesmo.
Eu, fidalgo, claro que desprezo a histeria dos narradores. Mas você, Milton, tão apaixonadamente popular, deveria amar esse tipo de vulgaridade. E Shakespeare, Milton, pelo amor de Deus, não perturba a noite de qualquer um.
Abraço.
A ideia é realmente boa, mas não se aplica ao Gauchão, campeonato no qual a única coisa que faz valer a pena ligar a TV é rir das pérolas do Paulo Brito…
Mas no restante das competições (em especial aquelas narradas pelo Galvão Bueno), super apoiado!
🙂
A narração é indispensável, e te mostro porque. Teve uma época que eu acompanhava com afinco o Brasileirão, e como não tinha TV fechada, sempre via o jogos num aglomerado de bares, para poder escolher qual partida assistir. O problema é que sempre, na transmissão do bar ao lado, o gol acontecia alguns segundos antes. O sinal da TV sempre estava com delay, e se eu trocasse de bar na semana seguinte, como numa brincadeira de Amelie Poulain, o delay se reverteria. Não há maior anticlímax que saber de antemão se aquela bola vai ou não entrar no gol.
Por fim fui ao estádio ver um empate sem graça entre Bahia e Santos, ao lado de um cara com um radinho de pilha que ouvia o jogo morno numa narração veloz e entusiasmante: uma grande mentira. A bola flutuava a 50 metros do gol, e na narração ela passara raspando na trave. O jogo parava com um jogador caído no meio do campo, mas a narração continuava, furiosa, vibrante. Era uma grande partida, aquela do rádio. Não fosse a constante eminência dum esbarrão, eu fecharia os olhos e ficaria só com ela, de tão boa que estava.
Por fim o jogo entra nos acréscimos e morre de vez. Os jogadores passam a trocar passes sem futuro. Os do Santos satisfeitos com o empate fora de casa, os do Bahia por não terem perdido. Mas na narração o jogo já havia acabado. Eu olhava para aqueles jogadores caminhando em campo como vacas mascando capim, e ouvia o narrador falando já de outra coisa. O jogo estava atrasado em relação à narração. Isso sim é que é delay!
Ora querer substituir os narradores de futebol pelo som dos Estádio. Grande M…..vc escreveu. Todos os demais que transmitem o jogo, a emoção enfim não podem ser punidos por A ou B que vc não gosta. É muito simples troca de Canal ou desliga o som da TV