Lembrei-me de um texto genial do conterrâneo Aparício Torelly, vulgo Apporelly, vulgo Barão de Itararé, que estranhamente não foi escrito por ele, mas por Graciliano Ramos. Explico: o alagoano Graciliano e o gaúcho Aparício foram companheiros de prisão e lá tornaram-se amigos; conheceram-se em 1936, quando o fascismo do também gaúcho Getúlio Vargas os colocou próximos. Vocês observarão que Apporelly – que recebeu seu título honorífico durante a Revolução de 1930, conforme nos explica Ernani Ssó em comentário a este post… – parecia estar muito bem. O trecho que copiei para meus 7 leitores narra uma conversa entre os dois amigos. Foi retirado de Memórias do Cárcere, do Capítulo 5 da Segunda Parte, Pavilhão dos Primários. Levei horas até encontrar o que procurava e que estava na página 187 do livro lido há muitos anos. Embriaguem-se com Graciliano e o Barão:
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.
O Barão foi colega do meu avô no Colégio Conceição, em São Leopoldo, dos jesuítas. Eram amigos, apesar das diferenças ideológicas e de convicção religiosa. E não sei como, meu avô convenceu o Barão a se crismar, terminando por ser seu padrinho. Saíram de lá, e o Barão foi cursar Medicina (meu avô foi pro Direito). Mas empacou na faculdade, por conta de uma rusga com um professor que o reprovava sempre numa determinada cadeira. Um dia meu avô o encontrou e fez a cobrança: afinal, Aparício, quando é que vais sair daquela cadeira? Cadeira? Mas que cadeira? Aquilo é um sofá!!!
Ou seja, ele sempre soube rir do próprio infortúnio. Quando a polícia do Getúlio empastelou seu jornal, colocou uma placa na porta: “Entre sem bater”. Acho que nisso ele foi único.
Navegador, a capacidade de rir de si próprio é uma das qualidades que mais gosto nas pessoas. O Barão sabia fazer isso como ninguém.
Sem dúvida, é uma qualidade fundamental. A falta dela é a grande característica dos chatos.
Graaaaande verdade!
O Barão de Itararé, ou Aparício, tem seu lugar merecido no anedotário nacional. Quanto a Graciliano, este escreveu um dos melhores livros brasileiros de todos os tempos: Memórias do Cárcere. Boa lembrança, Milton.
genial! Desculpa a comparação pouco prestigiosa, mas me lembrou a Pollyanna dos meus 10, 11 anos de idade. Agora tenho uma referência para o jogo do contente mais prestigiosa e mais adequada para a minha idade…
Brincadeira! O notável nesse rir de si mesmo é, além do senso de humor, a inteligência!
bjs, Flávia
É, Flávia. Perfeito.
Só uma correção, Milton: o personagem Barão de Itararé nasceu durante a revolução de 30. Antes era mencionado apenas como “nosso querido diretor”, em notas elogiosas que o dito desmentia terem sido escritas por ele mesmo, no jornal A Manha. Os detalhes estão num livrinho que escrevi sobre o Barão nos anos 80.
A clássica “filosofia do irlandês”
In life, there are only two things to worry about—
Either you are well or you are sick.
If you are well, there is nothing to worry about,
But if you are sick, there are only two things to worry about—
Either you will get well or you will die.
If you get well, there is nothing to worry about,
But if you die, there are only two things to worry about—
Either you will go to heaven or hell.
If you go to heaven, there is nothing to worry about.
And if you go to hell, you’ll be so busy shaking hands with all your friends
You won’t have time to worry!