Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:
– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.
Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.
O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.
De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.
Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.
Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.
NÃO ESQUEÇA DO ANTES
by Ramiro Conceição
Sim, sei, seria bom se neste instante, a amar, eu estivesse… Mas nem tudo é bom… E isso não quer dizer que seja mau… A vida são conjunturas!: às vezes resta somente a difícil adaptação ao possível que não necessariamente é o mais prazeroso. Nessas condições, o importante é não perder o norte conquistado antes, que nos moveu à frente, com inocência, quando das escuras distâncias…
Mas… Seria tão bom… Se eu estivesse a amar…
(Ora, ora, ora… Chega de autocomiseração!… O amor que se aprendeu continua a resplandecer…: não esqueça dos caminhos e dos silêncios prediletos, sob o sol…; não esqueça das dúvidas dos filhos a exigir a presença contínua até quando for possível…; não esqueça dos amigos…; não esqueça dos livros a ler…; não esqueça dos sonhos que elucidarão as coisas que parecem não ter pé e nem cabeça…; não esqueça que talvez um desconhecido amor esteja a florescer…; e principalmente não esqueça que, antes da barriga da mãe, toda a gente esteve na barriga de um esperançoso teto repleto de lâmpadas…).
Terminei O Burgomestre de Furnes há exatamente uma semana. Meu primeiro Simenon. Gostei, mas você, Ssó e Charlles Campos elevaram demais minhas expectativas. Bem, vou ler outros pra entender melhor o autor. O próximo será A Neve Estava Suja, que foi relançado esse ano.
A L&PM lançou há pouco dois volumes com os contos completos de Maigret. Tá valendo.
Fica o convite para conhecer o Clube do Crime, página dedicada ao catálogo policial da Companhia das Letras, que está republicando a obra de Georges Simenon no Brasil!
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