No tempo que preto não entrava no Bahiano
Nem pela porta da cozinha
Gilberto Gil, em Tradição
Porto Alegre é uma das sete cidades do mundo que têm dois times campeões mundiais — você saberia dizer quais são as outras seis? (*) — e uma história de nosso futebol jamais poderia tangenciar a Liga dos Canelas Pretas, formada por negros em nossa cidade no início do século XX.
A referência feita por Gilberto Gil na canção Tradição, de 1973, é ao Clube Bahiano de Tênis. O tênis é ainda um esporte de elite, mas até 1952 havia clubes de futebol no país que não aceitavam jogadores negros. O último grande clube a incorporar negros a sua equipe foi o Grêmio de Porto Alegre. Na época, por iniciativa do presidente Saturnino Vanzelotti, o clube foi atrás de um grande jogador negro que desse fim, em grande estilo, à discriminação no clube. E contratou o Tesourinha, ex-ídolo do Internacional, que estava no Vasco da Gama do Rio de Janeiro. A chegada dele ao Grêmio seria um choque nos colorados e um grande reforço para o Grêmio. Mas Vanzelotti pensava mais longe: o presidente queria Tesourinha para servir como emblema contra o racismo.
— É de um ídolo como você que eu preciso para provar a todos que esse racismo é errado — teria dito a Osmar Fortes Barcellos, o Tesourinha.
Então, no dia 4 de março de 1952, aos 32 anos, Tesourinha vestiu o novo uniforme para um treino no velho Estádio da Baixada. Um público numeroso nas sociais aplaudiu o novo contratado, enquanto alguns conselheiros reprovaram a contratação, alegando que era a quebra de uma importante tradição do clube. Era apenas um dia de treino, mas uma data histórica para o futebol gaúcho. É incrível pensar que, seis anos depois, o mundo reverenciaria Pelé, um negro de 17 anos, no Mundial da Suécia.
A Liga dos Canelas Pretas
Era o final da longa caminhada iniciada pela Liga dos Canelas Pretas. Este curioso nome era como a população conhecia a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense, formada no início do século XX na região do antigo bairro da Ilhota, em Porto Alegre, unicamente por “homens de cor”. Também era chamada de Liga “das” Canelas Pretas ou simplesmente Liga Canela Preta.
É muito complicada qualquer pesquisa a respeito dela. Quase não há fotos ou registros escritos e o que conseguimos abaixo é o resultado da consulta a mais de vinte fontes diferentes.
Tudo começou com a discriminação — naturalíssima, na época — praticada pela Liga Metropolitana. Ali, só podiam jogar times de homens brancos. Em resposta, os Canelas Pretas estabeleceram sua liga entre 1910 e 1915, atingindo grande reconhecimento na década de 1920. Como sempre acontece no Rio Grande do Sul, havia dois grandes adversários: o Bento Gonçalves e o Rio-Grandense. Mas havia outras equipes menores, como o Primavera (dos arredores da Rua Gonçalves Dias), o Primeiro de Novembro (formado por funcionários do Forno do Lixão), o Oito de Setembro (da área então chamada de Colônia Africana, hoje o bairro Rio Branco), mais União, Palmeiras, Aquidabã e Venezianos, totalizando nove clubes associados.
Mesmo dentro da Liga havia certa segmentação. O Rio-Grandense (não confundir com outros times homônimos) era um time de mulatos, os chamados “mulatinhos cor-de-rosa”, formado por funcionários públicos e de hotéis. Já o Bento Gonçalves era um time majoritariamente de negros, formado por engraxates e outros profissionais, quase sempre muito pobres.
A discriminação tinha a ver com a sociedade da época, mas também com a estrutura urbana de Porto Alegre. Havia guetos negros como a Colônia Africana, atual bairro Rio Branco, e outros bairros étnicos, o que poderia ajudar a explicar a segregação racial do futebol local. Ou seja, a Liga da Canela Preta e toda a rejeição por parte da liga branca são fatos que não podem ser isolados da dinâmica urbana.
Nos anos 20, a Liga Metropolitana criou sua segunda divisão (a “liga do sabão”, composta pela classe média baixa), absorvendo os melhores jogadores dos Canelas Pretas, o que acabaria por fazer desaparecer a Liga na década de 1930 (possivelmente em 1933, início do profissionalismo no futebol local).
Antonio Carlos Textor, autor do filme A Liga dos Canelas Pretas, fala a respeito das dificuldades que enfrentou na realização da obra:
— Os registros oficiais da liga se perderam na enchente de 1941. Essa história foi praticamente ignorada pela imprensa local e sobreviveu na memória oral da comunidade negra e em raríssimas fotografias. Muita gente, inclusive entidades ligadas ao movimento negro, desconhece esse episódio.
A existência da curiosa Liga de nome peculiar serve apenas deixar evidente as dificuldades dos ex-escravos e seus descendentes para se integrarem à sociedade.
O Internacional
O Internacional teria o primeiro registro de um negro em sua equipe no ano de 1913, o zagueiro Dirceu Alves. Porém, até 1928, apesar de o Internacional possibilitar a inclusão de indivíduos não oriundos da elite em seus quadros, era quase inexistente a presença de jogadores negros em seus quadros. Na década de 30, o Internacional também contribuiu para o fim da Liga dos Canelas Pretas, pois passou a utilizar muitos jogadores negros em seu grupo. A atitude acabou fortalecendo a equipe, absolutamente hegemônica nos anos 40, além de criar o carinhoso apelido de Clube do Povo. Mas os jogadores da Liga não vieram para o Inter por algum amor abnegado. Os atletas negros se transferiam atrás do pagamento de salários, ainda que muito baixos.
O Grêmio
A história da presença de negros no Grêmio é muito contraditória. Além da foto abaixo, que mostra o Grêmio com dois negros em sua equipe nos tempos do lendário goleiro Eurico Lara, que permaneceu no clube entre 1920 e 1935 — quem seriam? –, pesquisas recentes realizadas pelo clube indicam que os primeiros negros (ou pardos) a atuarem foram os Irmãos Carlos e Alfredo Mostardeiro, na equipe principal a partir de 1911 (tendo ingressado no clube em 1909 e participado da segunda equipe em 1910).
O que se sabe é que, a partir dos nos 30, o tricolor não teve negros em suas esquadras até a chegada de Tesourinha em 1952.
Uma crônica do gremista e mulato Lupicínio Rodrigues, publicada no jornal Última Hora em 6 de abril de 1963 (Coluna Roteiro de Um Boêmio) vem em nosso auxílio. Ela está publicada abaixo, finalizando o texto.
Domingo, estive em um churrasco da Sociedade Satélite Prontidão, onde se reúne a “Gema” dos mulatos de Pôrto Alegre. Lá houve tudo de bom, bom churrasco, boa música e boa palestra. Mas, como sempre, nestas festas nunca falta uma discussão quando a cerveja sobe, lá também houve uma, e, esta foi a seguinte. Uma turma de amigos quis saber porque, sendo eu um homem do povo e de origem humilde, era um torcedor tão fanático do Grêmio. Por sorte, lá estava também o senhor Orlando Ferreira da Silva, velho funcionário da Biblioteca Pública, que me ajudou a explicar, o que meu pai já havia me contado. Em 1907, uma turma de mulatinhos, que naquela época já sonhava com a evolução das pessoas de côr, resolveu formar um time de futebol. Entre estes mulatinhos estava o senhor Júlio Silveira, pai do nosso querido Antoninho Onofre da Silveira, o senhor Francisco Rodrigues, meu querido pai, o senhor Otacílio Conceição, pai do nosso amigo Marceli Conceição, o senhor Orlando Ferreira da Silva, o senhor José Gomes e outros. O time foi formado. Deram-lhe o nome de “RIO-GRANDENSE” e ficou sob a presidência do saudoso Julio Silveira. Foram grandes os trabalhos para escolher as côres, o fardamento, fazer estatutos e tudo que fôsse necessário para um Clube se legalizar, pois os mulatinhos sonhavam em participar da Liga, que era, naquele tempo, formada pelo Fuss-Ball, que é o Grêmio de hoje, o Ruy Barbosa, o Internacional e outros. Êste sonho durou anos, mas no dia em que o “RIO-GRANDENSE” pediu inscrição na Liga, não foi aceito porque justamente o Internacional, que havia sido criado pelo “Zé Povo”, votou contra, e o “RIO-GRANDENSE” não foi aceito. Isso magoou profundamente os mulatinhos, que resolveram torcer contra o Internacional e, sendo o Grêmio seu maior rival, foi escolhido para tal. Fundou-se, por isso, uma nova Liga, que mais tarde foi chamada de “Canela Preta”, e quando êstes moços casaram, procuraram desviar os seus filhos do clube que hoje é chamado o “CLUBE DO POVO”, apesar de não ser êle o primeiro a modificar seus estatutos, para aceitar pessoas de côr, pois esta iniciativa coube ao “ESPORTE CLUBE AMERICANO”, e vou explicar como: A Liga dos “Canelas Pretas” durou muitos anos, até quando o “ESPORTE CLUBE RUY BARBOSA”, precisando de dinheiro, desafiou os pretinhos para uma partida amistosa, que foi vencida pelos desafiados, ou seja, os pretinhos. O segundo adversário dos moços de côr foi o Grêmio, que jogou com o título de “Escrete Branco”. Isso despertou a atenção dos outros clubes que viram nos “Canelas Pretas” um grande celeiro de jogadores e trataram de mudar seus estatutos, para aceitarem os mesmos em suas fileiras, conseguindo levar assim, os melhores jogadores, e a Liga teve que terminar. O Grêmio foi o último time a aceitar a raça porque em seus estatutos, constava uma cláusula que dizia que êle perderia seu campo, doado por uns alemães, caso aceitasse pessoas de côr em seus quadros. Felizmente, essa cláusula já foi abolida, e hoje tenho a honra de ser sócio honorário do Grêmio e ter composto seu hino.
(*) Milão, Madrid, Montevidéu, São Paulo, Buenos Aires e Avellaneda.
Gil, em Tradição, disse também:
“…Conheci essa garota que era do Barbalho
No lotação de Liberdade
Que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios
Indo do bairro pra cidade
Pra cidade, quer dizer, pro Largo do Terreiro
Pra onde todo mundo ia
Todo dia, todo dia, todo santo dia…”
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VISITA NOTURNA
by Ramiro Conceição
Hoje, à noite, apareceu-me n’alma uma fisgada… Era uma tristeza vestida de branco, de preto, de culpa, mas não sei ao certo por quê. Certamente, era uma esquecida e foragida que resolveu me visitar. Percebi de imediato que viera de longe…, pois seu figurino exaurido revelava que houvera superado, com muita dificuldade, todas as barreiras e poeiras do labirinto de minha autodefesa que construíra por sobrevivência, por décadas.
Desde o pecado de Sodoma, nessas horas, o mais recomendado é a hospitalidade: ofereci-lhe um copo d’água, que foi sorvido com avidez; ofertei-lhe também um banho quente e, com cuidado, lhe doei o traje mais adequado que possuía…; enquanto se banhava, abri um vinho e, concomitantemente, lhe preparei um caldo consistente… Ajeitei a mesa. Apaguei as luzes. E acendi meu candeeiro alimentado por utopias, estrelas e fantasias… Ela retornou mais velha, ferida ainda, mas um pouco mais bonita… Sentou-se ao lado oposto da mesa e em silêncio beijou o cálice, a olhar-me enigmaticamente…
Impregnado de vinho, por fim, perguntei:
– Quem é você?
– A sua geração…