Quando disse que não trabalharia para a Charlie Hebdo, Carlos Latuff estava apenas sendo coerente consigo, coisa que nem todos apreciam. Ele, assim como eu, é ateu, não antiteísta. A Charlie Hebdo é antiteísta, o que não justifica, obviamente, qualquer agressão a ela. Acho que há profundas e milenares questões culturais a serem respeitadas antes de serem combatidas sem maiores cuidados. Mas a maioria dos leitores são desatentos e incompreensivos. Muitos acham que a menor crítica à Hebdo significa “relativizar o assassinato de jornalistas”. Aliás, muita gente também confunde-se sobre posições políticas de Latuff. Como tenho a honra de ser seu amigo pessoal e de ter jantado e principalmente tomado carradas de cafés com ele — o dele sempre com leite — sei de seus posicionamentos. O cara é anti-sionista, mas não é contra os judeus. E, na raiz de todas as suas opiniões, está a crença de que não há democracia no mundo e de que a humanidade provavelmente acabará antes de ver isso. E, bem, sou tão cético quanto ele e acho que, se ele não duvidasse de tudo, não seria o chargista brilhante e planetário que é. Charge boa é contra, não a favor.
Aprovo tanto o assassinato do pessoal do Charlie Hebdo quanto aprovo que entrem atirando aqui no Sul21, onde estou neste momento. Por favor, não façam isso. Agora, como disse o César Miranda, os caras do Hebdo não eram tão bons de piada assim. Eram bons para chocar. Não acho engraçado botar a virgem Maria chupando um pau ou Moisés masturbando um porco. Na minha opinião, muito do que circulava no jornal era de mau gosto. O mesmo não vale para o engraçadíssimo A Vida de Brian, do Monty Python, só para dar um exemplo de sátira religiosa de primeira linha.
No mais, quero dizer que sou ateu, que acho o avanço das religiões na política um sinal claro de atraso, que acho que a religião deve se manter no âmbito pessoal, que não gosto que tentem me vender religião e que penso que tais superstições sejam inextirpáveis da humanidade. Um mundo sem religião é uma utopia.
Quando coloquei esta opinião no Facebook, teve gente que me acusou de dizer que “os caras da revista mereceram o atentado”. Se você também achar isso, digo você não é um bom leitor.
E agora, fala sério, você trabalharia na Charlie Hebdo?
Da recusa a outras complexidades. Ou, a Islamofobia mostra de novo a sua face no caso da Charlie Hebdo. Comentário meu num acalorado debate no blog do Charlles Campos
http://charllescampos.blogspot.ca/2015/01/michel-houellebecq-e-suas-tentativas-de.html#comment-form
Essas simplificações culturais prêt-à-porter não servem a ninguém, caro. Nem a “nós” modernos ocidentais (a quem serve esse binarismo Ocidente-Oriente? Você é melhor leitor de Said do que eu, então não vou nem te aborrecer com um longo parágrafo sobre a influência do Orientalismo nesse tipo de maniqueísmo cultural), nem a esse outro lado do hemisfério que de repente precisa comportar todas as demais tradições culturais e étnicas não-liberais e não-burguesas.
E não pense que eu me excluo de cometer esse tipo de deslize. Esse outro lado feio do Orientalismo, a Islamofobia, parece estar no DNA de qualquer pessoa que professa mais ou menos fé nos princípios liberais.
Não se engane então. Eu rejeito essa farofa ideológica que lê o Islamismo radical como um marxismo em potencial (uma espécie de política revolucionária espiritual como escreveu muito equivocadamente Michel Foucault nos seus textos sobre a Revolução Iraniana). A esquerda que faz esse tipo de confluência entre mundos de outro modo tão compatíveis como água e óleo (Marxismo e Jihadismo ou mesmo Marxismo e Xiismo) troca os pés pelas mãos e se embanana em seus escrúpulos multiculturais e discurso anti-imperialista. Nisso eu concordo piamente com vocês. O discurso anti-imperialista Muçulmano não é o mesmo em absoluto daquele discurso da New Left. Isso ficou bastante claro na Revolução Iraniana, onde o horroroso império Americano foi trocado por outro horroroso projeto político, a teocracia dos Ulama. Então eu estou de acordo que o Islam não está acima ou além do bem e do mal. Nem muito pouco faço uso da farofa ideológica da Nova Esquerda que levanta o Islam como uma espécie de terceira onda da Internacional Comunista.
Mas veja bem, Charlles, acho saudável tentar escapar dos dois lados dessa antípoda de simplismo cultural.
O argumento de que o Islam é essencialmente uma religião beligerante é uma grande falácia. De princípio e falácia política também (Orientalista). Esse tipo de simplismos equivale por exemplo a fazer cruzada contra uma religião inteira como o Cristianismo por causa de uma minoria barulhenta como a Westboro Baptist Church, ou satanizar o Catolicismo inteiro por conta da Opus Dei.
Olha, diferente de você e do Matheus, eu convivo diariamente com o cotidiano de uma comunidade Muçulmana. O Islam da maioria não é nem Malala, nem os assassinos do Charlie Hebdo. Nem a releitura liberal-secular de uma feminista Muçulmana que luta contra a misoginia religiosa dessa menina extraordinária, nem a luta por um espaço teocrático absolutamente esvaziado da presença de valores Ocidentais como nos terroristas Franceses.
Na realidade, o cotidiano de um Muçulmano médio, Sunita de Diáspora por exemplo, é tão aborrecido e tão burguês quanto o cotidiano de um Protestante médio branco Ocidental. Leitura do Alcorão cedo de manhã, orações (cinco vezes ao dia como comanda o princípio do Salat), modéstia no aparato pessoa (higiene, vestimenta), e outras restrições de usos e costumes. Há as periódicas restrições dietárias (o mês de jejum) e a exigência de repetição da vida do Profeta, mas nada que se diferencie em absoluto da Quaresma cristã ou do princípio ético da Emulatio Christi. Enfim, a vida cotidiana do Muçulmano médio é banal como a vida de um protestante médio. Nada de delírios com orgias celestes regada a virgens, ou Jihadismo, ou ódio aos princípios liberais. Submissão, que é o sentido do Árabe Islam, para esse Muçulmano médio significa submissão ética. Não há aí em absoluto a idéia de que deve se submeter o outro, o infiel, a Alah, muito menos à força. O que incomoda, na minha experiência, o muçulmano médio no seu desconforto com princípios ocidentais são coisas muita mais mundanas, de usos e costumes, do que questões geopolíticas ou guerras santas. Eles se incomodam se não se dá espaço para a sua liberdade religiosa de orar o Salat cinco vezes ao dia (por exemplo no contexto da universidade ou do escritório de trabalho). Ele se aborrece com menus de restaurante que não oferecem comida pura (Halal). Ele se choca e se aborrece com o erotismo na televisão. Quer dizer, banalidades. O mesmo banal da moralidade Judaico-Cristã.
Sendo bastante honesto com você, de todas as centenas de alunos Muçulmanos que eu tive aqui em Toronto – e olha que eu dei aula para muitos, para alunas vestindo o mais comedido dos véus (hijab) e para alunas de burka, alunos homens que saíam no meio da minha aula para rezar o Salat e Marxistas árabes pró-Palestina – digo com toda tranquilidade que esses alunos nunca me deram nem perto do trabalho que certos alunos evangélicos e protestantes deram, com a sua intolerância, discurso raivoso e ressentido e sobretudo dificuldade de dialogar num espaço aberto e democrático.
Outra coisa, Charlles. Essa discussão da burka anda bem batida. A burka, essa vestimenta que cobre o corpo inteiro da mulher no Islam exceto os olhos, não é nem de perto a idumentária majoritária das mulheres Muçulmanas. Isso aí são coisas comuns apenas no Islam Wahabita da Península Arábica e em mulheres (ainda assim só as bem piedosas) do Xiismo típico do Irã. Eu me autorizo a dizer que em via de regra o princípio Islâmico da modéstia sexual se traduz normalmente num leve (e muitas vezes vaidoso, delicado, estampado) véu do hijab.
https://www.google.ca/search?q=Floral+Hijab&espv=2&biw=1280&bih=685&tbm=isch&imgil=m-zHImtJO60NKM%253A%253BNG9zUaU523I4dM%253Bhttp%25253A%25252F%25252Fhashtaghijab.com%25252Fthis-falls-color-burgundy%25252F&source=iu&pf=m&fir=m-zHImtJO60NKM%253A%252CNG9zUaU523I4dM%252C_&usg=__NonNUTxSBV050T0HyarVu1DrHkg%3D&ved=0CCwQyjc&ei=sziwVJ7mG5GayQTu5IGgBA#imgdii=_&imgrc=m-zHImtJO60NKM%253A%3BNG9zUaU523I4dM%3Bhttp%253A%252F%252Fhashtaghijab.com%252Fwp-content%252Fuploads%252F2013%252F10%252FBurgundy-and-floral-Hashtag-Hijab.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Fhashtaghijab.com%252Fthis-falls-color-burgundy%252F%3B400%3B415
E veja só que as feministas mesmo já se curaram da crítica ao Hijab. Feminista criticando o hijab como estratégia essencialmente patriarcal é coisa de 1980.
Tem muita muçulmana, feminista, liberal (e tradicional tambem) apontando e insistindo que um percentual longe do negligenciável das mulheres muçulmanas de países como o Egito, Palestina, Indonésia e Turquia, usam o hijab liberalmente (por força das suas próprias convicções) e como estampa da sua própria identidade feminina. Leia qualquer coisa por exemplo da Saba Mahmood, que escreve um ótimo livro sobre movimentos de mulheres do Islam piedoso do Egito.
Se a mulher Muçulmana mesmo quer o hijab, faz questão da idumentária, qual é mesmo o lugar desse homem branco, “ocidental”, em clamar pela sua liberação?
Nossa, uma aula do Luiz Ribeiro eu tive aqui. Já li alguma coisa do que você referiu no Texto. Muito bom
Realmente são piadas de muito mau gosto. Não sou religioso, mas também não aprovaria imagens de santos fazendo pornografia. É falta de respeito com a religião dos outros, seja qual for.
O pessoal do Charlie Hebdo não é, ou não era, inocente. Sabiam dos riscos que estavam correndo, mas é claro que não concordo com o ocorrido. O Islã está totalmente deturpado pelos políticos islamistas. Tudo é razão para guerra e terrorismo é bom para a causa. É complicado lidar com gente assim que convence seus seguidores que explodir junto com os “infiéis” lhe trará benefícios no paraíso. E olha que tenho descendência árabe.