Três minicontos para quem reclama que eu não publico mais ficção

1. O Primeiro Beijo – Um Miniconto do Século XIX

O demônio, no ombro esquerdo dela, sussurrava-lhe:

— Beije-o agora, agora, já!

Enquanto o anjo, no ombro direito, opinava:

— Deixe-o aproximar-se mais, demonstrar inequivocamente o que quer. Um pouco de prudência poderá salvar nossa honra.

Foi quando o moço perdeu a concentração no que estava fazendo, afastou-se bruscamente e disse, em tom protocolar:

Apesar de desconhecer o grau de suscetibilidade de ambos. anjos e demônio, gostaria de interromper sua altercação a fim de dar-lhes meu parecer. Os anjos, tive pouco contato com eles; creio ter mais afinidade com o diabo e noto que ele representa meus interesses neste caso. Mas vamos direto ao objeto desta peroração. Creio que suas atuações — a dos dois — são danosas e a controvérsia inútil. Falta-lhes informações para fazer um bom aconselhamento. Então proponho encerrar esta demanda que ocorre muito antes de seu tempo. Se ela me beijar e depois não me quiser, libero-a de qualquer compromisso para todo o sempre e não anuncio a ninguém o que quer que tenha havido entre nós. O que julgo inaceitável e injusto é o fato de que, cada vez que vocês começam a brigar, sua dona mude, adotando um tom de frieza que gela meu coração. Vocês causam unicamente perturbação. Saúdo-os como se saúdam embaixadores de nações inimigas.

Findo o discurso, ele dá uma piscadela para o diabo e beija Maria Antoninha apaixonadamente. Ela, que chegava à casa dos vinte e poucos e sonhava desde a adolescência com esta culminância, gosta. Muito. Tanto que se emociona e chora.

2. Domingo

Ele odiava os finais de tarde de domingo. Não havia pior hora. A semana era suportável em sua rotina de trabalho, cansaço e sono; sábado era o dia de fazer as compras da semana, jantar com a mãe e ir ao cinema; porém aquele horário dominical de completo ócio, em que sentia possuir forças além da necessidade de produzir, era terrível. Sentado na sala, pôs um CD e começou a organizar mentalmente a agenda da semana. Sua angústia crescia à medida que via os compromissos avolumando-se. Havia os imediatos e outros, piores, que eram deixados para depois. Procurava organizar-se. Ergueu-se e, deixando o volume da música mais alto, foi ao armário de remédios procurar um analgésico. Pegou o comprimido e abriu a geladeira para servir-se de água. Viu um garrafão de vinho pela metade. Largou o comprimido sobre o esmalte branco da geladeira, apanhou o garrafão, um funil e, cuidadosamente, passou a dividir o conteúdo em garrafas pequenas de água mineral que pegou no lixo seco. Deixou três frascos iguais exatamente no mesmo nível e fechou-os. Enfileirou o resultado na porta da geladeira, desligou o som e ligou a TV.

3. Quem diria, casou-se com o corretor de seguros

Vânia acorda e decide matar-se. O celular toca : “Filha, me deu outra crise, vem logo!”. Vai à sacada e olha a rua, mas não quer pular de pijama. Veste-se e pensa na mãe: merda, como ela enche o saco. O celular de novo. A morte. Desce até a garagem, sai e acelera loucamente o carro de olhos fechados. A despesa não supera a franquia.

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