Como você ouve música? Há mais de 20 anos, li um artigo do brilhante crítico musical J. Jota de Moraes em que eram descritas as diversas formas de se ouvir música. Se a classificação é do professor, as explicações sobre como age cada grupo são minhas e peço desculpas póstumas a ele pela irreverência de meu texto. Os grupos:
Os Ouvintes de Grau 1: Os que ouvem com as pernas.
Estes seriam os ouvintes mais primários, os simples. A música (ou o ritmo) que lhes entra pelos ouvidos dirige-se a suas pernas ou à deleção sumária. São as pessoas que ouvem música apenas para dançar ou para servir de fundo sonoro a outras atividades. Na verdade, eles não se preocupam com a fruição do fenômeno musical, pois desejam apenas o ritmo ou o preenchimento de silêncios. As músicas que são tocadas em volume baixo dentro de empresas ou em alguns encontros, são exemplos de música de fundo que está lá não para ser ouvida, mas com a finalidade de preencher alguma lacuna que não conheço, pois nada é preenchido em mim pela chatíssima música-ambiente. A New Age é, em minha opinião, o ápice desta arte que existe para não incomodar. Já a música de dança não pode ser tratada da mesma forma e obriga seu apreciador a fazer movimentos corporais, às vezes a cantar junto (se houver algo a cantar) ou a bater o pezinho, no mínimo. A maioria das pessoas dos outros graus também tem o hábito de dançar, mas muitas delas, se a música for muito ruim, turbinam-se antes com um pouco de álcool. Sendo rigoroso, diria que as pessoas do grau 1 não ouvem música, ouvem ritmos ou tranquilizam-se com o preenchimento dos eventuais silêncios perturbadores.
Os Ouvintes de Grau 2: Os que ouvem com o coração.
Este caso é uma evolução do anterior. Aqui a música já é ouvida, mas desvia-se de seus cérebros e toma um caminho estranho, mais curto que os das pernas: o do coração. Trata-se daqueles seres que ficam relacionando músicas com períodos de suas vidas, são os que ficam amorosos e se aninham a seus amores quando é executada “a nossa música”… Para estes seres, a música existe para lhes sugerir fatos e coisas que estão no mundo ou em sua memória. Normalmente, são pessoas nostálgicas e que ficam facilmente embevecidas. Um dos efeitos colaterais desta postura é que, com a idade, eles não conseguem manter suas contemporaneidades, ficando agarrados às músicas de sua juventude e que são invariavelmente melhores que as atuais… Mais: é perigoso andar de carro com alguém de grau 2. Certa vez, estava de carona com uma figura destas quando um alucinógeno dos anos 80 começou a ser executado no rádio do carro. Aquilo fez com que o motorista de grau 2 ficasse tão transtornado com suas memórias e saudades, que voltou-se para mim a fim de contar sobre um remoto, saudoso e tórrido idílio embalado por aquela melodia. Só que o implacável sinal fechou e J.C.A. foi de encontro a um carro que parara metros adiante. Antevendo a desgraça, levantei os joelhos, porém fui atirado violentamente para a frente e quebrei o painel do carro com eles. Afirmo-lhes que o painel do Toyota Corolla destrói-se facilmente com uma boa joelhada e que nossos joelhos não sofrem absolutamente nada. Nem as calças. Experimente! Voltando a nosso assunto, completo dizendo que o ouvinte de grau 2 têm enorme sensibilidade às melodias, mas não costuma preocupar-se com o restante da música, nem com o trânsito.
Os Ouvintes de Grau 3: Os que ouvem com os ouvidos.
Neste caso, a música que nos entra pelos ouvidos vai para majoritariamente para dois locais de nosso corpo: o coração e o cérebro. Depois de passar pelos órgãos citados, o ser de grau 3 pode até dançar e bater o pezinho acompanhando a música, mas ele registra o que está ouvindo. J. Jota de Moraes, segundo lembro, foi bem mais arrogante e chamou este grupo de “Os que ouvem estruturas”. Não quis imitá-lo, mas reconheço a pertinência da expressão. Se a audição do primeiro grupo é determinada pelo bate-estaca e pela não-audição e a do segundo pela melodia, este grupo identifica verticalmente o cluster sonoro oferecido e consegue estendê-lo pelo tempo da música. São pessoas exigentes e normalmente não são compreendidas pelos outros grupos. Por exemplo, detalhes difíceis de serem caracterizados podem provocar-lhes violenta ojeriza. Muitas vezes, a pessoa de grau 3 não sabe porque detesta determinada música. Ele apenas detesta e protesta contra ela, fato que parece uma excentricidade incompreensível às pessoas de grau 1 ou 2. Tais posturas só podem ser toleradas por outro ser de grau 3 que, mesmo discordando eventualmente da avaliação, irá respeitá-la. Estas pessoas podem direcionar seu amor à música para vários estilos. Por exemplo, eu gosto de música erudita, o Tiago Casagrande de heavy metal — e, diga-se de passagem, é inteiramente compreendido pelo ex-roqueiro Milton Ribeiro –, o Idelber Avelar e a Mônica Alves para a música popular brasileira, o Manoel Carlos para suas raízes nordestinas, etc. Certamente, nenhum gênero detém a hegemonia da “boa música”. E a coisa pode piorar: o pianista erudito Nélson Freire gosta de musicais americanos, o guitarrista Keith Richards (Rolling Stones) ama Brahms, Leonard Bernstein dizia que não há nada melhor que Norwegian Wood (dos Beatles), Keith Jarrett disse pretensiosamente que gostaria de ser Bach e Jimmy Page (Led Zeppelin) declarou que preferia ter nascido negro e com o sobrenome King… Enfim, pode haver grande admiração entre os gêneros e há pessoas de grau 3 que são autenticamente “multidisciplinares”, o que é outra coisa incompreensível aos graus 1 e 2.
Observação final: O ilustre professor da USP J. Jota de Moraes faleceu em 2012. Nos últimos anos, estava ainda muito produtivo e ministrava cursos sobre a História do Violino em São Paulo. Antes, ministrou uma lotadíssima Introdução à Música Contemporânea. Não lembro se a abordagem que ele dava ao assunto continha tantos exemplos e bom humor. Diria que sua seriedade ao criar a classificação era… média. (Mas sei que dizemos muitas verdades usando um tom pouco solene.) Esteja onde estiver, peço muita calma ao senhor cuja foto publico ao lado.
Não me queira mal, professor. (Há um real paradoxo entre seu olhar ameaçador e seus textos, sempre tão gentis.)
belíssimo post, e o “disclaimer” com o J. Jota também ficou muito boa, bem humorada, clara.
e agora eu tenho uma boa imagem mental pra evocar sempre que alguém insiste nos monstros típicos produzidos pelos ’80. argh! 😀
Eu não ia comentar, pq achei que já andei exibida demais no fim de semana. Mas é que fico vendo essa caixa vazia desde a madrugada, aí me da nervoso. E solidariedade. Não posso ver alguém falando sozinho. Com senso de humor, então?
Acontece que não concordei e não gostei. O sr Moraes é muito esquemão, e elitista. É uma visão muito hieraquizante da “audição” e do consumo musical. E nessa hierarquia quem está lá no alto? “Nós”, os bons, os sofisticados.
Eu me identifico intensamente com os 3 degraus e fiquei “ofendida” quando passei pela ralé. Vc não acha, Milton?
São 3 categorias de ouvintes? ou são 3 categorias de audição, das quais qualquer ouvinte potencialmente pode lançar mão? Os realmente sofisticados, são aqueles que podem lançar mão das 3 categorias. Com licença, a exibida pede passagem…
Abç, f
ah (1); ponto para o humor do seu texto (sempre).
ah (2): não vejo nada de ameaçador. Acho medroso! tadinho!
Concordo plenamente. grau evoluído em relação ao outro é uma bobagem. Existe sim essa galera do grau 3 que não suporta o grau 1, mas isso deve ser chato pra caralho. Saber ouvir das 3 maneiras sem preconceito é ser feliz. 😀
Milton e Flávia, existem, ainda, os ouvintes de Grau 4 e 5 e, praticamente, é impossível separá-los em categorias! Vamos a eles!
Tais seres são aqueles que, apesar de surdos, mudos e cegos, são capazes de ouvir, falar e ver a música! Esses – os denomino de Artistas!
Somente eles são capazes de – ao ouvir, falar e ver uma música – inventar uma nova música !
Contudo, para ser um deles, a VIDA exige alguns detalhes…. Tais pormenores serão apresentados, num poema, no próximo sábado.
Ate lá!
Saudações poéticas, aos dois!
Ai Milton, tá liberado o papo viajandão? É que falar de música, dá nisso…
Então senta que o papo cabeça vai ser comprido.
Hoje minha filha mais velha voltou de uma temporada nos EUA de quase 4 meses. Sabe o que ela me deu (hoje no final da tarde)? um iPod.. Justo na horinha que eu estava saindo para a minha caminhada diária. E ela é tão fofa que não quis me dar ele “em branco”. Então ela pôs lá músicas que ela tinha certeza de que não erraria comigo: Caetano Veloso.
E eu saí bem bela pela primeira vez na vida com fones de ouvido. Uma parte do meu itinerário é na beira da Lagoa da Conceição. Normalmente eu já fico “locona” só com a caminhada, depois de 20 minutos, quando eu sinto claramente a endorfina entrando na corrente sangüínea.. Mas hoje,… o negócio foi tipo…drogas pesadas.
Mesmo antes da endorfina, no início da caminhada eu já comecei a viajar, porque havia a música nos meus ouvidos e tb as suas palavras aqui a me provocar. E eu sentia o som escorrendo pelos meus ouvidos passando pelo coração (cada vez mais acelerado pela caminhada) (grau 2?) e atingindo as pernas (grau 1?). E eu já não sabia (grau 3?) se o rritmo era dos passos ou da música. E eu já não sabia se caminhava ou se dançava. (Olhei para os lados para ver se alguém me olhava estranho. Achei que uma mulher ria . Não sei se para ou de mim.).
Eu lembrei do comentário do poeta sobre os graus 4 e 5 e que eu havia pensado E há a escuta com a alma . Será que é o mesmo que ouvir com o coração? Acho que não. Pelo que vc explicou isso que eu estou tentando pensar com essa imagem vaga da alma é algo mais profundo, que não é nem uma comoção barata nem uma racionalização da escuta..
Quando eu cheguei na Lagoa, e já era noite, eu a percebi com olhos tomados de música, ou com olhos conectados à alma tomada de música – de uma música que me fala à alma. E eu me abri a essa percepção e fiquei conversando internamente com seu texto. Sentia a música entrando nos meus ouvidos, no ritmo cardíaco da caminhada, e, como que se misturando à endorfina ou fabricando-a também, eu ouvia com todo o corpo, afetando minhas percepções. Era como se a música que escorria nos meus ouvidos se derramasse também pelos meus olhos na forma das luzes que se derramavam sobre a lagoa (prata, dourados, azuis, vermelhos – musicais como nunca haviam sido) e a lua atrás das nuvens num halo dourado.
Será que isso é poesia, Poeta? Não, é música! (e vida!)
Acho que é por isso que as pessoas dançam e se sacodem. Por isso o rosto do maestro se crispa, e o músico fecha os olhos e se entrega a um enlevo francamente corpóreo, de prazer físico.
As conversas caminham em ciclos e eu vou chegando ao mesmo papo que tive outro dia com uma amiga a propósito de um músico que haviamos assistido, eu que eu disse que me lembrava Clarice Lispector, que dizia que escrevia com o corpo: Bebê Kramer, o músico, toca com o corpo. Música é sempre corpo. Música é com o corpo e é no corpo.
Te deixo aqui uns versos de uma música linda que minha filha escolheu para mim e que eu não conhecia – e também me fez pensar no seu post enquanto caminhava com meu novíssimo iPod:
É só ter alma de ouvir
E coração de escutar
Eu nunca me farto do unissono com a vida
(Caetano Veloso – Sou seu sabiá)
…
Ai Milton, aquela hesitação…
Ficou muito comprido
Mando?
Vou tampar o nariz
foi
Muito bom, Flávia, eu acho que, às vezes, posso me situar em todos os graus… Mas, no mais das vezes, sou grau 3… rss
Sou melômano e fim!
Mas acho que agora, Ricardo, ele deve estar meio assustado, quiçá arrependido, pensando: o que eu fui me arrumar… um poeta e uma doida!…
hehe
hahahaha
Mas Flávia, teu comentário foi o melhor que recebi em meses. Levo esta classificação como uma piada com algumas verdades. Só não falem mal do J. Jota! É um tremendo crítico! Sobre a extensão do comentário: eu mesmo já deixei comentários por aí que eram o triplo do post. E olha que era a posts do Idelber e do Torre, coisa grande mesmo! Sem problemas.
Não entendi muito bem teus comentários, Branco. O blog é onde, de certa forma, me coleciono. As coisas às vezes retornam revisadas. Sempre foi assim, publiquei duas vezes novelas inteiras – uma de 17 capítulos, lembras? Então, como leitor antigo – e um de meus preferidos – não deveria haver estranheza, certo?
Abraço para o Branco e beijo para a Flávia, a preferida das aranhas catarinenses.
Milton ,
sou nova leitora e adorei o post. Lindo mesmo. Estou com “Jimmy Page (Led Zeppelin) que declarou que preferia ter nascido negro e com o sobrenome King”, sou louca pelas divas do Jazz.
Ah obrigada por colocar meu modesto blog entre os seus favoritos, “”O Pensador Selvagem ” já está na minha lista diária.
Um grande abraço
Iza
Putz, assim tu me ferras com a turma do duplo sentido!
mas tudo bem já ando pensando em assinar Raul em blogs “masculinos”… para evitar problemas, sabe? Muita gente me pedindo em casamento, etc…
mas já disse tapa em aranha: tô fora!
caraca, izabella! agora que vi que eu estou lá tb! Que vergonha que me deu! A gente agradece é? Então ‘brigada tb, Milton!
Tenho que aprender a fazer isso tb no meu blog. E aí quando a gente enche e deixa de ser favorito? como é que a gente faz? Pede desculpa e tira? aproveita quando ninguém tá olhando?
Devia haver um manual de etiqueta blogueira…
beijo, Flávia
Milton, fiquei fazendo gracinha e não agradeci o seu elogio ao meu comentário. Fiquei muito feliz. Como a Clarice Lispector dizia, eu sou uma tímida ousada. Tenho compulsão de dizer/escrever o que eu penso, mas depois morro de vergonha. Vc é muito gentil. Obrigada.
Milton, acho que sou um pouco de cada grau…
e segundo o Robert Fripp, falta um hipotético ouvinte de grau 4: ele diza que a música do King Crimson era pra ‘ouvir com cérebro’…
Muito bom!
Acho que faltaram alguns graus:
Grau Zero: É pior que o grau 1. Além de bater o pezinho a música necessita possuir uma letra explícita e melodia grudenta, pois usa somente dois neurônios. Geralmente com as palavras “te pego” ,”te agarro” “cama” “te amasso” presentes nas estrofes e ainda com presença de termos relativos a cornitude do casal. A música entra pelos ouvidos e vai diretamente ao órgão genital.
Grau -1: É aquilo que é executado em carros, geralmente veículos dos anos 80 ou 90 com suspensão rebaixada e rodas de liga leve. Alguns novos ricos também ouvem este tipo de “música” que é também executada à beira-mar. Serve somente para fazer funcionar o alto-falante subwooffer em volume máximo. Não chega a entrar pelo ouvido, pois este já foi danificado. O cérebro identifica o som pela vibração do ar nos ossos.
Muito bem, Fernando, concordo! kkk