Do Paulopes.
Se o Governo Federal tivesse dado crédito a um parecer de 1921 de Rodrigo Octavio, então Consultor-Geral da República, o Cristo Redentor não teria maculado a bela paisagem do Rio de Janeiro.
De acordo com o parecer, a imagem não podia ser instalada no morro do Corcovado em respeito ao Estado laico brasileiro.
Na época, o presidente do Brasil era Epitácio Pessoa, do PRN (Partido Republicano Mineiro).
Diz Octávio: “Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo”.
Prossegue: “A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos”
A íntegra do parecer foi publicada recentemente no site Consultor Jurídica por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade Direito da USP.
Na época, o parecer foi enviado ao ministro dos Negócios da Fazenda, que era Homero Batista, advogado e jornalista de economia.
A íntegra mostra que a instalação do Cristo Redentor foi procedida de uma controversa, porque, além do Consultor-Geral, “publicistas que mais competentemente têm estudado a questão” concluíram que imagens como aquela em locais públicos “ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do número, porque as questões de consciência são questões essencialmente individuais”.
Segue a íntegra do parecer.
“Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1921.
Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda — Com o Ofício, sem número, de 6 do corrente, submeteu Vossa Excelência a meu estudo o processo relativo ao requerimento da Comissão que pretende erigir um “Monumento a Jesus Cristo Redentor” no alto do Corcovado.
Parece-me, Senhor Ministro, que há evidente embaraço constitucional para o deferimento do pedido. O Cristo é o símbolo de uma religião. O Poder Judiciário já aqui o reconheceu quando, em consequência dos incidentes de 1892, teve de se pronunciar sobre a legalidade da permanência de sua imagem nas salas do Júri. O caso foi que, negado o pedido de retirada dessa imagem feito por um jurado não católico, foi um dia essa imagem destruída por outro jurado violento e fanático.
Eu mesmo tive de me pronunciar a respeito, por isso que, sendo então Procurador da República neste Distrito, foi-me o inquérito remetido para a instauração do processo pela Justiça Federal e eu deixei de oferecer denúncia por entender que o caso não incidia no art. 111 do Código Penal, em que havia sido capitulado, por me parecer contraria à Constituição a ordem para permanência de símbolos religiosos no Júri. Em meu despacho, que foi longo, eu escrevi estas palavras que podem ter aplicação ao caso atual:
Os publicistas que mais competentemente têm estudado a questão oferecem muitos bons argumentos mesmo para provar que fato algum fora dos templos ou dos lugares reservados ao culto se deve permitir, porque esses fatos, mesmo quando o culto seja o da grande maioria da população, ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do número, porque as questões de consciência são questões essencialmente individuais.
Definido meu modo de ver, o caso, entretanto, não morreu com essa minha promoção, pois que os promotores públicos de então promoveram o processo perante a justiça local, onde, aliás, o meu modo de ver foi sancionado, pois que, denunciados os figurantes no caso, um como mandante ou inspirador do inqualificável procedimento do outro, foi o delito desclassificado do art. 111, porque se julgou que a ordem para colocação do Cristo no Júri “não era conforme a Constituição e as Leis”. Essa decisão foi proferida pelo Conselho Supremo da Corte de Apelação concedendo habeas corpus ao jurado processado como mandante e preso preventivamente, e mais tarde o mesmo princípio foi sustentado pelo despacho de pronúncia do autor do atentado, não nesse artigo, pelo mesmo fundamento da decisão do Conselho, mas no art. 185 que se refere a “ultraje à confissão religiosa, desacato ou profanação de seus símbolos, publicamente”.
Parece que esse caso pode ser considerado como precedente em relação ao caso atual. Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo. A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos.
É este, Senhor Ministro, o parecer que submeto ao critério superior de Vossa Excelência a quem, devolvendo os papéis, tenho a honra de reiterar meus protestos de elevada estima e distinta consideração.
Rodrigo Octavio”