Para meus filhos Bárbara e Bernardo Ribeiro
Da minha perspectiva, meu avô João Cunha, pai de minha mãe, sempre foi um homem muito velho. Nascido em 1888, tornou-se pai de minha progenitora em idade madura, aos 39 anos. Eu, por exemplo, já tinha dois filhos aos 39. Quando nasci, ele já ia pelos 69. Viveu até os 81 anos, idade suficiente para que eu mantivesse bastante contato com seu Mal de Alzheimer. Porém, em 1º de abril de 1964, aos 76 anos, o velho João Nepomuceno Cunha teve uma dessas janelas de lucidez que ocorrem aos que não estão no estágio terminal da doença. Naquele dia, ele compreendeu perfeitamente que o país fora vítima de um Golpe Militar. E resolveu agir para impedi-lo.
Vestido de pijamas, saiu de casa sem que minha vó notasse e dirigiu-se ao quartel mais próximo. Importante dizer que a família de minha mãe é de Cruz Alta e que, a algumas quadras da casa de meus avós, havia um enorme quartel, ao menos na minha ótica infantil. Para lá foi meu avô. Então, com gestos enérgicos, iniciou aos berros um violento discurso. Chamou os militares à ordem com as palavras fortes que fazem parte do folclore familiar e que iniciavam assim:
— Parasitas da nação!
E depois passou a desafiar os milicos, sempre aos gritos. O pessoal do quartel ficou em dúvida se deveria prender meu avô. Na verdade, prendê-lo era complicado. Em primeiro lugar, por ser um velho doente; depois, por ser uma figura muito conhecida e respeitada na cidade. Além de ser o construtor de muitíssimas das casas de açorianos da cidade, ele fora um importante maçom, tendo chegado ao mais alto grau na organização. E, na época, ser maçom era dispor de uma inesgotável reserva moral…
O comandante do quartel resolveu ligar para meu tio João Cunha Filho, dando-lhe um ultimato.
— O seu pai está aqui na frente do quartel acusando os militares de quererem entregar o país aos americanos e outras bobagens.
— Como? O Sr. tem certeza que é ele?
— Sim, ele está vestindo pijamas e já tem uma plateia de imbecis ouvindo, aplaudindo e rindo de nós. Nós teremos que tomar providências, a menos que o Sr. venha AGORA a fim de levá-lo para casa.
E lá foi meu tio, em pânico, salvar seu velho pai das garras dos militares. Enfiou-o em seu carro sob vaias dos populares que queriam ver e ouvir mais. Foi um momento de glória para toda nossa família.
Antes de mergulhar nas brumas definitivas da doença, ele ainda alternou bons e maus momentos. Nos bons, sentava-se em sua cadeira de balanço para recitar de memória poesias de Casimiro e Machado. Eu achava aquilo muito estranho, mas notava a beleza. Nos maus, ele me perseguia com pedras na mão pelo quintal do pátio. Depois, era advertido aos berros por minha avó e literalmente chorava, dizendo que não reconhecera seu neto.
E foi exatamente assim que aconteceu … Lembro do dia que isto aconteceu com muita clareza…. O pai, coitado, largou um de boca aberta na cadeira e lá se foi.
Obrigada por compartilhar esta história, Milton. Seu avô provou que todos podemos ser o desconhecido diante do tanque.
Adorei a parte final deste trecho: “ele fora um importante maçom, tendo chegado ao mais alto grau na organização. Na época, ser maçom era dispor de uma inesgotável reserva moral…”
Divertido, melancólico e que faz refletir. Os avós são a reserva moral de qualquer sociedade.