Um esforço tão grande para nada (por Leonardo Padura)

Compartilhe este texto:
Pois é, eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka
Pois é, eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka

Publicado em 30 de janeiro na Folha

O consumo de cultura em Cuba sempre foi um fenômeno polêmico e complexo. As eternas dificuldades econômicas da estrutura socialista da ilha raramente possibilitaram que se gastassem os recursos necessários para levar ao cidadão as criações artísticas mais recentes e reconhecidas consumidas no resto do mundo (pelo menos no resto do mundo com possibilidades de fazê-lo).

Mesmo assim, graças a programas culturais e educativos, o espectador cubano teve oportunidade de consumir cultura de alta qualidade oferecida pelas instituições oficiais. Nos últimos tempos, por vias alternativas, também circularam as mais recentes séries da Netflix ou HBO, os últimos filmes de Alejandro González Iñárritu e Woody Allen, e o PDF pirata de algum livro recém-chegado ao mercado.

É algo diferente –ao longo de quase seis décadas, as instituições políticas cubanas decidiram o que o cidadão deve consumir culturalmente.

Assim, desde as proibições ou barreiras ao rock e beat nos anos 1960 até a decisão de não publicar autores cubanos que vivem no exílio, sempre existiu um mecanismo institucional que pensa na melhor educação ideológica, cultural e artística do cidadão, desestimulando ou censurando o que alguém com poder decide ser prejudicial ou impróprio.

Dessa última lista constam desde livros a filmes, de partidas de beisebol profissional a shows de TV de produção local. É o que parece ter acontecido com alguns episódios do programa “Vivir del Cuento”, comédia de costumes que tem a maior audiência da televisão nacional cubana (estatal, evidentemente).

Seria possível supor que um sistema tão esmerado de controle educativo e ideológico, praticado por instituições políticas e culturais oficiais, garantiria a criação entre os cubanos de uma alta capacidade de discernimento no consumo cultural, levando-os a dar preferência a produtos de alto nível estético, conceitual, ético e humanista.

Mas os meios de comunicação nem sempre alcançam essas metas previstas, nem sequer nas condições acima descritas. Hoje, em Cuba, por exemplo, a música mais ouvida pelo povo é o chamado reggaeton ou alguma de suas variantes, uma música elementar e cansativa, com letras geralmente de enorme pobreza lírica e, às vezes, obscenas.

E não apenas o reggaeton é consumido, como se adotou o hábito de as pessoas o tocarem em suas casas em volumes altíssimos, para o incômodo de quem preferiria outra música ou o silêncio. E isso é feito com total impunidade, como se fosse sinal de identidade e até de poder.

Algo semelhante ocorre com os programas de televisão. Muitas das pessoas que conseguem acessar programas estrangeiros privilegiam os piores programas da televisão “trash” gerados por alguns dos canais hispânicos do sul da Flórida, como o célebre “Caso Cerrado”, em que algumas pessoas levam a público suas misérias éticas, pessoais e familiares diante de uma espécie de juíza.

Mas uma das maiores aberrações foi a recente promoção do “livro do ano” em Cuba. Entre os títulos preferidos pelos cubanos em 2015, o mais destacado e divulgado foi um livro de receitas culinárias! Para escancarar ainda mais a pobreza cultural desse fato, um programa jornalístico da TV oficial cubana difundiu o acontecimento e, segundo pude ler, dedicou vários minutos a uma entrevista com o “escritor” vitorioso.

O que acontece nas entranhas e na inteligência de uma sociedade quando seus cidadãos escolhem como um de seus livros do ano um livro de receitas? E quando sua televisão oficial dá mais destaque a esse fato que a grande parte da produção literária do país? Simplesmente ocorreu um processo de degradação da capacidade intelectual dessa sociedade. Ou então se está manipulando a trama cultural para que um texto sem conflitos alcance essa distinção e seja, além disso, exaltado pela altamente politizada imprensa oficial do país.

Para quem se dedica ao trabalho literário em Cuba, não é apenas ofensivo que tais manifestações se produzam à nossa volta. Os leitores cubanos não puderam encontrar em seu país um único livro ao qual dar sua preferência?

Para onde se encaminha uma sociedade na qual, com certeza, a comida nunca foi suficiente para satisfazer as necessidades da população, e, ao mesmo tempo, um livro de receitas culinárias é o paradigma da leitura que mais e melhor se difunde, consome e promove? Quais são as escolhas possíveis para os leitores cubanos quando sua principal instituição editorial, o Instituto Cubano do Livro, se propõe a editar 624 títulos no ano e só consegue imprimir 231?

Depois de tanto controlar e decidir o que devíamos consumir culturalmente, será que vamos acabar assistindo a televisão “trash”, ouvindo baixarias de reggaeton em alto volume e lendo livros de receitas de cozinha em lugar de literatura? Depois de tanto esforço e controle, estaríamos vivendo uma alarmante regressão à banalidade e ao mau gosto?

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

5 comments / Add your comment below

  1. Não vamos muito longe.
    Se esse livro de receitas fosse brasileiro e tivesse como autor(a) um(a) pseuda Chef global, talvez ela, a Chef, chegasse à ABL. Um livro de Global raivoso montado às pressas com colunas diárias de jornal, chegou lá!

  2. Esse é o resultado do infame controle estatal, no qual meia dúzia de iluminados decidem o que uma população heterogênea deve ou não deve consumir em termos de cultura, vestimenta, comida, etc. O consumo de literatura escapista e o atraso cultural é o paradoxo máximo num estado policial que entende ‘fazer o bem’ aos seus cidadãos.

  3. E o Brasil? Merval Pereira é um imortal da Academia! Nas rádios só toca porcaria! Na Teve aberta os campeões de audiência são os programs de violência explicita tipo cidade alerta…

  4. Milton: está aí um tema que merece uma discussão mais profunda. Obviamente, quando se faz uma revolução contra a ordem vigente anterior, é normal que se reprima durante algum tempo os esforços dos derrotados em retornar ao comando. Isso aconteceu na Revolução de 17, e olha que ela começou pela defesa da democracia para todos e tinha um espírito profundamente humanista. O problema é que essa repressão sempre dura demais. O que o Padura (o fantástico autor do Homem que Amava os Cachorros) revela é desanimador para nós que sempre sonhamos que o socialismo geraria um novo homem. Devemos desistir do sonho ou continuamos tentando aperfeiçoar o imperfeito. Como dizia o Gilberto Gil o perfeito joga na meta da seleção. Ou será que Cuba foi apenas mais um movimento anti-colonialismo e não uma revolução socialista porque não tinha condições objetivas para isso de acordo com os ensinamentos de Marx?

Deixe um comentário