Venho diariamente a pé para o trabalho. Saio em horários muito próximos. Às vezes às 7h10, outras às 7h20 e, se estiver muito atrasado, às 7h40. Quando se caminha numa cidade como Porto Alegre, a gente tem que estar atento a quem está próximo. Ainda não fui roubado, mas é somente questão de tempo, se depender de nosso governador. Ando com fones de ouvido, ouvindo um CD completo cada manhã, sempre de música erudita ou jazz. E vejo como os grupos de cada horário se repetem de forma diferente.
Se saio no primeiro horário, logo vejo o homem negro no café em frente ao Colégio Rosário. Ele sempre usa alguma coisa do Inter em sua roupa. Não o vi hoje, pois saí no terceiro horário, mas tenho certeza que ele estaria com um abrigo perfeitamente colorado, defendendo-se do frio. Ele come torrada e bebe de uma xícara grande. Acho que café com leite. Ainda no primeiro horário há a loira alta e desajeitada que agora passou a usar óculos para deter a luz de seu olhar azul. Ela é muito apressada, tem menos de 20 anos e, pela pressa, dorme muito ou demora para sair.
Saindo no segundo horário, os das 7h20, há o guri dos músculos. Ele sempre dá um jeito de mostrar seus bíceps ou outra coisa que julgue poderosa. Como faço este caminho há quase três anos, sei que suas tatuagens têm menos de um e mostram lutas terríveis entre pássaros e cobras. Tenho vontade de lhe perguntar porque ele desenhou no braço uma galinha comendo uma minhoca, mas é melhor não. Neste horário, temos também o grupo de estudantes que desce a Independência de skate pelo corredor de ônibus e lotações. Mas eles passam muito rápido e jamais os reconheceria.
No terceiro horário, temos a velha anoréxica e o velho das meias. A velha anoréxica é isso mesmo. Ela caminha e treme um pouco a cada passo. É como se fosse cair de tão magra. A coitada deve trabalhar demais e seu cabelo, repartido do lado, toma-lhe tempo, porque é visível e minuciosamente alisado, formando uma franja estilo Hitler que lhe cobre diagonalmente a testa. Lava roupas em casa, pois algumas vezes carrega uma trouxa branca. Já o velho das meias fica na frente de um edifício quase na Senhor dos Passos. Ele e mais dois amigos ficam conversando, creio que sobre futebol ou fazendo observações sobre as mulheres que passam. Ouvi alguma coisa rapidamente. Certamente tem problemas circulatórios, pois usa meias de compressão para ajudar na circulação de sangue nas pernas. No verão, usava bermudas e as tais meias. Eu sempre olhava para elas. Tem um grande queixo de prognata e olhos de gente que se irrita facilmente. Como saí tarde, hoje foi o dia em que os vi.
Mas há muito mais. Temos a perua da Praça Dom Feliciano que desce na direção da Pinto Bandeira, o barítono cego vendedor de bilhetes que grita olha a megasena premiada e minha preferida, a vendedora de jornais da esquina da Rua da Praia com a Borges. Quando compro alguma coisa dela, sempre pergunto o preço e ela me responde terminando a frase com amado. Tem ar de mãe de toda a Borges e sorri muito. Um dia, estava perigando chover e ela me mandou apressar o passo.
Quando subo a Travessa Acelino de Carvalho, que liga o calçadão da Rua da Praia à Rua Andrade Neves, sinto o cheiro do mijo de quem passou ali à noite e a moça da lancheria à direita que quase sempre me dá bom dia. E chego ao edifício onde trabalho. Nosso porteiro é um gremista meio de lua que raramente diz alguma coisa quando chego. Afinal, está concentrado no jogo de xadrez do computador.
Gostoso de ler por demais da conta. Obrigado por compartilhar seu cotidiano.
Muito bom.
Muito bom! (Esses relatos, que já são uma seção da literatura_sobre entidades do passeio urbano_ sempre me parecem investir a cidade com uma espécie de ultrarealismo: qualquer cidade, mesmo a mais insossa_ que ñ é nunca o caso de PoA_ se torna mítica pela concentração do olhar.)
Muito bom!
ótima leitura!
Excelente!
Ao falares do vendedor da mega, lembrei de uma senhora que ficava próximo da esquina da Renner gritando com uma voz que parecia que ia desmaiar: “LIXINHA PARA PÉS, LIXINHA PARA PÉS”