Os discursos de Fidel Castro e Thomas Bernhard

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Castro

Em certa época da ditadura militar brasileira, eu era da Engenharia da Ufrgs, mas frequentava mais o pessoal, as festas e as reuniões das humanas. Zanzava pelos Diretórios Acadêmicos onde volta e meia era marcada uma sessão de cinema em que era apresentado um discurso de Fidel Castro. Quase sempre acabava assistindo. Gostava deles. Era coisa para ser apresentada no início de uma noite ou num fim de semana, pois via de regra duravam mais de quatro horas. A data e a hora das apresentações dos filmes eram secretas, mas todo mundo sabia. Assisti a vários deles, alguns divididos em dois turnos. Lembro de pouca coisa e não sei se ainda concordaria com eles, o que sei é que ele era um extraordinário orador. Era complicado até de ir ao banheiro. Tudo parecia muito importante. Um dia comecei a pensar na estrutura daqueles textos falados. A primeira conclusão a que cheguei foi a de que eles eram indissociáveis do ator. Castro era notavelmente carismático e sabia como seduzir com pausas e alterações de tom e dinâmica. E havia seu rosto, muitas vezes com expressões irônicas. Tudo o que ele dizia adquiria caráter mítico. Quando conheci Thomas Bernhard, fiquei surpreso não somente com seu discurso de ódio contra a sociedade, mas com a estrutura encadeada de sua prosa, algo parecida com a de Fidel, mas funcionando esplendidamente por escrito. Não dá para falar de avanço em espiral porque ambos voltam a pontos anteriores do discurso e uma espiral sempre avança tontamente por lugares onde não passou. Era mais uma sequência minimalista de variações que avançam de tal forma que muitas vezes a frase atual era uma variação da anterior, mas se ouvíssemos a décima oração anterior, ela já seria totalmente diferente da atual. Ou não era assim. Eram como as de um professor que avança duas casas no jogo de seu discurso e volta uma para depois avançar mais duas novamente. Não sei porque lembrei disto agora. Talvez seja saudades da juventude; de ler, estudar, estagiar e ainda ganhar uns trocos dando aula; de, apesar desta super atividade, ter a eterna impressão de não estar fazendo nada. Ou saudades daqueles ambientes esfumaçados, ultra hiper ripongas, e daquelas meninas que iam lá assistir e que ficavam mudando de posição até encostar em nós. O que eu sabia é que estávamos fazendo tudo para atrapalhar a ditadura civil-militar e que eles tinham observadores — ratos — infiltrados entre nós. Tinham receio de nós e dos discursos de Fidel, que talvez os entediassem. O que Fidel falava era liso, sem fendas. Como o texto de Bernhard, suas falas tinham caráter repetitivo e exagerado, o que lhes garantia grande impacto (e eficiência nas queixas). Bernhard desconsidera a estrutura de parágrafos e creio que alguém que transcrevesse os discursos de Fidel não deveria repetir tal estratégia, pois ele fazia longas pausas. Em ambos os casos, há um desesperado adiamento do ponto final, pois o que vale é o encadeamento de orações subordinadas, como se o narrador tivesse a necessidade compulsiva de jamais abrir mão da palavra. Com Fidel, a bunda ficava quadrada, mas eu não me incomodava com o tamanho dos discursos nem lembro de gente dormindo. Sim, nem os ratos dormiam, então acho que não se entediavam. A fala de um e a escrita do outro eram impecáveis. Perdiam-se por ladeiras e ruelas mal frequentadas que só eram compreendidas quando apareciam lá na frente na avenida. Ou talvez não seja nada disso e o que tinham em comum fosse a tentativa de aniquilação de adversários ou de si mesmo — caso de Bernhard — através de palavras. Ah, e a soberba de ambos, arma que parecia mortal na mão destes dois Quixotes em ambientes hostis. E o fato de frases ditas aqui serem complementadas apenas bem adiante. Sei lá, só sei que toda vez que lia Bernhard lembrava de Fidel e que hoje, ao rever no YouTube um discurso de Fidel, ele não me fez lembrar em nada Bernhard. Nada, nem um pouco.

thomasbernhard

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3 comments / Add your comment below

  1. É, também não vejo conexão possível entre os discursos de Fidel e os livros de Bernhard. Como você apontou, enquanto um dissecava a sociedade para especificar suas falhas, enquanto propugnava por novas formas de pensar e agir, outro simplesmente destilava ódio, concentrado em parágrafos extensos, tão extensos que um só ocupava um livro inteiro… A semelhança seria o caráter interminável dos discursos de um e dos parágrafos de outro, mas enquanto Fidel catalisava a atenção, Bernhard, por vezes se torna tedioso, embora eu tenha realmente gostado de Extinção, um ramerrão contínuo contra a Áustria e, por extensão, contra o mundo inteiro. Fidel era a favor do mundo inteiro – do mundo inteiro que ouvia Fidel e com que ele concordava. E se não concordasse, ok, iria ouvir um discurso de 12 horas…

    Uma questão no texto: você escreveu que achava que os ratos se entediavam, num trecho, e que não se entediavam, em outro.

    1. Tenho saudade de você, Marcos Nunes. Ás vezes até sonho contigo, apesar de nem imaginar como é essa sua cara. Vê se abre um “Face” (é, o tempo passou e eu sucumbi à putaria do tédio da vida cotidiana), pelo menos para mim ver como você é.

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