Volume de estreia de Iuri Müller na área da ficção, Luz em Nevoeiro traz doze contos, alguns já conhecidos meus da internet. Mas nada como lê-los em grupo. Neste caso, a desvantagem da leitura esparsa foi a de dificultar a distinção da boa voz de Iuri e de prejudicar a observação da unidade e da coerência do trabalho do autor. Em livro, tudo ficou mais claro. Os contos são escritos em ritmo decididamente adágio, tendo por base, quase via de regra, as ações dos personagens. Há também há uma peculiar integração entre eles e os diversos ambientes. Por ambiente, entenda-se as ruas e as cidades. A coisa acontece de tal maneira que é impossível imaginar o belíssimo e original Andava a te buscar fora de Montevidéu ou o ótimo Avenida Salgado Filho fora da conhecida e infernal rua de Porto Alegre. As histórias vêm grudadas às características específicas de cada habitat.
(Intervenção gonzo: li o livro durante uma viagem à Europa na qual mudei 4 vezes de cenário. Era curioso receber a enorme carga de informações da cada nova cidade onde me hospedava, enquanto lia um livro tão ligado a outras cidades também conhecidas de mim. Caminhava por Berlim, Praga, Amsterdam e Londres, vagando literariamente por Montevidéu, Buenos Aires, Porto Alegre, Santa Maria, Lisboa…)
A atmosfera ficcional de Luz em Nevoeiro é cuidadosamente rarefeita. Os contos não dizem tudo, deixando bom espaço para a imaginação do leitor e para a poesia. Iuri Müller nos joga detalhes sem ser exageradamente explícito (ou explicadinho), criando lentamente boas histórias de conflitos contra a situação política, a pobreza, a falta de perspectivas. Papéis Molhados, Edifício Paris e Acevedo, poeta são bons exemplos de sua arte. Os personagens são lenta e maravilhosamente bem construídos. E costumam tomar atitudes desconcertantes.
Além dos contos citados, gostei muito de O Estado das Coisas. Importante salientar: citei seis, mas a outra meia dúzia não é nada esquecível. Recomendo a leitura.
P.S. — Iuri Müller já tinha publicado anteriormente a reportagem Estilhaços de Rodolfo Walsh, comentado aqui no blog.
Minha leitura foi muito parecida com a tua. Os contos que mais gostei foram, na ordem, “Avenida Salgado Filho”, “Llovizna”, “Andava a te buscar”.
Seguem notas que tomei enquanto lia, há mais de um mês.
Iuri tem pulso, não há dúvida. Com raras exceções, leva a narrativa com um ritmo lento e bem marcado, com mão firme, do início ao fim do texto. Essa música vai se acumulando lentamente na percepção do leitor. Essa acumulação é, ela mesma, um efeito a mais da obra. Ficará com o leitor mesmo depois de encerrada a leitura.
Outra característica transversal dos contos é o vagar, em dois sentidos da palavra. O primeiro deles é que as pessoas vagam, caminham, percorrem ruas da cidade. Por vezes vagam sem rumo. Outras vezes, e repetidamente, o tema da narrativa ou seu cenário é o traçado cotidiano do caminho de casa para o trabalho, do trabalho para um café, do café para casa. O outro sentido é que são contos narrados e vividos com vagar. O ritmo de adagio ou andante das narrativas se combina com o fato de que os personagens não agem com pressa. Eles param, contemplam, refletem, tomam um café, fumam um cigarro, imaginam, sonham, fazem tudo em um tempo que não é o da vertigem e do vertiginoso. Muitas vezes são insones, mal dormidos, com pouco dinheiro.
Os cafés e as padarias (por vezes, as lancherias), ambientes homólogos entre si, estão por toda parte no livro. Seja em Montevideo, em Lisboa ou em Porto Alegre. Assim como as ruas. Eles são parte da rua ou são uma rua domesticada? Uma rua que é feita casa pelos personagens que, muitas vezes, moram em apartamentos pequenos e desordenados de solteiro ou em quartos de pensão.
Há muito da solidão de Hopper e da geometria de Torres-Garcia nos contos.