Antonio Lucio Vivaldi nasceu em Veneza em 1678. Era o mais velho de sete irmãos. Seu pai era barbeiro e também um talentoso violinista — alguns chegaram a considerá-lo como um virtuose do instrumento. Depois de iniciar o primogênito na música, matriculou-o, ainda pequeno, na Capela Ducal de São Marcos, para aperfeiçoar seus conhecimentos musicais e induziu-o a estudar Teologia.
Em 1703, aos 25 anos, Vivaldi foi ordenado padre. Mas um ano depois abandonou as missas para dedicar-se apenas à música. Permaneceu padre, trabalhava para a igreja, apenas não rezava missas. O motivo alegado foi sua saúde. Falemos um pouco dela.
Vivaldi viveu 63 anos, até 1741, e dizia sofrer terrivelmente de asma. Há controvérsias. Alguns inimigos o acusavam de fingir ser doente para não perder tempo preparando e conduzindo missas e dedicar-se apenas à música. Vivaldi afirmava que muitas vezes tinha que se retirar também de concertos em razão das frequentes crises. Mas, como poucos viam tais fatos acontecerem, ele acabou sendo denunciado pelo compositor Benedetto Marcello, seu inimigo, que chegou ao ponto de escrever um panfleto contra Vivaldi, alegando ser ele um fingido que não apenas não era doente como tinha amantes — o que realmente era um fato público. Toda Veneza sabia que ele não era nada adepto do voto de castidade. Novamente, em 1737, um sacerdote atacou-o pelo fato de não oficiar missas e por seu, digamos, estilo de vida. Vivaldi respondeu por escrito:
Há 25 anos que não dou missas e não pretendo fazê-lo novamente, não por causa de alguma proibição ou qualquer ordenança, mas por minha própria vontade, por causa de uma doença que sofro desde a infância e ainda me assombra.
Depois de ser ordenado sacerdote, disse Missas por um ano, mas depois decidi parar porque em três dias consecutivos tive que deixar o altar antes da celebração final por causa da minha doença.
Por esta razão eu vivo principalmente dentro de casa e nunca saio a não ser de gôndola ou de carruagem, já que não posso andar sem dor ou aperto no peito.
Nenhum cavalheiro convida-me para ir a sua casa, mesmo o nosso príncipe, porque todos sabem de minha fraqueza.
Eu passeio após o jantar, mas nunca vou caminhando. Esta é a razão pela qual nunca rezo missas.
O fato é que não se conhece muito da biografia de Vivaldi. Sabemos que ele era um grande virtuose do violino, que era um notável professor de música e, dizem os contemporâneos, não costumava abandonar um solo para tossir. Além disso, como dissemos, Il Prete Rosso — o Padre Vermelho, como era conhecido por ser ruivo — tinha saúde suficiente para vários casos amorosos, um dos quais com uma de suas alunas mais famosas, o contralto Anna Giraud (ou Anna Girò). O caso era escandaloso e público. Anna foi a inspiradora de muitas de suas óperas e, dizem alguns biógrafos, motivo de grandes tormentos. Sabia-se que Vivaldi fazia tudo o que ela pedia, chegando a adaptar várias árias de óperas, escolhidas por ela, para sua voz. Ele também viajava com ela em turnês.
Bem, não vamos ofender a memória de nosso biografado. Não somos moralistas e, como vocês verão a seguir, Vivaldi era um ser humano dotado de enorme compaixão.
E criou uma grande obra. Escreveu 770 composições, dentre os quais 477 concertos e 46 óperas, aproximadamente. Sua obra ficou esquecida por cerca duzentos anos após sua morte. Sua redescoberta ocorreu apenas por volta de 1940, através de musicólogos, quando sua música voltou a ser divulgada. Na verdade, nos anos 40 e 50, houve um boom vivaldiano.
Na época, Stravinsky criou uma frase muito famosa: “Vivaldi não escreveu 477 concertos, ele escreveu o mesmo concerto 477 vezes”. Mas é somente uma frase de efeito, não podemos concordar com o russo. A frase de Stravinsky é genial porque contém ofensa e explicação. Isso porque Vivaldi é inconfundível e original apesar de seus concertos terem sempre a mesma estrutura. Então, de um ponto de vista moderno, talvez seja razoável dizer que ele fez sempre o mesmo concerto de forma diferente. 477 vezes.
Bem, quando deixou de rezar missas, sempre em Veneza e compondo, Vivaldi assumiu o cobiçado cargo de professor de violino no Ospedale della Pietà, uma instituição religiosa que fornecia abrigo e formação musical para meninos carentes. Foi nesse respeitado conservatório que compôs e apresentou o melhor de sua obra para reis e rainhas. Foi lá o local onde obteve prestígio e fama internacionais.
No orfanato, desempenhou diversas atividades. Chegou lá em 1704 como professor. Em 1713, tornou-se responsável por todo o ensino musical do Ospedale e, em 1716, tornou-se regente da orquestra. Apenas se desligou do Ospedale em 1740, 36 anos depois de entrar e um antes de falecer. Mesmo quando em viagem, enviava pelo menos dois novos concertos mensais para serem interpretados pelas meninas. Trabalhava muito além da encomenda.
Mas quem eram estas meninas? O Ospedale della Pietà é uma casa fundada em 1346 pelo governo de Veneza a fim de receber meninas órfãs ou abandonadas, que muitas vezes lá permaneciam por toda a vida, caso não fossem adotadas. Meninos eram aceitos apenas temporariamente, devendo partir aos 16 anos após aprenderem ofícios simples como carpintaria.
O Ospedale tinha a chamada Roda dos Expostos ou Roda dos Enjeitados. Tais mecanismos ficavam nas fachadas de instituições religiosas, embutidas na parede, dando para a rua. Consistiam em mecanismos utilizados para abandonar os recém-nascidos indesejados, que assim ficavam ao cuidado da instituição. O mecanismo era uma caixa cilíndrica que girava sobre um eixo vertical com uma portinhola ou apenas uma abertura. Quem desejava abandonar um recém-nascido, colocava ali seu filho e girava o cilindro, dando meia volta. Desta forma, quem abandonava a criança não era visto por quem a recebia. As rodas também serviam para que pessoas piedosas oferecessem anonimamente alimentos e medicamentos a tais casas. As crianças eram normalmente filhas de pessoas pobres, para quem seria um peso receber mais uma boca para alimentar, ou filhas de mães solteiras, nobres ou burguesas, que não desejavam ver descoberta sua gravidez.
Muitas mães que entregavam seus filhos a tais instituições ofereciam-se depois como amas-de-leite e talvez amamentassem a própria filha ou filho.
As meninas eram abandonadas em maior número do que os meninos. A causa é bastante óbvia. Os meninos representariam uma força futura de trabalho produtivo e possibilidade de lucro, enquanto a ideia do sexo feminino como investimento ou lucro não existia. Tais instituições eram planejadas como moradias temporárias, mas frequentemente tornavam-se lugar definitivo. No orfanato, havia a garantia de alimentação, educação e cama.
Como o Ospedale della Pietà era um convento, orfanato e escola musical para mulheres, lá havia uma orquestra. A fama da orquestra de meninas era imensa e os concorridos concertos eram assistidos pela aristocracia veneziana e estrangeira. Havia todo um mistério, pois os concertos eram realizados atrás de um biombo que impedia que a plateia visse as intérpretes. Jean-Jacques Rousseau, de passagem por Veneza, assim descreveu sua impressão dos concertos e das intérpretes. Peço-vos que perdoem a falta de correção política do parágrafo de Rousseau.
“Não posso conceber nada mais voluptuoso, nada mais emocionante do que esta música. Desejava ver quem eram estas meninas exiladas, de quem apenas sua música atravessava as grades, as quais certamente ocultavam anjos adoráveis. Um dia comentei o fato na casa de um rico senhor veneziano. ‘Se estais tão curioso para ver estas mocinhas, posso facilmente satisfazer-vos a vontade. Sou um dos administradores da casa, e vos convido a lanchar com elas’, disse-me. Quando me dirigia com ele à sala que abrigava as desejadas beldades, senti tamanha agitação de amor como jamais experimentara. Meu guia apresentou-me uma após outra àquelas afamadas cantoras e instrumentistas, cujas vozes, sons e nomes já me eram todos conhecidos. ‘Vem, Sofia’… Ela era horrenda. ‘Vem, Cattina’…. Ela era cega de um olho. ‘Vem, Bettina’… A varíola a havia desfigurado. Mal haveria uma ou outra sem qualquer defeito considerável. Duas ou três eram apresentáveis. Fiquei desolado. Durante o encontro, elas se alegraram. Encontrei charme em algumas delas. Finalmente minha maneira de as considerar mudou tanto que quase me enamorei daquelas meninas disformes.”
Sim, é claro que as famílias também colocavam na Roda dos Expostos alguns de seus filhos que tivessem nascido com alguma deformidade física, mas o mais importante é acentuar o fato de que Vivaldi, nosso biografado, projetava e providenciava instrumentos especiais para que estas meninas pudessem tocar.
Aliás, Vivaldi tinha grande cuidado na educação das suas discípulas, muitas vezes ordenando grandes quantias para compra de bons instrumentos para elas, alguns deles de fabricantes ilustres como Antonio Stradivari, Nicolò Amati e Andrea Guarneri.
Muitas, é claro, não tinham nome de família, sendo conhecidas pelo instrumento que tocavam, como Anna Maria dal Violin e Meneghina dalla Viola. Pelo menos duas delas se tornaram compositoras de algum prestígio: Anna Bon e Vincenta Da Ponte.
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Mas abordemos As Quatro Estações. Afinal, Vivaldi ficou conhecido do grande público principalmente por estes quatro concertos para violino e orquestra compostos em 1723. Ao contrário da maioria de seus concertos, esses quatro têm um programa claro: descrevem as quatro estações do ano e vêm acompanhados por sonetos ilustrativos impressos na parte do primeiro violino, cada um sobre o tema da respectiva estação. Não se sabe a origem ou autoria desses poemas, mas especula-se que o próprio Vivaldi os tenha escrito.
Também não se sabe o que surgiu primeiro, se a música ou os sonetos. O fato é que, desde que As Quatro Estações foram publicadas em 1725, em Amsterdam, os concertos vieram acompanhados de quatro sonetos que descrevem muito bem a música de cada uma das estações.
Examinando a dedicatória do Op. 8, chamado O diálogo entre a harmonia e a criatividade (Il Cimento dell’Armonia e dell’Invenzione), em que os quatro primeiros concertos são As Quatro Estações, entende-se duas coisas: (1) os concertos já eram conhecidos antes de serem publicados, e (2) os sonetos vieram depois. O que não se sabe é quem os escreveu.
As partituras dos quatro concertos trazem aqui e ali indicações do que a música estaria retratando, para que os próprios músicos pudessem saber que tal trecho retratava “pássaros”, “cachorro”, um “vento horripilante” e assim por diante.
Antes de Vivaldi não havia um modelo para o concerto solista, e cada compositor escrevia de acordo com seu próprio estilo. Os mais comuns recaíam no formato da sonata da chiesa (movimentos lentos e rápidos alternados, às vezes incluindo uma fuga) ou na sonata da camera (prelúdio e sequência de danças). Vivaldi seguiu o modelo de Albinoni com um movimento lento central e dois agitados nos extremos, e esse esquema rápido-lento-rápido acabou “pegando” e ficando como definitivo em concertos.
As Quatro Estações, muitas vezes, foi a porta de entrada de ouvintes de música para o repertório “clássico”. Por ser um concerto comunicativo e (perdão!) vivaz. Certamente criou muito público e talvez alguns músicos para o gênero instrumental. O que Stravinsky não faria, fosse ele posto como essa porta de entrada (está mais para o porteiro que tem a chave da saída mas não dá para ninguém).
Que texto maravilhoso! Rico! e com certeza muito lindo.
Biografia linda de António Vivaldi, rico em conhecimento e pureza de um grande violinista.
Vivaldii e Scarlatti estão entre os mais bem aventurados da música erudita e deixaram um legado para sempre muito bem aproveitado por Bach, Mozart, Beethoven e inúmeros outros! Quanto a Vivaldi, as críticas, fofocas, invejas e mitos não diminuem em nada sua obra, nem seu caráter humano (inclusive com defeitos e paixões) … é um gênio e estrela de brilho máximo e original!