Na época de Bach, a sinfonia era uma peça instrumental que servia como abertura de uma obra musical maior, como uma ópera, uma cantata, um oratório, etc. Foi no classicismo que a sinfonia tomou a forma que conhecemos hoje, com os convencionais quatro movimentos, a forma sonata do primeiro deles, a multiplicidade de executantes para cada instrumento (ou não), a diversidade de timbres. Diferentemente do concerto, a sinfonia não dá destaque especial a nenhum instrumento, sendo que cada um possui várias participações ocasionais. É a música para orquestra, é o “solo de batuta” do maestro.
Quando pensamos no início do gênero sinfônico, é natural que três nomes nos venham logo à cabeça: os de Haydn, Mozart e Beethoven. Em primeiro lugar porque o gênero formatado pela Escola de Mannheim foi consolidado por Haydn, muito bem utilizado por Mozart e levado ao pódio da mais alta expressão por Beethoven.
Porém, como dissemos, antes a palavra “sinfonia” tinha outro significado. Era uma espécie de abertura interpretada pela orquestra. Por exemplo, a maioria das óperas e oratórios de Handel iniciam com um movimento de abertura, escrito habitualmente no pomposo estilo francês. (Falaremos dele a seguir). Handel, ocasionalmente, chamava este movimento de sinfonia, como fez em O Messias, identificando a abertura como Sinfony. Um caso interessante ocorreu quando, em 1789, Mozart fez um arranjo para uma versão em alemão do Messias. Ele simplesmente mudou o nome da abertura de Sinfonia para Abertura. Claro, na época de Mozart, Sinfonia já era outra coisa e ele tratou de evitar confusões.
Bach algumas vezes usou o termo Sinfonia (ou Sonata) para peças instrumentais de um único movimento que davam início a uma Cantata. Ouçam a abertura da Cantata BWV 106, Actus Tragicus, de Bach. Em algumas versões ela é chamada de Sonata, outras de Sonatina e ainda em outras de Sinfonia:
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Na França, as aberturas eram peças introdutórias de um único movimento, usualmente na forma A-B-A, onde as seções A têm um andamento lento, normalmente pomposo, enquanto que a seção intermediária, B, era comparativamente fluente e rápida. Com o tempo, este tipo de abertura passou a ser utilizada por compositores como Bach e Handel. São assim os movimentos iniciais das famosas Quatro Aberturas para Orquestra (ou Quatro Suítes Orquestrais) de Bach. No caso, era um movimento introdutório para uma série de danças.
A Suíte barroca de Bach consistia de uma abertura francesa seguida de uma série de movimentos de danças de ritmos diferentes cujas principais eram Allemande, Courante, Sarabanda, Minueto e Giga.
Já a abertura italiana era diferente, mais semelhante a um concerto de Vivaldi, tendo início rápido, uma seção lenta e depois um final novamente rápido. Este o padrão de abertura da ópera italiana. Exemplos desse tipo de sinfonia italiana são as numerosas aberturas das óperas de Alessandro Scarlatti.
Também no início do século XVIII, os três movimentos da abertura italiana separaram-se e começaram a ganhar vida independente. Tornou-se uma obra de concerto sem solistas. Por exemplo, Vivaldi compôs aqueles 477 concertos em três movimentos dos quais já falamos, mas também sinfonias de 3 movimentos, não muito diferentes, em espírito, de seus concertos, apenas sem instrumento solista.
Essa ideia de sinfonia italiana com três movimentos como uma composição orquestral independente tem intersecção com o classicismo: as primeiras sinfonias de Haydn e Mozart foram compostas nesse formato. Um lindo exemplo de sinfonia em estilo italiano foi composta por um filho genial de Bach, Carl Philipp Emanuel Bach. Notem como ela é antecipatória. O primeiro movimento, de tema curto e afirmativo, parece que nos aponta para Beethoven. Confiram.
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Mas, então, na Escola de Mannheim, através do compositor Johann Stamitz (1717-1757), foi completada a formulação geral do gênero sinfônico clássico. Foi ele e a Escola de Mannheim que fizeram a junção, permitindo que a sinfonia italiana e a abertura em estilo francês se encontrassem novamente. No modelo italiano, foi inserido um quarto movimento entre os dois últimos. Este movimento adicional foi um minueto, que, até então, tinha sido um movimento quase obrigatório de uma abertura (suíte) de estilo francês. Também passou a ser utilizada a forma sonata, princialmente no primeiro movimento, algo que se firmou como um padrão nas primeiras décadas da sinfonia. Nascia assim a sinfonia clássica.
Haydn acrescentou ainda – não como regra – uma introdução lenta no primeiro movimento desse novo modelo.
Ou seja, Haydn não criou o quarteto para cordas e nem a sinfonia, mas foi o primeiro a dar enorme nobreza aos dois gêneros e a levá-los ao mais alto nível. Também foi o primeiro a usar de forma genial a “forma sonata”, explorando-lhe a dialética.
Mas o que é a forma sonata?
Esta forma, este princípio estrutural, teve sua origem na Itália – Domenico Scalatti utilizou-o muito em suas 555 sonatas – e esteve presente na música ocidental em seu conjunto de 1750 a 1950, vale dizer a partir da primeira escola de Viena (Haydn, Mozart e Beethoven) até a segunda (Schoenberg, Berg e Webern). Teoricamente, aplica-se não a uma obra inteira, mas a um movimento isolado ou fazendo parte de uma obra em vários movimentos. Observe-se que a forma sonata vale para todos os gêneros instrumentais cultivados a partir de 1750 (não somente a sonata, mas também a sinfonia, o concerto, o quarteto de cordas, etc.) e mesmo, em certos casos, para gêneros de música vocal.
A forma sonata é um esquema simétrico em que cada um de seus elementos é respondido com um outro a ele relacionado e que buscam um equilíbrio – que é alcançado na reexposição. Como funciona?
Primeiro é apresentado um tema ou melodia, o qual é seguido de outro. A mudança de um tema para outro é facilmente perceptível. Nas sinfonias de Bruckner, na fronteira que separa os dois temas há um curto silêncio. Bem, estes dois temas juntos são chamados de Exposição.
Depois vem o Desenvolvimento. É onde os temas da exposição são misturados, reaproveitados e reelaborados. Não se trata de livre fantasia, mas de uma recriação dos dois temas, agora misturados, que recebem novos elementos.
Essa tensão apenas será liberada no momento em que o compositor nos mostrar a terceira parte, chamada Recapitulação, onde os dois temas iniciais serão novamente mostrados de forma transformada.
Sem desejar que vocês enlouqueçam, imaginem uma nova história do Chapeuzinho Vermelho que encontramos em um site russo. O primeiro tema (ou melodia) é o Chapeuzinho Vermelho e o segundo é a vovó. Então o compositor mostra ambos, um seguido do outro, Chapeuzinho e vovó. É a Exposição. O Desenvolvimento é a caminhada do Chapeuzinho Vermelho até a vovó. No meio do caminho tem um lobo e toda a sorte de diálogos e pensamentos sobre como chegar inteiro até a casa da vovó. Ela consegue se livrar do lobo e vai para a Recapitulação, representada pela vovó com Chapeuzinho em casa, tranquilamente aquecidas pela lareira.
Dito assim, parece uma bobagem, porém, nas mãos de um compositor de talento – como Haydn, Mozart, Beethoven ou Brahms –, a forma sonata é algo de poder expressivo verdadeiramente formidável. Às vezes, os dois temas são tão diferentes que parece que juntá-los seria como promover a paz entre israelenses e palestinos. Os dois lados são diferentes e têm boas doses de razão, até que a dialética do Desenvolvimento dobra arestas e ”convence-os”. É um prazer enorme – algo realmente filosófico – ouvir o compositor trabalhando os dois lados.
Então, a forma-sonata clássica se estrutura da seguinte maneira:
I) Uma introdução lenta, não obrigatória;
II) Exposição do tema principal (A);
III) Exposição do segundo tema (também conhecido como contra-tema, B) geralmente em contraste com o primeiro;
IV) Final da Exposição, um episódio curto só para entrar no…;
V) Desenvolvimento: a parte mais elaborada da sonata, onde os dois temas surgem muitas vezes em contraponto, gerando certa instabilidade e como que “pedindo” a volta dos temas principais;
VI) Recapitulação de A e B já alterados e preparação para o final, conhecido como…;
VII) Coda.
Grande parte dos primeiros movimentos das sonatas e sinfonias clássicas, românticas e até modernas seguem, rigorosamente ou não, este esquema.
Mas agora vamos tentar deixar esse esquema mais claro mostrando-o como funciona numa Sonata de Mozart, a de Nro. 16, K. 545.
Desta forma, o classicismo procurou realizar plenamente aquilo que os últimos compositores barrocos já aspiravam: a criação de uma arte abstrata, equilibrada, perfeita e absoluta.
Então, nós já falamos sobre a forma sonata e sobre a introdução de um movimento de dança, chamado Minueto, entre o terceiro e quarto movimentos.
Deste modo, o modelo clássico da sinfonia dividia-se então em 4 partes: O primeiro movimento pode ser uma música de caráter ligeiro, um allegro por exemplo. Alguns primeiros movimentos possuem uma curta introdução de caráter mais grave. O segundo movimento é a parte lenta e reflexiva da obra. O terceiro movimento é conhecido como minueto. É a música mais dançável da obra. O quarto e último movimento (finale) tem características semelhantes à do primeiro movimento, mas aqui o caráter é habitualmente triunfante, daquele tipo que busca o aplauso. Sim, há que considerar o ambiente dos concertos.
O compositor mais representativo do espírito clássico foi Haydn (1732-1809), autor de uma obra vastíssima, na qual as possibilidades musicais da Sinfonia foram exploradas com grande riqueza inventiva. A seguir, apresentaremos o primeiro movimento da Sinfonia Nro. 83 de Haydn, conhecida como “A Galinha”. O primeiro movimento vai até os 6min32. Notem como a forma sonata é utilizada. O primeiro tema é decidido e voluntarioso, o segundo, bem, nele vocês certamente entenderão o apelido da sinfonia.
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O Classicismo já estava maduro quando se destacou no cenário musical a figura de Wolfgang Amadeus Mozart, cuja obra é considerada por alguns como a maior de todo o século XVIII. Ele foi um compositor eminentemente clássico, isto é, do período clássico. Entretanto, muitas das suas peças, em especial as últimas, antecipam a música que depois surgiria com Beethoven.
Como todos sabemos, Mozart nasceu na Áustria e foi um gênio precoce, que desde pequeno se revelou um virtuose do piano. Escreveu com a mesma desenvoltura gêneros instrumentais e vocais, criando uma obra que só não foi mais extensa devido à sua morte prematura.
Mozart conheceu profundamente a obra daquele que chamava de Papa Haydn. Primeiro apenas através de partituras, depois pelo contato pessoal, pois durante a década de 1780, Haydn passou a deixar sua pacata vida na corte da família Esterházy (seus patrões) para visitar Viena nos meses de dezembro e janeiro – época em que os concertos eram frequentes. O primeiro contato pessoal entre ambos aconteceu em dezembro de 1783, durante um concerto beneficente.
Eles chegaram a tocar juntos em quintetos para cordas de Mozart. Mozart no primeiro violino e Haydn no segundo, imaginem. Depois, Haydn viajou para Londres e eles nunca mais se encontraram.
Ao ficar sabendo do falecimento de Mozart em 1791, ainda na Inglaterra, Haydn desabafou a um amigo não acreditar que a “Providência” tenha cessado tão rapidamente a vida de “alguém tão indispensável”.
Os dois se respeitavam muito. Um exemplo: quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias, de Mozart, para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um flagrante erro de minha parte. Eu é que não entendi.”.
A relação musical entre os compositores era tão forte que Haydn passou a ser considerado por muitos como a continuidade de Mozart, após a morte deste. Nesse sentido, o conde Waldstein, ciente de que Beethoven estudaria com Haydn em Viena, escreveu ao jovem alemão que, com sua dedicação, ele receberia “o espírito de Mozart das mãos de Haydn”.
Muito conhecido é o primeiro movimento de sua Sinfonia Nro. 40, mais um exemplo da forma sonata. Esse movimento inundou os escritórios de trabalho e as ruas na primeira década deste século, pois os telefones da marca Nokia, hoje em desuso, tinham uma opção de toque que era exatamente os primeiros compassos do movimento. Ela vai do começo até 8min20.
— de 45seg até 8min20
Porém, amigos, Haydn tinha um problema, ele não conseguia ser infeliz. Quando lhe encomendavam Missas, então, era terrível. Suas missas são belíssimas e criticadíssimas. Em primeiro lugar porque seriam alegres, felizes demais para o serviço religioso. Os padres e reverendos, sem observar a beleza e o equilíbrio delas, não as entendiam. Em segundo lugar, cada uma delas teria (e tem!) tal unidade que seriam inúteis para a igreja — onde normalmente as Missas são interrompidas pelas preces. Deste modo, os movimentos lentos de Haydn podem ter lá seus dramas, mas a maioria deles não nega a alegria de quem tinha um emprego estável com os Esterházy e de quem tinha sido amigo de Mozart e professor de Beethoven.
Um dos mais famosos movimentos lentos escritos por Haydn é o Andante da Sinfonia Nro. 101, conhecida como “O Relógio”. É lento, mas não é nada triste. E também é autoexplicativo. De 8min21 até 16min48.
— de 8min21 até 16min48
https://youtu.be/BMrQok1pvR4
A origem do minueto remonta a uma dança francesa homônima, tipicamente aristocrática, e que foi muito popular na corte de Luis XIV. Na sinfonia clássica, o minueto é contrastante em relação ao movimento lento que o antecede. Não creio haver maior exemplo de minueto do que este da Sinfonia Nro. 41, Júpiter, de Mozart.
— tudo 6min04
A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn, escrito por Peter Gammond:
Haydn.
O pai da sinfonia. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional. O sentimento geral é de que Haydn poderia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-a. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.
— tudo 3min47
Depois, no Romantismo, a sinfonia passou a ser maior, e de caráter mais emotivo. Beethoven, transformou o minueto em scherzo. Foi o primeiro compositor a colocar um coral no último movimento.
É importante lembrar que, apesar das características citadas, nem todas as sinfonias do período clássico foram compostas seguindo rigorosamente a forma. Existem obras no gênero que possuem 3 ou 5 movimentos. Mas são raros. Também o movimento lento é a terceira parte de algumas sinfonias.
Beethoven, portanto, ainda não é o compositor clássico por excelência, mas o inovador, o abre-alas para o romantismo. Com isso, não pretendemos certamente diminuí-lo, imaginem… Ao contrário, ele foi o fundador de uma era musical que até hoje não se esgotou. Quem ver o filme Eroica, de Simon Cellas Jones, verá na cena final um veterano Haydn, após presenciar a estreia da sinfonia, profetizar, com toda a razão: “A partir de hoje, tudo mudou”.
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