Impregnado

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Gosto de crianças. Tenho boas relações com elas e acho que sei como surpreendê-las. Quando meus filhos eram pequenos, fazia às vezes concorrência natural aos recreacionistas das festas infantis. (Também tenho uma estranha habilidade para fazê-las dormir). Sempre tratei de tirar meus filhos da frente da TV e dos jogos. Acho que as crianças ficam tempo demais na frente da tela luminosa, demais no videogame. Meus filhos — hoje na faixa dos 20 anos — nunca pediram videogame e, se a Bárbara via muita TV quando pequena, depois foi se afastando.

É difícil convencer uma criança que há outras coisas tão legais quanto ficar deitado como uma besta vendo TV ou ganhando habilidade com os dedos no videogame. Sempre disse a eles que os jogos os deixavam incrivelmente hábeis para os jogos e só. Em minha sistemática pressão antiTV, entrava em casa diariamente cantando em altos brados a música dos Titãs:

A televisão me deixou burro
muito burro demais
agora todas as coisas que eu penso
me parecem iguais

E, depois, vinha o golpe fatal que irritava minha filha e a “obrigava” a correr atrás de mim para me bater:

(…)
e agora eu vivo dentro dessa jaula
junto dos animais.

Pois dia desses eu fui ao futebol com o filho de um amigo. Ir a um jogo acompanhado de crianças é sensacional. É boné, salgadinho, sorvete, amendoim, mais salgadinho, água, o diabo. Mas vale a pena. Quando, já na arquibancada, veio o primeiro moço com a cesta de salgados, carregando todos aqueles quilos de gordura trans, e ofereceu seus produtos, ele respondeu:

— Não, agora não, recém comi um pão e um suco. Depois eu vou querer. Volta depois, tá? Obrigado.

É claro que o homem não ouviu nada após o primeiro não. Eu ria explicando a meu pupilo que não precisava dar um discurso, que era só dizer não, obrigado.

Mas, voltemos um pouco no tempo. Voltemos até nossa entrada na arquibancada. Antes do campo abrir-se para nós, eu o avisei:

— Te prepara para uma visão espetacular. Tu nunca vai esquecer disso.

Ele caminhou silenciosamente até a borda da arquibancada superior. Parei a seu lado e vi que ele estava pasmo, impregnado pelo ambiente. É lindo ver um campo de futebol iluminado, à noite. É uma coisa que só nós entendemos e que é impossível transmitir a quem não gosta de futebol. A melhor resposta para quem não entende nossa cara nestes momentos é a de Louis Armstrong quando lhe perguntaram qual era a graça que ele via no jazz: Man, if you gotta ask, you’ll never know. Se você tem que perguntar, nunca saberá.

Ou seja, o vírus inoculara-se nele. Não tive muito tempo para ficar nostálgico lembrando do dia em que meu pai me levara para ver Inter 1 x 0 São Paulo, em 1968, nem para recordar o ainda mais emocionante Inter 4 x 0 São Luís, a estréia do meu filho Bernardo no Beira-Rio, pois tinha que controlar o menino dando discursos encantados com tudo, mas principalmente com aquela atmosfera tribal… Logo depois, ele começou a demonstrar todo seu grande conhecimento de palavrões.

— Vai tomar no cu, seu juiz idiota do caralho. Enfia o apito no rabo!

Sim, foi um começo promissor, apesar de ele levantar a cada minuto, atrapalhando o pessoal de trás para torcer gritando:

— Vai, vai, vai, vai! Não!

Ou utilizando a mui contrastante variação:

— Isso, isso, isso, isso! Não!

Quando se dava conta de que tinha levantado novamente, pedia desculpas aos detrás, que riam, achando divertido o “descontroladinho”…

Foi muito divertido, claro. Um dia, nessa grande desilusão do crescer e amadurecer de cada um de nós, talvez ele queira reencontrar seu próprio deslumbramento com o mundo. Os escritores alemães (a começar por Goethe e seu Wilhelm Meister) criaram um gênero de romance muito próprio, aquele que trata da história pessoal da desilusão: o Bildungsroman. É o romance de formação, da edificação da individualidade, da incorporação da cultura. Mas nada disso ele reencontrará se ler este texto, talvez apenas dê risadas de sua falta de jeito.

estadio-beira-rio

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19 comments / Add your comment below

  1. Bacana o texto, Milton.

    Fiquei uns minutos aqui pensando nessa coisa da reação ao adentrar o estádio pela primeira vez…

    Hoje é uma coisa tão banal pra mim, sem graça até, com exceção dos grandes jogos com publico superior a 40 mil pessoas, que, SEMPRE, enchem os olhos e dão aquele frio na barriga…

    Por outro lado, a sensação de entrar em OUTROS estádios é bastante semelhante…

    Infelizmente conheço só alguns do Rio Grande do Sul: Olimpico, Beira-Rio, Centenario, Jaconi, ESTÁDIO DA ZONA SUL… e outros que não lembro o nome (São Luiz de Ijuí, Passo Fundo e Santa Maria)…

  2. O urro crescente e o DESPERTAR de cores no trajeto do túnel são as sensações mais vivas que tenho do meu primeiro jogo no Beira-Rio: Inter 2 x 2 Atlético-MG, em 1992.

    Aliás, naquela época que eu vinha para o Gigante de EXCURSÃO e saía de madrugada lá de São Sepé, passávamos a tarde no pátio do estádio e lembro de conversar com o Luiz Fernando e o Maizena nesta condição. Hoje em dia chego no campo sempre em cima do laço, mas acho que não rola mais essa INTERAÇÃO jogador-torcida no estacionamento do Beira-Rio

  3. Eu vou pouco ao Olímpico. Moro em São Paulo e são raras as oportunidades pra ir pra Porto Alegre.

    Sempre que passo pelo corredor, começo a ver as pessoas e, mais tarde, o campo, me arrepio muito.

  4. Impossível não ficar ansioso antes de ter a visão de um estádio lotado…

    nas cadeiras do Olímpico, ao subir a escadaria tu te depara com a multidão no anel inferior e vai subindo…ainda é emocionante haha

    agora, nas sociais, o fim do túnel também proporciona algo semelhante.

    E belo texto.

  5. Belo texto…

    São situações como essa que me fazem amar o futebol…

    Não as grandes negociações, as politicagens. O bonito do futebol são experiencias que só ele proporciona!!!

  6. Milton, o texto que acabo de ler é digno do teu admirável talento em dar às coisas simples do cotidiano uma moldura que o transforma em arte. Aqui acrescentaste alguns detalhes com a maestria das palavras usando um refinado humor. Gostoso demais e quando acaba fica aquele sentimento que não deveria parar por ali, amenizado de certa forma com os dois trechos de comentários do Natal.

    Quanto ao prazer em levar um filho ao estádio pela primeira vez, eu não tive esta oportunidade com minha filha, mas estou aguardando o melhor momento para trazer meu sobrinho de sete anos à Curitiba. O piá já é fanático por futebol.

    Abraço.

  7. texto muito bonito, mesmo. O guri vai gostar de ler mais adiante.

    a única lembrança que eu tenho da minha primeira jornada no Beira-Rio, aos 6 anos, é o campo, que eu achava grande demais. Só depois essa visão de êxtase de um campo lotado de gente realmente apareceu. E meu primeiro jogo noturno foi inesquecível.

  8. Isto sim, é um legítimo Milton Ribeiro. Sobre estreias em campo, nem me fale: São Paulo e Flamengo, Morumbi, idos de 79, sei lá. Flamengo fez um. São Paulo fez outro. Flamengo fez outro. São Paulo, mais um. Flamengo, mais um. São paulo, outro. Flamengo fez o quarto. Acabou o jogo. Quatro a três pro Flamengo. E sou São Paulo. Mas Zico em campo, sacumé…

  9. Belíssimo! A “entrada na cultura”, caro Milton, se faz pelo deslumbramento e pela decepção. Deslumbramento, apenas, é sedução e alienação. A decepção, ou castração, nos dá o tamanho de nossa pequenez, fugacidade, impossibilidades e incompletudes. O futebol (como todo esporte), muitas vezes serve como metáfora da vida: hoje somos campeões, amanhã sentimos o gosto da derrota. Se a ‘castração’ for realmente eficaz, voilà o advento do simbólico e o fim da onipotência, portanto do fanatismo. São filosofices ou psicologices, bem o sei, mas operamos com o que temos, não é?
    Assim, ao imaginar que seu post falaria de televisiose ou cyberaddiction, você faz um estudo psicossociológico da descoberta de um novo mundo. Mais uma vez, coisa de Mestre.

  10. eu me perdi nos personagens, mas tudo bem.
    abstraí os nomes (e o time…eheheheh… 😉 e fiquei só com a beleza da situação, na regra geral.

    afudê.

  11. Já tinha lido no blog do Idelber o qt ele achou estranho vcs gaúchos assistirem uma partida de futebol sentados, comportados, quase como europeus, ou seria uma característica da torcida do Inter? Aliás… Qual é a torcida das massas aí?

    Ps.: Até europeus devem mandar os juizes enfiar o apito no cu.

    Ps 2.: É tão colonizado dizer “até os europeus”. Em tempo, se coloca PS num blog? Nunca escrevi em um.

  12. Quando eu tiver meus filhos vou mostrar para eles minha edição de “Os Irmãos Karamázov” da editora 34 e dizer ~isso aqui é a vida~.

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