cinecittà

Por Eduardo Mello (*)

caríssimo milton,
livreiro, agora
certificado em cartório
come va
nosso porto dos casais
de todas as cores
nosso porto alegre?
goethe zola
medem e scola
já contaram
o que se passa em roma
acrescento aqui
meu pé de pátina

15 de março de 1944, cárcere da gestapo em oslo, petter moen rabisca no escuro: ‘hoje quero escrever algumas palavras, consolar-me um pouco… a solidão consome a força do pensar, que depende de estímulos externos’

em 15 de março de 2019, piazza navona em roma, lennucia garante: ‘eu parlo talniano. e portoghese!’. lommucia ganha um broche do brasil, ajeita na blusa, sai toda orgulhosa na primavera que ilumina a praça: ‘assim todo mundo vai saber que eu sou brasiliana!’

são quase dez anos da primeira brisa de bissau. temos duas novas companheiras de viagem, que já sentem a força dialética da primeira remoção. em poucos meses de escola multilíngue, misturam talniano-francese-inglês-portoghese

os tempos são outros, a história agora é tanto minha quanto delas – e da experiente diplomatriz. lommucia trabalha comigo, frequenta o centro cultural brasil-itália, já tem vaga ideia do que representa uma embaixada. nem sonha, porém, nem ela nem lennucia, quão peculiares são suas declarações de brasilidade

cruzamos a navona, ex stadio di domiziano. ela brinca com um sósia do chaplin, corre atrás de bolhas de sabão que nos levam até a via della scrofa, até a via di ripetta. se impressiona com o tevere, com o verde das árvores do mausoléu de augusto, ‘que bella essa igreja, pai, mas que que é uma igreja?’. brinca na fonte do ara pacis, enquanto vai sendo desarmada a exposição sobre mastroianni

nosso táxi bate num carro do exército, ‘ma cosa fa stocazzo!’, descemos, andamos de mãos dadas em direção ao bonde 19 na via delle belle arti, um pouco antes do museu etrusco na villa giulia, estrela do grande bellezza

entramos em uma enorme igreja. ela vê cadeiras alinhadas e exclama, ‘pai, parece um cinema!’ uma declaração subversiva, mal sabe a guria onde tá se metendo. como se tivesse lido aquela frase do trotsky no átrio do museu do cinema de torino, algo como ‘sonho com o dia em que as igrejas se transformem em cinemas’ ou ‘o cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e afasta o desejo de entrar na igreja’ ou ‘o dogma do cinema é embaralhar as ideias’

bueno, não lembro bem. eu, que não curto revoluções permanentes, só espero que os cinemas continuem assim, humildes e litúrgicos cinemas de bairro. lomuccia, que se seguir nessa linha vai acabar se rebelando contra mim, sobe no tram com grande esforço, não quer ajuda, depois quer colo, espalha costa abaixo as pernas da guria que nasceu em santiago, caminhou em brasília e irá ler em roma

‘mi sento vecchio quando leggo il giornale’, canta la municipàl

as breaking news do jornal trazem projeções do mercado imobiliário sobre os efeitos da mudança do clima na itália: desvalorização dos imóveis à beira de rios e mares, inundação de veneza e napoli em mais sete décadas. amigo espanhol do programa mundial alimentar volta do zimbábue. o problema é a seca inédita, e agora o furacão que devastou moçambique, as pessoas não sabem para onde ir. muitos acabarão na itália, onde cresce o debate sobre o acolhimento de migrantes e a oxfam diz que também aqui os 5% mais ricos detém patrimônio igual ao dos 90% mais pobres. i read the news today, oh boy!, diz lennon. as heart-breaking news

como o trabalho de um professor, este mister exige leitura e releitura da história diária do brasil, do mundo e do posto da vez, hoje a itália

mas sempre que abro a porta
o piano da diplomatriz
lennucia corre
pra me abraçar
com braços
pernas
e o mundo

A Piazza Navona, em Roma

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(*) Eduardo Brigidi de Mello é diplomata e o texto representa tão-somente a visão do autor.

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