Por Eduardo Mello (*)
fala, milton! nem te conto estive no mesmo mesmíssimo hotel onde pisou eva green
aquela vênus pós-moderna cuja ausência no ‘porque hoje é sábado’ eu ia já criticar
mas vá lá, admito: te subestimei a propósito, chegamos a roma
mais uma partida de brasília pra nós, a primeira pras gurias. esta é fácil, elas pouco lembrarão, mas daqui pra frente… perdas de turmas e paixões irão pra minha conta, e mais do que nunca precisarei destes papeis de carta
lennucia não faz ideia, tem pouco menos de dois anos de idade. lommucia, aos quatro, entende mais ou menos. dá abraço apertado numa amiga, ao fim do último ato na escola cabo frio. pequeno balé, animado por um violão que dá melodia ao bucolismo solar de brasília. as professoras perguntam se ela voltará para visitá-las, ela grita de longe, natural, puxando a mochila, ‘não seei!! mas todo mundo tá dizendo que vai me visitar em roma!’
damos a última volta de bicicleta pelas ciclovias verdes da asa norte, embalamos objetos e lampejos. passamos em porto alegre para mais despedidas, lommucia entra em campo com o tricolor na arena, canta o hino nacional no gramado; lennucia passa a gritar ‘grêmio’ quando vê a bandeira do brasil – e vice-versa
cada escala nesse porto é um nó, sempre foi. a passagem do tempo no rosto de mãe e pai dói mais, quando vista em longos intervalos. irmão e irmã emigraram, o que nunca é bom sinal – além de dificultar a logística. restam os amigos, pontos turísticos sempre presentes, sobretudo do passado
tudo passa, com a decolagem. logo estamos em montmartre, as gurias abandonam a mesa e dançam no café des deux moulins, fingem que já falam francês com bom jur pra cá, bom soar pra lá. temem o urso empalhado do museu de história natural com a mesma convicção que creem na sereia que nada no aquarium. o hotel de senlis parece familiar, e de fato é: set d‘os sonhadores’ do bertolucci – e da eva green.
viajam de trem pela primeira vez. de paris a roma, o único carro que lhes atrai é o carrossel. de avignon, arles, nîmes, orange, ‘olhem, por aqui passaram os romanos, da cidade onde vamos morar’. não temos chance de teatro (muito menos de noite), mas as vemos correr e banhar-se nas fontes dançantes da place masséna de nice, correr até o róseo mergulho no mar do entardecer mediterrâneo
neste mesmo mar, nesta mesma hora, lá do outro lado, outras crianças fazem travessias de vida ou morte ainda não sei como explicarei a elas nem isso, nem os militares com fuzis de assalto que fazem a segurança na promenade des anglais – onde outras crianças foram assassinadas há pouco. perto disso, responder perguntas sobre sexo será barbada
não é uma sensação facilmente definida, definível, esta. partir do brasil, a representar este mesmo brasil, em período tão conturbado ao redor do mundo. atentados espocam no noticiário, em meio a nosso idílio familiar, antes, muito antes de elas começarem a desconfiar que não são mais personagens de desenho animado, que nem todos, nem todas veem o mundo com a canção fraterna de brunori sas
io vedo il mondo solo secondo me / e scrivo al mondo solo secondo me /
chissà com’è invece il mondo / visto da te
tanta coisa acontecendo, e elas só se preocupam em correr até o lanche no vagão-restaurante, subir e descer de trens, gritar, infernizar até a última escala antes do nosso próximo set. em milão, estranham o ‘ciao’ no lugar do oi, participam de atividade no ‘museo dei bambini’, onde começam a aprender italiano à força
chegamos a roma num domingo do mês de agosto, das férias e da cidade vazia mostrada, em 1962, no clássico ‘il sorpasso’
chove um pouco, vejo esse monte de malas, carrinho de bebê, fraldas a trocar, e lembro dos primeiros passos em brasília-08, bissau-10, santiago-12, brasília-14, tudo de novo
eram outras expectativas nenhuma maior do que a sensação de chegar com elas
na cidade que será também pra nós eterna
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(*) Eduardo Brigidi de Mello é diplomata e o texto representa tão-somente a visão do autor.