Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (III)

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Primeiro, eu vi Manual da Faxineira em sua edição portuguesa de 2016, chamada Manual para Mulheres de Limpeza. O livro fora lançado em 2015 nos EUA.

11 anos após sua morte, Lucia ganhava enorme reconhecimento e levava quase todos os prêmios de Melhor Livro do Ano nos EUA e Reino Unido.

Manual chegou ao Brasil em 2017. Mas voltando à edição portuguesa, foi com alguma irritação que li na orelha a frase “Lucia Berlin talvez seja a melhor escritora de todos os tempos”. Pô! É claro que isto afasta os leitores pelo exagero e vazio de significado. Não comprei o livro.

Quando li a edição brasileira da Cia. das Letras, a frase portuguesa seguia me irritando pela banalidade. Afinal, há tanta coisa diferente para se dizer sobre o livro, Lucia é tão diversa e original que a única coisa que aproveitei daquela orelha foi a de saber que a autora preferia ouvir seu nome à maneira da América espanhola: “Lu-ssí-a”, em vez da pronúncia anglo-saxônica ou italiana.

Compreendo, porém, o entusiasmo que a escrita de Berlin causa. Durante e após a leitura, parece que somos forçados a falar sobre o que estamos lendo e em nosso discurso brotam frases desbragadamente elogiosas. Igualmente, quando lemos os dois textos finais do livro, dos ensaístas Lydia Davis e Stephen Emerson, notamos suas dificuldades na escolha dos adjetivos.

Personagens

A tentação é grande de falar mais das aventuras e desventuras da autora do que de seus contos. O que seria uma grande injustiça porque, como escritora, ela consegue muito. Conta boas histórias, tem humor e encanta o leitor. Sério, sua escrita sem floreios desliza diante de nossos olhos com a fluência de uma conversa entre amigos. Os personagens são quase sempre seres atrapalhados que vão tropeçando em suas fraquezas, mas — e aí chegamos ao crucial — a autora não os ridiculariza, não tem pena deles, não dramatiza suas desgraças. No fundo, todo mundo é igual — ela parece nos dizer — seja o índio bêbado de Albuquerque, a beldade que sonha com Hollywood, a grávida que conta o que viu na clínica de abortos, a mãe que se apaixona pelo amigo do filho, a alcoólatra que sai de madrugada para comprar uísque antes que as crianças acordem, a mulher negra e bem-sucedida que trata com desdém a faxineira.

Em seus tempos de alcoolismo pesado, Lucia trabalhou como faxineira mesmo tendo diploma universitário. “As faxineiras mais antigas nem sempre me aceitam com muita facilidade. E é difícil arranjar serviços de faxina também, porque eu sou ‘instruída’. Só que eu não tenho conseguido de jeito nenhum arranjar outro tipo de trabalho.” É Lucia falando através da personagem principal do conto que dá nome ao livro.

Virtuosismos

Já falei sobre o primeiro conto do livro, aquele em que ela narra fatos ocorridos em duas lavanderias separadas tanto geográfica quando temporalmente, então falemos de outro conto, Ponto de vista.

Nesta história, que poderíamos chamar de experimental, a narradora confessa sobre o personagem que está criando: “…O que eu espero conseguir fazer é, por meio da utilização de detalhes intrincados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela.” Ela consegue isso com aparente facilidade. Mais: ela nos dá duas opções de parágrafo para abordar a personagem, uma boa e outra ante a qual o leitor reagiria com um “Ah, tenha a santa paciência”. (pág. 66 e 67 da edição brasileira).

Neste conto inacreditavelmente original e elegante, há mais duplicidades, há comparações entre a atual assistente de um consultório médico e sua antecessora, a narradora. Mas não pensem que isso resulte numa leitura complexa, é tudo muito claro. Em dado momento a narradora diz que jamais adotaria a postura de sua personagem frente a um médico, que aquilo é um erro, mas que sua personagem faz refeições modestas e solitárias usando “belíssimos talheres italianos de inox”, assim como ela, a narradora, conta fazer.

Nas últimas linhas, a confusão entre a narradora-assistente e sua personagem é total. Tanto que, após descrever o personagem solitário observando alguém na rua, o narrador diz: “Eu me apoio no peitoril frio da janela e fico observando o homem.”. E já não sabemos quem é o “eu”. Repito: toda esta complexidade vem muito clara e distinta para o leitor, que fica pensando no quanto nossas histórias pessoais se alteram quando em contato com diferentes personagens.

Essas confusões propositais reforçam a impressão de que a escrita de Lucia é, mais do que ficção, memória escrita ao sabor do fluxo de consciência. Como se ela arrancasse páginas de seu diário e as publicasse isoladamente, oferecendo-as para nós, leitores, como histórias curtas. Contribui para esta impressão o fato de que o mesmo personagem ressurge em diferentes fases da vida. A jovem que vive com um músico em um conto é também a mãe que abriga os filhos em uma manhã gelada de Nova York e que, madura, cuidará da irmã à beira da morte? A mulher que descreve a clínica de reabilitação é a mesma que esquece de frear o carro estacionado em uma subida para pavor e graça de seus amigos, alcoolistas como ela? Certamente.

Mais: Lucia tem o costume de usar poucas linhas e frases curtas e diretas para nos contextualizar. Rapidamente, ficamos conhecendo o local onde estamos e também o gênero de pessoa que está a falar conosco. Às vezes, ela nos dá o contexto em frases sem verbo. Um exemplo com verbos:

“O ônibus está atrasado. Carros passam. Gente rica dentro de carro nunca olha para as pessoas na rua. Gente pobre sempre olha… na verdade, às vezes parece que elas estão só passeando, olhando para as pessoas na rua. Eu já fiz isso. Gente pobre espera muito. Em postos de previdência social, filas de desempregados, lavanderias, cabines telefônicas, prontos-socorros, prisões, etc.” (p. 40)

Ou seja, apesar de não perder tempo com descrições de ambientes, ela é muito eficiente nisso, é uma escritora atenta a todos os pormenores e que sabe a importância deles para caracterizar um lugar, uma pessoa e uma vida.

Em Tremoços-de-flor-azul, Berlin declara diretamente a um professor de filosofia, cujo último livro acabou de traduzir, e que se entusiasma a falar com ela sobre Heidegger, Wittgenstein, Derrida e Chomsky:

Desculpe. Eu sou poeta. Lido com o específico. Fico perdida no abstrato. Eu  simplesmente não tenho a bagagem para discutir essas coisas com você” (p. 276)

E é com o específico, o particular, que nos deparamos em cada conto e em cada descrição concreta, precisa, detalhada. Esta afirmação, dirigida ao professor de filosofia, é uma declaração da autora acerca daquilo que faz sua escrita. Não há abstração. Todos os contos são Berlin a falar da sua vida, quer ela se chame Maria, Carlotta, Loretta, Dottie, Adele, quer os seus filhos se chamem Nick ou Ben, ou o seu marido ou amante seja Jesse, Rex ou Mel. É sempre a voz e o carácter de Berlin, os lugares onde sabemos que viveu, as pessoas que conheceu, seus parentes, o alcoolismo, as situações pelas quais passou, etc. Ninguém sente sono lendo as histórias, que têm viradas a cada momento. Claro que ela tem maiores preocupações com a estrutura, a técnica, e menos com ser exatamente fiel à realidade. Tudo o que ela narra pode ter sido sua vida, mas nossas histórias jamais nascem prontas para virar bons contos.

Do humor

A violência das situações descritas na maioria dos contos, de natureza física e emocional, é contrabalançada pelo humor que Berlin introduz no relato desses acontecimentos. Não há como não rirmos alto quando, após termos assistido detalhadamente à extração a sangue frio de cada dente da boca do avô de Berlin, realizada por ele mesmo e pela própria Lucia, ainda criança, em Dr. H. A. Moynihan, nos deparamos com este cenário:

Eu queria pegar uns saquinhos de chá; meu avô costumava fazer os pacientes morderem saquinhos de chá para estancar o sangramento. (…) A toalha de papel que eu tinha posto na boca do meu avô estava encharcada de sangue agora. Joguei-a no chão, enfiei um punhado de saquinhos de chá na boca dele e apertei os maxilares um contra o outro. Gritei. Sem dente nenhum, o rosto dele parecia uma caveira, ossos brancos em cima do pescoço ensanguentado. Um monstro medonho, um bule de chá que ganhou vida, com etiquetas amarelas e pretas de chá Lipton penduradas como enfeites de Carnaval. (p. 21)

E mais à frente, há o conto Sex Appeal, de humor rasgado. A prima linda resolve ir a Hollywood. Como acha que tem peitos pequenos, usa um sutiã com enchimento. Pega um avião para ir à Califórnia e, quando este ganha altura, o sutiã explode na cabine despressurizada. Mas não é por isso que ela retorna. Depois, há um baile na cidade no qual estará presente um famoso alguém. A prima vai acompanhada da menina Lucia, então com dez anos. No baile, a prima atrai o famoso homenageado com seu irresistível sex appeal. Mas vai ao banheiro e então fica claro que o cara desejava era a menininha Lucia. Tudo isso é contado de forma hilariante e leve, mesmo que o assunto seja pedofilia.

O humor não é um esforço para mitigar os eventos dolorosos ou sensações de perturbação e solidão – é um sintoma do modo como Berlin observa as pessoas, os lugares e as situações. Apesar do carácter sombrio de alguns contos, apesar mesmo de Berlin confessar, no final de Mamãe, que não tem compaixão nenhuma pela mãe já falecida, não há qualquer resquício de ressentimento ou raiva nas histórias.

Nascimentos, mortes, abortos, violações, traições, alcoolismo, abandono, reencontros, faz tudo parte de uma vida que é sempre vista afirmativamente, em tudo aquilo que a compõe. Em Boba de chorar, Carlotta almoça com Basil no dia de aniversário dela. Estão ambos nos seus cinquenta anos. Ele é apaixonado por ela desde a adolescência, mas foi preterido em favor de outro rapaz, e não é difícil perceber por quê:

«Você e Hilda costumam ir para o litoral?”, perguntei.

«Como alguém conseguiria, depois de frequentar a costa do Chile? Não vou, há sempre muitas hordas de americanos. Eu acho o Pacífico mexicano entediante.»

«Basil, como você pode achar um oceano entediante?»

«O que você acha entediante?»

«Na verdade, nada. Eu nunca fiquei entediada.» (p. 292)

Nem ela, nem nós, quando lemos estas histórias. Mas é mais do que não sentirmos aborrecimento: é sentirmo-nos a viver com ela da maneira como ela vive, chegando até a desejar estar numa prisão no meio do deserto de Albuquerque, pela forma como isso é descrito. Afirmar isto, admita-se, não está longe de classificar a sua escrita de “colorida” ou “vibrante”. A dificuldade de falar de Lucia Berlin reside precisamente em percebermos que a escrita é tecnicamente perfeita e que a tentativa de explicar a experiência da leitura resultará sempre insatisfatória.

Ser comparada a escritores como Raymond Carver ou Tchékhov é um elogio e sinal do talento de Berlin, mas ela é única. Mais do que qualificá-la, entre aspas, “como a melhor escritora de todos os tempos”, o que importa dizer é que ela foi uma escritora de raras virtudes e que, tão importante quanto o talento de Berlin para os detalhes precisos e cortantes, é o que ela deixa de fora.

Existem mestres do parágrafo e mestres da frase; Lucia Berlin é a mestra do fragmento. Suas fotografias de momentos e sua habilidade narrativa faz com que a leitura avance sem resistências, alta velocidade. A história parece que se impulsiona para a frente, sem deixar de ser inteligente ou terrível.

(segue)

Com Observador.pt e Cândido.

LITERARY ESTATE OF LUCIA BERLIN / Divulgação

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