Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (final)

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Oaxaca, México, em 1964

Então, agora vamos fazer o elogio de alguns dos contos do livro.

Manual da Faxineira traz 43 dos 78 contos que Lucia Berlin escreveu. Ela é concisa porque é precisa, é brutal porque trata do horrível da vida e é desiludida (no sentido de realista), mas nunca ao ponto de tornar-se melancólica. E há sempre o humor, que sempre parece garantir que há alguma coisa de divertida para além do horror.

“Não me importo de dizer coisas horríveis, desde que possa torná-las engraçadas”, diz a narradora do conto Silêncio. Serve para todo o livro.

A propósito, Silêncio é um dos melhores contos da coleção. A ação ocorre em El Paso, enquanto o pai da menina protagonista está na guerra. A mãe é uma alcoolista que pune a filha injustamente. O avô é abusador. Já o tio é outro alcoolista, mas é delicado e relaciona-se bem com a menina Lucia. Certo dia, ela apanha da mãe sem justificativa e passa a não falar mais. Mas ela conversa com o tio amigo, que só de vê-la descobre que cinta para a escoliose está apertada e tem que ser trocada. Depois o tio comete um grande erro — na rua, durante uma bebedeira, sem relação direta com a menina — sobre o qual é necessário também silenciar. Ele foge. Quando li o conto pela segunda vez, ele me pareceu quase um ensaio sobre a culpa e a delicadeza, a irritação e a vergonha. O final é uma paulada. Eles se reencontram anos depois:

“Conversamos sobre a vida, contamos piadas. Nenhum dos dois sequer mencionou El Paso. Claro que, a essa altura, eu já tinha percebido todas as razões de ele não ter parado o caminhão naquele dia, porque a essa altura eu era alcoólatra”. (p. 419)

O conto Manual da Faxineira é pura diversão triste. É uma montanha de fragmentos curiosos e engraçados sobre ser faxineira, sem explicar os motivos que levaram uma pessoa tão culta àquela situação:

“Mostre a eles que você faz um serviço completo. No primeiro dia, ponha todos os móveis de volta no lugar errado… dez a vinte centímetros mais para um lado, ou virados em outra direção. Quando tirar o pó, inverta a posição dos gatos siameses. Ponha a cremeira à esquerda do açucareiro. Troque as escovas de dentes de lugar”. (p. 47)

Ela explica isso querendo dizer que nem precisa limpar muito, é só mostrar que tudo foi mexido.

O esplêndido Desgarrados é ambientado em uma espécie de colônia para dependentes químicos e alcoolistas. É um projeto piloto de reabilitação, ironicamente chamado de “La vida”. Fica no meio do deserto, isolado, onde os internos, após receberem as doses matinais de metadona, realizam trabalhos compulsórios. O cenário é hostil, brutal em todos os sentidos, os companheiros de reclusão da narradora são figuras tristes, desgarradas, como indica o título. E mesmo assim, em meio a tudo que há de inóspito, há a lua, e a capacidade da narradora de ver uma brecha na rudeza ao redor.

A lua é vista refletida nos olhos amarelos de um cão. Nada importa muito, sabe? Quer dizer, nada importa de verdade. Mas aí, às vezes, só por um segundo, é como se você recebesse uma graça, a crença de que aquilo importa muito. (p. 221)

Outro trecho potente está em Mordidas de tigre. Quando uma jovem de dezenove anos, com um filho de um ano, grávida do segundo e abandonada pelo marido, se vê em uma clínica clandestina de aborto, rodeada por mulheres constrangidas e amedrontadas. Ela então percebe que não quer realizar o aborto, que por mais ingratas que as perspectivas sejam, ela, o filho e o bebê por vir podem ser uma família. Não é algum otimismo pueril, é o horror transfigurado, é a beleza possível da vida, que não exclui o trágico, que se trata mais de uma tomada de posição subjetiva perante o adverso, a tristeza, a solidão.

Muito diferente é Mijito (contração de Mi hijito) uma narrativa pungente de uma mexicana cujo marido é preso. Ela está grávida, não sabe falar inglês e, na verdade, mal sabe pensar. As narradoras são uma atendente de clínica médica, supõe-se que a própria Lucia novamente, e a mãe. O filho nasce, lhe aparece uma hérnia e deve ser operado. A mãe trabalha para amigos do marido preso, fazendo serviços eventuais. Eles as detestam, à mãe e à criança. A mãe não consegue ir às consultas porque tem compromissos ou perde caronas. Também não consegue deixar seu bebê em jejum para a operação. Onde está o humor em toda esta desgraça? Na rotina da clínica, que vê tudo acontecer sob olhos mais ou menos calmos. Um conto de horror absoluto contado em ritmo de dança.

Como ela consegue dar um jeito de misturar humor e horror de uma forma que nos deixa perplexos?

Em outros contos, por exemplo: a jovem que assiste o médico introduzir o mecanismo para realizar abortos descreve o procedimento:

“… empurrando lentamente o tubo lá para dentro, como quem recheia um peru”. (p. 101)

Ou a idosa que observa um funcionário que mede o banheiro para trocar o ladrilho:

“Aquela sua catinga era como uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô e Tio John, para começar”. (p. 475)

Ora, comparar a madeleine de Proust com o odor de um homem velho e gordo demais para realizar o serviço pelo qual ela o contratou, e o poder desse cheiro de levar a narradora de volta à infância… É esse o tipo de transformação que Berlin cria.

Ou em Amigos, quando ela pensa que está ajudando — e se sacrificando um pouco por — um casal solitário de velhos e ouve o seguinte diálogo:

— Ela nunca se atrasou antes Talvez ela não venha.

— Ah, ela vem sim… essas manhãs significam tanto para ela.

— Coitada, tão sozinha. Ela precisa de nós. Na verdade, somos a única família que ela tem. 

— Ela com certeza adora minhas histórias. Droga. Não estou conseguindo pensar em nenhuma história para contar pra ela hoje.

— Alguma coisa vai acabar te ocorrendo… (p. 191)

É difícil pensar que ela, a escritora, fosse tímida, mas aparentemente ela poderia ser. O belo romance de Quero ver aquele seu sorriso — onde um apaixonado casal sempre bêbado atrai um advogado caro para defender a mulher acusada de uma agressão a policiais e que acaba seduzido pelo estilo de vida deles, no mais longo e um dos melhores contos do livro — e as histórias hospitalares de Meu Jockey, Caderno de notas do setor de emergência, Temps Perdu não apontam para uma pessoa retraída.

Porém, há um vídeo que sobreviveu de uma leitura em Oakland em 1984, e ela não parece nada à vontade. Um amigo disse que “Era como se ela tivesse medo de errar, medo de agir como uma alcoólatra: cair, vomitar bobagens, agir como uma louca”.

Pois bem, há vários contos sobre alcoolismo. Um ansioso e trágico é Incontrolável, onde a personagem principal espera que o supermercado abra às 6h da manhã para que ela possa comprar o álcool salvador. Ela estava trêmula e hiperventilando. Se não tomasse logo algo entraria em delirium tremens. O filho fica com as chaves do carro e a carteira de motorista por segurança. A tranquilidade da casa faz enorme contraste com a abstinência.

Há o cômico 502. Bêbada, ela deixa o carro estacionado em ponto morto e vai dormir em casa. Bem, o carro acaba descendo a rua quando o carro de frente desencosta. Ele vai longe até bater num prédio, mas não machuca ninguém. Os bêbados amigos dela, todos eles negros que costumam beber dentro de um caro abandonado e sem motor da rua, a defendem junto à autoridade policial. Como é que ela vai ser multada se estava dormindo em casa???

“Se você não está dirigindo, não pode ser multado por dirigir embriagado”. (p. 456)

Depois, quando conseguiu se recuperar, seguia avaliando cidades pelo nível de dificuldade para arranjar bebidas.

Ela deixa de beber depois dos 50 anos de idade enquanto cuida da irmã mais nova que morreu de câncer na Cidade do México. Em várias histórias — Espere um instante, Mamãe, Dor — os últimos meses da vida de Sally são contados de várias maneiras, em situações sempre diferentes e complementares.

Em seus relatos há enfermeiras, professoras, faxineiras que oferecem interessantes conselhos — “Pegue tudo que sua patroa te dê e agradeça. Pode deixar no ônibus, entre os bancos –, e também há muitas garrafas de uísque, bebedeiras, vícios, viagens para o México, uma avó que pede que seus netos se afastem dela como se fossem cachorros. As histórias acontecem em centros de desintoxicação, hospitais, casas de família.

Em suas explorações da memória pessoal, Berlin tem um controle nada trêmulo de suas narrativas. As conclusões não são nada reconfortantes: quanto mais velhos ficamos, mais nossas lembranças se tornam catálogos de perdas. Parentes morrem, relacionamentos se desfazem. “As partes boas são tão difíceis de lidar quanto as ruins”, conclui uma das personagens.

Já falei sobre isso, mas vamos de novo. A última história que Berlin escreveu, B.F. e eu, é sobre uma mulher idosa em um trailer, amarrada a um tanque de oxigênio, tentando conseguir um faz-tudo para colocar ladrilhos novos em seu banheiro, acaba recebendo um senhor tão velho e quase tão enfisêmico quanto ela para fazer o serviço. O conto tem uma conclusão apropriadamente não sentimental. Como já dissemos, o ladrilheiro faz com que ela invoque Proust, como outra história que se chama Temps Perdu.

[B. F.] era um homem enorme, alto, muito gordo e muito velho. Mesmo enquanto ele ainda estava do lado de fora, tentando recuperar o fôlego, eu já estava sentindo o cheiro dele. Tabaco e lã suja, suor fedorento de alcoólatra. Gostei dele de cara. […] Fiquei vendo B. F. medir o banheiro durante um tempo, depois fui me sentar na cozinha. Continuei sentindo o cheiro dele de lá.  Aquela sua catinga era uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô [o dentista alcoolista e arrancador de dentes] e o Tio John [aquele que fugiu do atropelamento], para começar. (p. 475)

Como vemos, assim como na grande obra circular de Proust, em Lucia Berlin o fim se torna um caminho de volta ao início. E, por falar em fim, acho que, assim, chegamos ao nosso final, desejando termos dado a vocês uma boa ideia do que é esta grande escritora.

Com Rascunho e The Guardian.

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