Meu amigo S. era muito desejado pelas mulheres. Bonito e inteligente, falava com voz estereofônica e as moças do escritório — trabalhávamos numa grande multinacional — o seguiam com os olhos para cá e para lá. Nós, homens, reconhecíamos sua superioridade. Ele nascera em Antônio Prado, uma cidade histórica gaúcha. Certa vez, um jornal publicou uma reportagem sobre as velhas construções dos italianos da região. O título da matéria era Toda a Graça de Antônio Prado. Nossa secretária pôs a página no mural e completou com caneta vermelha: Toda a Graça de Antônio Prado ESTÁ CONOSCO.
Um dia, S. confidenciou-me algo espantoso:
— Milton, tenho inveja de ti –, pensei que vinha uma piada qualquer e esperei.
— As mulheres que saem contigo são intelectuais, inteligentes, de bom nível. Já meu séquito é formado por mulheres burras que se apaixonam pela minha cara.
Fiquei espantado. Seguimos conversando, mas o assunto não prosperou. Meses depois, S. sofreu um grave acidente. Dormira ao volante e fora de encontro à traseira de um caminhão parado. Estava a 80 quilômetros por hora. A comoção foi geral, era uma pessoa querida por todos. Após um mês no hospital, ele retornou com duas grandes cicatrizes no rosto. Falou-me de sua intenção de submeter-se a todas as cirurgias possíveis para recuperar o rosto de Adonis. Ao comentar com minha (então) mulher a respeito, ouvi uma opinião discordante.
— Milton, ele era perfeito demais. Agora ficou humano! Acuse-o de não entender nada de mulheres! É muito grave.
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Passei grande parte das últimas três décadas procurando entender as mulheres. Evoluí muito. Hoje sei de alguns detalhes que, se não penetram a alma feminina, fazem que ela respire melhor. As mulheres têm um gênero de sensibilidade diversa da nossa, queiramos ou não. Trabalham, adornam-se, falam, escrevem e criam obras literárias distintas. Têm expressão tão diversa da masculina quanto sopranos e contraltos diferem de tenores e baixos.
Os primeiros críticos ingleses que escreveram sobre Jane Austen (1775-1817) referiram-se a tea-table novels. É uma interpretação muito superficial. Austen — que escrevia seus romances em seu quarto, temendo que alguém entrasse e interviesse — põe lentamente em movimento grandes e complexos personagens. Esta escritora genial é absolutamente irônica e realista. Foi a primeira a retirar a nota trágica do romance sério. Criou personagens e diálogos inesquecíveis dentro das velhas histórias tradicionais de mocinhas que só pensam em noivar e casar — na verdade, uma necessidade absoluta para evitar a pobreza ou o viver de favor. Quem leu Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice) nunca esquecerá Elisabeth Bishop e Fitzwilliam Darcy e alguns críticos consideram Emma Woodhouse, de Emma, a maior personagem da literatura inglesa. Não é pouca coisa. Sua voz em Orgulho e Preconceito:
Mary não compreendia seus sinais. Uma tal oportunidade de exibir-se era-lhe deliciosa e ela começou a cantar. Os olhos de Elisabeth se fixaram nela com os mais dolorosos sentimentos. Ouviu as várias estrofes com uma impaciência muito mal contida, pois Mary, ao perceber entre os agradecimentos a sugestão de que ela pudesse ser instada a renovar o prazer que estava dando a seus ouvintes, recomeçou a cantar, depois de uma pausa de meio minuto.
A admiração atual por Virginia Woolf (1882-1941) é estrondosa e merecida. Foi romancista, contista, ensaísta e memorialista de primeira linha. Anos atrás, o Oscar de melhor filme foi dado à adaptação de um livro baseado na biografia de Woolf e em uma de suas obras, Mrs. Dalloway. As Horas (The Hours) era o título inicial de Mrs. Dalloway. Não pretendo resumir em poucas palavras uma escritora tão conhecida, ampla e de voz tão original, seria uma temeridade. É curioso saber que, nas margens de seus manuscritos havia observações como esta:
Eu não consigo escrever & todos os diabos aparecem – pretos e peludos. Ter 29 anos e ser solteira – ser um fracasso – Sem filhos – também doida, e não escritora. E, ao lado, esta outra: Fico deitada & penso na minha adorada fera, que me torna mais feliz a cada dia & instante de minha vida do que jamais pensei ser possível. Não há dúvida de que estou terrivelmente apaixonada por você. Ponho-me a pensar no que estará fazendo, & tenho que parar porque começo a querer muito beijar você.
Tais anotações, quais romances?
Lembro-me de George Eliot, Sylvia Plath e Doris Lessing, porém concluo com Clarice Lispector (1925-1977). Para mim é difícil chamar Clarice de intimista; ela é mais do que isto, torna-se íntima de quem a lê. Ela me é ou ela torna-se eu, poderia ter escrito Clarice. Longe dos padrões estabelecidos, temos de abdicar da segurança das convenções da literatura tradicional para deixar que sua maravilhosa invenção nos leve. A palavra é protagonista tão importante em sua criação que temos a sensação de que vem antes do pensamento: Como poderei saber o que penso até que veja o que digo? (*) Sua arte é de tal forma envolvente, que quando relemos nossas anotações anos depois, não compreendemos mais do que se trata. É melhor recomeçar o livro, reentrar em seu espaço, é melhor ir direto a Clarice de, por exemplo:
Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
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Querem saber se S. fez as tais cirurgias? Não, não fez. Talvez a vaidade masculina seja tão boa ouvinte quanto a feminina…
(*) André Gide, em “Os Moedeiros Falsos”.
Que postÃO, Milton.
Há entretanto os bonitos e inteligentes, ora. Sim, o mundo é cheio de paradoxos.
Abraço.
Quem melhor poderia comentar teu post, senão Madame Antonini? Sinto-me intruso, mas concordo que este é um dos melhores que já li. As mulheres, como certeza, são muitas. Já dizia Lacan (talvez não as entendesse bem, embora as analisasse) que não existe A Mulher, pura ficção masculina que tenta com-preender o inapreensível. Por isso perguntamos: o que quer uma mulher? e jamais encontramos resposta. É o que sustenta o Amor, que vive de perguntar ao amado: O que queres de mim?. Na vã tentativa, damos o que não temos a quem não sabe o que quer, mas que sabe deixar que as palavras jorrem fecundas.
Gostei muito.
Fiquemos com esta de Clarice também:
‘Quero escrever-te como quem aprende’.
e também:
‘O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa’.
todas Água viva, e eu acho mesmo que deveria ter se chamado Atrás do pensamento…