O Bartók de 1909 e o Quarteto de Cordas Nº 1

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Oh, céus, dia desses liguei o rádio — sim, às vezes ainda faço isso — e estava tocando uma das músicas que mais amo: Contrastes, de Béla Bartók, para clarinete, violino e piano. A obra é baseada em melodias de danças húngaras e romenas e foi escrita em resposta a uma encomendada do genial clarinetista de jazz Benny Goodman em 1938, nos EUA, quando Bartók tinha se afastado do nazismo contra sua vontade — pois preferia enfrentá-lo e talvez ser morto. Contrastes é daquelas coisas que fecham levemente a garganta da gente e nos elevam alguns centímetros. Mesmo sendo considerada uma obra leve, ela nos mostra alguns abismos. E até o final mais agitado e quase-Poulenc me deixa emocionado.

Ouvindo o rádio, lembrei de que este ano tínhamos acertado de fazer o #BRTK140 aqui no PQP Bach. Ou seja, vamos postar a obra completa do húngaro no ano em que ele completa 140 anos de nascimento. Rale-se que são 140 e não um número divisível por 50.

Bartók merece. Em uma edição húngara, sua obra completa preenche apenas 29 CDs — o que, grosso modo, corresponderia a 29 horas de música — , mas são 29 CDs sem erros ou momentos fracos. E, além do mais, ele tem uma biografia espetacular, foi o fundador da etnomusicologia, viajou do interior da Turquia, Anatólia, Romênia e Bulgária até o norte da África coletando e aprendendo a real música do povo e não o que se pensava que ela fosse. Tem importância e profundidade em mais de um campo.

A música clássica nunca viveu em uma bolha. Sempre houve um fluxo livre de ideias cruzando a linha da chamada música artística e a música folclórica. Quando esta bolha estava ficando dura e impermeável no início do século passado, quando os autores passaram a virar as costas para a “baixa cultura”, ele foi lá e os fez ver o que estavam perdendo.

Na foto abaixo, em 1907, Bartók está gravando uma camponesa que canta suas músicas. Vejam que beleza.

Não há muito interesse genuíno em qualquer lugar do mundo por este ramo da ciência musical ”,

escreveu Béla Bartók em 1921, enquanto refletia desanimado sobre seus extensos estudos de música folclórica do Leste Europeu.

Quem sabe, talvez nem seja tão importante quanto acreditam seus fanáticos!

Bartók pode não ter sido muito apreciado em sua vida (1881–1945), porém, quase um século depois de escrever este lamento, o mundo alcançou o compositor e o etnomusicólogo pioneiro. Suas composições, incluindo os seis quartetos de cordas que compôs entre 1909 e 1939, são repletas de inovações inspiradas na música folclórica rústica que colecionou no interior do Leste Europeu com seu amigo e colega, o compositor e pedagogo Zoltán Kodály.

Enquanto Brahms usava motivos folclóricos estilizados em suas Danças Húngaras, Bartók explorou as técnicas que aprendeu com canções folclóricas autênticas. Essa abordagem atingiu seu apogeu em seus quartetos de cordas, que são um monumento do cânone erudito do século XX. Essas significativas obras de câmara continuam a desafiar os músicos. “Além do desafio técnico absoluto de executar partituras terrivelmente difíceis, as principais questões interpretativas têm a ver com encontrar um equilíbrio viável entre os extremos: complexidade e clareza, austeridade polifônica e influência folclórica”, escreveu o crítico musical Philip Kennicott em 2014. 

Béla Bartók na Anatólia (atual Turquia)

Nesta série, postaremos um monte de gravações dos quartetos de Bartók. Elas estarão divididas em 6 posts e cada texto focará em um dos dos quartetos.

Quarteto Nº 1 de Béla Bartók (1909)

É uma experiência interessante ouvir os últimos quartetos de Beethoven passando imediatamente para os primeiros de Bartók. Parece que a obra revolucionária de LvB recebe uma digna continuidade por parte do húngaro. Mais: este Quarteto Nº 1 parece um opus seguinte de Beethoven, talvez não pela música, mas pelo espírito das obras.

Mas foquemos nossa lente no húngaro. Para o jovem Bartók, o período de 1906-1909 marcou uma época de grandes mudanças e turbulências. No início deste período, ele pode ser razoavelmente descrito como um discípulo e admirador de Beethoven, Richard Strauss e Debussy, ao mesmo que iniciava seu caminho pioneiro na etnomusicologia, coletando e gravando música folclórica em seus cadernos e no cilindro de cera de Thomas Edison.

O Bartók de 1909 é recordado pela primeira mulher, Márta Ziegler, com quem era então recém-casado: “Ele compunha principalmente à noite. Durante o dia, estava ocupado a transcrever e a organizar as suas coleções de canções folclóricas gravadas em cilindros de cera para publicação ”.

Então, ao lado das influências eruditas, a música popular também estava se tornando uma força central nas próprias composições de Bartók, seja na forma de citações, seja de forma incorporada, integrada. Claro, nos anos seguintes, o ideal de BB como compositor seria o de absorver o espírito da música folclórica de tal forma que suas composições carregassem sua essência, em vez de apenas aludi-la. Ele esperava construir o edifício de sua própria música com base nas verdades expressivas que percebia nessas melodias.

Em 1907, Bartók estava passando por algumas, digamos, convulsões em sua vida pessoal. Ele tinha rejeitado o catolicismo romano de sua educação e se proclamado ateu, postura que manteve até o fim. Ao mesmo tempo, ele estava apaixonado pela jovem violinista Stefi Geyer. Contudo, acabou rejeitado pela moça e o Concerto para Violino que ele havia escrito para ela foi fechado em uma gaveta e só publicado post mortem. Mas a juventude é rápida e em 1908, um ano depois do breve e marcante caso com Geyer, Bartók casou-se com Márta Ziegler.

Foi neste ambiente que surgiu o primeiro Quarteto de Cordas. É sua primeira obra-prima, que retrata vividamente os impulsos desta época de sua vida. É formado por 3 movimentos longos tocados em sequência, de uns dez minutos cada. Em uma carta a Geyer, Bartók descreveu o primeiro movimento como um “canto fúnebre”. O motivo de abertura, levado pelos dois violinos, é uma melodia do Concerto que ele escrevera para ela e, portanto, esse movimento pode simbolizar a morte dessa paixão. É um movimento dramático que, conhecendo a biografia de Bartók, ouço como que impregnado de desejo e perda. Há nela algo do romantismo germânico, principalmente nos dois clímax. No final do movimento, ele já esqueceu Geyer e há evidências de uma nova vida.

No segundo movimento, a música se acelera de uma forma que somos levados para bem longe do pesado fardo anterior. Não faz muito sentido dizer que a música desse movimento se parece mais com Bartók, mas creio que serei entendido… Diante de nós, um compositor está encontrando sua voz. O segundo movimento atinge um final etéreo e tranquilo.

O terceiro movimento é uma música enérgica, evocando a sensação de uma dança camponesa. Embora haja tensão e urgência no ar, o clima predominante é de bom humor. Ouvimos, também, a influência da música folclórica que Bartók começava a catalogar: as duas passagens culminantes do movimento apresentam uma melodia muito parecida com as canções folclóricas magiares que colecionava naquele ano. O compositor ainda estava a alguns anos de distância do período em que aspiraria a incluir o idioma folclórico em sua corrente sanguínea. Esta ainda é a música de um homem em visita o campo, fascinado pela alteridade exótica das melodias folclóricas que encontra. Mas, ao mesmo tempo, podemos sentir que ele está fisgado. A verdade é que Bartók apenas começava a arranhar a superfície delas e para cavar cada vez mais fundo em trabalhos futuros.

O estudioso e biógrafo de Bartók, Halsey Stevens, observa que “a liberdade contrapontística característica do tratamento de Bartók do quarteto de cordas, a extrema plasticidade com que as linhas individuais giram, mudam, combinam e se opõem já são perceptíveis no Primeiro Quarteto”. Além disso, “cada instrumentista é considerado um indivíduo, com o seu próprio fio de tecido; esta autonomia traz uma riqueza de texturas comparável a dos últimos quartetos de Beethoven”.

Deixo abaixo uma interpretação ao vivo do Quarteto Nº 1 não porque este seja um registro especial ou porque o vídeo realce especialmente a beleza da obra — apesar de ser muito bom! –, mas porque desta forma, com os músicos em ação, fica ainda mais clara sua dificuldade.

Etnomusicologia não é só ficar sentado no escritório…

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