Por Anahy Metz
Quando o João Perassolo, assessor de imprensa da extinta Cosac Naify, me escreveu pedindo um texto sobre o Assim na Terra, pensei: que estrada trilhar? Como não sou especialista na obra do autor do livro, Luiz Sérgio Metz (meu pai), decidi contar algumas histórias envolvendo a vida dele que me parecem explicar de onde surgiu a obra. Há um texto do pai, publicado pela Zero Hora no caderno de Cultura, que defende que todos deveríamos nascer com o propósito de desvendar uma lenda. Não lembro bem se era uma lenda apenas, ou lendas, mas a ideia é essa. Nascer para desvendar algo. Com essa referência, escrevo três lendas a seu respeito:
Lenda Um – infância em Santo Ângelo
Meu pai tem três irmãs, Lourdes, Carmen e Bernadete. Juntas elas me contaram essas histórias.
Ele não conseguia ficar na sala de aula. Na época do colégio, ele dava um jeito de fugir para brincar com os amigos pelas sangas de Santo Ângelo. Gostava de estar em contato com a natureza e enfiar os pés descalços no barro vermelho típico das Missões. Meu avô, Arlindo, era uma alemãozão brabo, artesão marceneiro. As tias me contaram que, para não apanhar quando chegasse em casa, as mães dos amigos lavavam a roupa do meu pai, davam jeito de secar e ele chegava em casa como se nada tivesse acontecido. A escola Onofre Pires não estava preparada para ele, me conta uma professora que lecionava lá na época em que o pai foi aluno. “Gostaria que ele tivesse sido meu aluno, as outras professoras não sabiam o que fazer com o Jaca”, disse ela.
Me parece que o surgimento do Assim na Terra está justamente aí. Nas brincadeiras de rua. Elas foram transferidas para a lida com a palavra. Da maneira como o livro foi concebido, penso que não é possível que alguém trabalhe de forma tão livre com o vocabulário e as ideias se não estiver brincando, guardadas as proporções. Sempre me chamou atenção quando passava as férias em Santo Ângelo, a maneira como as histórias eram contadas pelas minhas tias, o modo como falavam sobre as pessoas com as quais conviviam. Não era algo simples do cotidiano, mas sim como se estivessem se referindo a personagens de uma história, que era real, mas dita daquele jeito, virava literatura. Me lembro delas me contando do Sete Camisas e do Sete Sacolas, uma brincadeira genial com a linguagem e, de certa forma, uma criação de personagens que, para mim, são da ordem do fantástico. Meu pai internalizou tudo isso e transferiu essa vivência e aprendizado para o “fazer” da linguagem e da produção poética.
Elas me contaram, por exemplo, o causo (vou chamar aqui de causo por que minha relação com essa contação é afetiva, enfim) do dia em que o pai tinha que mostrar as tarefas de casa demandadas pelo colégio ao meu avô. De novo, para que não apanhasse do vô Arlindo, minhas tias deram um jeito para que ele cumprisse o dever antes que o caderno fosse averiguado. Sentaram-se os quatro na mesa, minhas tias e meu pai, que deveria estar lá pela segunda série. Uma das perguntas escrita aos garranchos no caderno era: o que se deve fazer antes do almoço? Imagino que a situação devia ser tensa. O vô já estava quase chegando e o meu pai larga o seguinte no papel: sicová e silavá. Sim, diante do não cumprimento do dever de casa, da possibilidade de levar uma sumanta de pau e ainda ficar de castigo, o pai subverte a linguagem e responde a um questionamento simples brincando, numa ironia fina, e experimentando com a linguagem.
Lenda Dois – os cavalos e a Adélia
O pai sonhava estar em contato com os cavalos. Não lembro quem me contou essa história, mas vamos a ela. Na época em que entrou para o Exército, ainda em Santo Ângelo, o Jaca deu um jeito de ser transferido para São Gabriel, onde havia Cavalaria e a possibilidade de aprender a lida com os cavalos. Era o único jeito que dispunha para se aproximar desse animal que o fascinava tanto. Conseguiu a transferência e finalmente iria estabelecer uma relação com o que antes era distante. Então minha avó Adélia caiu doente. Ficou acamada durante muito tempo, o que acarretou na retransferência do pai para Santo Ângelo. Imagino o rebuliço dentro de uma instituição como o Exército para conseguir tais encaminhamentos. É óbvio, após o retorno do pai, minha avó voltou a se sentir saudável. O amor pelos cavalos teve de esperar.
Lenda Três – o relatório e a criação do Uvizinho
Nos anos 70, o pai foi estudar Filosofia em Santa Maria. Acabou trocando para o Jornalismo. Aí novamente, história que minhas tias me contaram e para a qual existe a prova. Ao final do curso, meu pai tinha de fazer um estágio e, ao final do estágio, apresentar um relatório. Algo bem burocrático. Isso era necessário para que se formasse. Ao invés de fazer o que todo formando faz, o pai escreveu um texto sobre a relação que estabeleceu com os passarinhos que habitavam/visitavam o local onde acontecia o tal aprendizado prático. Deu apelidos aos passarinhos, para um deles, Uvizinho. Experimentou novamente com a linguagem, subvertendo a seriedade burocrática exigida por um relatório. Essas coisas não eram para ele. Para o pai, a vida em si era bem mais do que um relatório emparedado sobre os aprendizados técnicos no tal estágio. Esse texto acabou dando origem ao conto “Uguino, o inventor de passarinhos”, que foi publicado posteriormente no livro de contos “O primeiro e o segundo homem”. É claro que o pai foi reprovado e teve de cursar a cadeira novamente para conseguir o diploma. A Universidade não estava preparada para ele.
Nunca tinha ouvido falar dele ou de seus livros, mas esse texto me fez querer saber mais. E, nessa busca, encontrei essa bela definição de artista feita pelo Luiz Sérgio Metz que quis compartilhar:
“Por natureza, por essência, por definição e postura o artista é um cidadão incomum e iluminante. Deriva de sua agudíssima sensibilidade esse posicionamento diferenciado. O artista é, na prática, difícil de reunir, impossível de redomonear, instável de conviver; enxerga os absurdos antes dos demais, sente as transformações sociais primeiro e privilegiadamente e isso, não raro, o coloca em permanente estado de alarme e angústia. Expressa-se de forma precisa sobre seu tempo e, por dialogar através de imagens, símbolos e metáforas – que são sínteses transformadas e transformadoras da realidade, às vezes é chamado de ‘absurdo’, ‘hermético’ e, ainda pejorativamente, de ‘visionário’, ‘complexo’, ‘obscuro’.”