Na Folha, em 18 de dezembro de 1999
Chega a ser difícil pensar nele como compositor. A música de Bach (1685-1750) tem uma autoridade tamanha, e há tanto tempo, que é quase sinônimo de “música”, substantivo sem dono. Desde o início do século 19, estudar composição é estudar a música de Bach e aprender piano — ou violino ou violoncelo — é aprender a tocar Bach.
Até hoje ninguém disputa com ele a supremacia no domínio da música religiosa — com palavras ou sem. Bach é o ponto de apoio da música na nossa cultura e é mais natural pensar nele como música do que como um homem que escrevia música.
Há uma certa ironia nisso, antevista num artigo antológico de Theodor Adorno, “Bach Defendido de Seus Admiradores” (em “Prismas”). O que os compositores fazem dele, absorvendo seus ensinamentos e os torcendo para seus próprios fins é uma coisa; outra, bem diferente, é o que faz a indústria cultural.
O mais humano dos compositores será neutralizado em monumento: Bach vira ideologia (conforto religioso, tema de festivais e competições) e mercadoria (música para ninar bebês, jingles de espera telefônica, trilha de comerciais natalinos). É uma ironia porque Bach, para Adorno, representa justamente “a emancipação do sujeito”, capaz de gozar da liberdade no domínio objetivo de todas as técnicas de composição da sua época.
Nesse cenário, as celebrações de 250 anos da morte de Bach, no ano que vem, fariam prever um carnaval soturno de produtos e promoções. Mas a tese de Adorno tornou-se obsoleta, em parte, devido ao resgate de Bach pela “alta” cultura, fruto do embrutecimento cada vez maior da “baixa”.
Bach foi salvo, paradoxalmente, pela decadência da cultura de massa, na qual uma música dessas não tem mais lugar. O que as gravadoras estão apresentando, desde já, para comemorar o número redondo, são coleções que impressionam pela magnitude e seriedade, grandes monumentos cujo sofisticado apelo comercial não diminui sua importância para os ouvintes de boa-fé.
É o caso das doze caixas integrando a série “Bach 2000”, da Teldec. São 153 CDs, com a obra completa de Bach: aproximadamente seis dias e meio de música. Nem tudo é novo na empreitada. Há gravações antigas do Concentus Musicus de Viena e do Leonhardt-Consort, interpretando cantatas, e curiosidades de arquivo, como as suítes para violoncelo, registradas na década de 60 por Nikolaus Harnoncourt (pioneiro da “autenticidade”, mas nesse caso decepcionante).
Há também surpresas, como as peças para alaúde-cravo, tocadas pelos músicos do Giardino Armonico; ou as fantasias para órgão, ornamentadas fantasticamente mesmo por Ton Koopman. (“Sem os ornamentos, essa música faz pensar no interior de uma igreja barroca devastada por um incêndio”, comenta Koopman no encarte.)
Sem pretensão de “obras completas”, a série Bach da Harmonia Mundi talvez seja uma pedida melhor para quem não tem muito conhecimento dos intérpretes -nem fundos ilimitados no banco.
Ao contrário da Teldec, que só vende caixas inteiras de doze ou mais CDs, os discos da Harmonia Mundi podem ser comprados um a um. Incluem gravações antológicas da música sacra (“Missa em Si Menor”, “Paixão Segundo São Mateus”, “Magnificat”), regidas por Philippe Herreweghe.
Nas cantatas para contralto, o solista é o contratenor Andreas Scholl, que está hoje para a música barroca como Ian Bostridge para a romântica: é o intérprete predestinado para nós (quem diria?), ouvintes predestinados.
Os CDs da Harmonia Mundi aderem impecavelmente aos princípios da interpretação autêntica; mas essa nova geração de músicos já chegou àquele ponto em que conhecimento e intuição viram uma coisa só. Escutam a música naturalmente, com o ouvido de dentro, sem o qual o de fora é só um pavilhão auditivo. Estrela entre estrelas, o violinista Andrew Manze reinventa a “Toccata e Fuga em Ré Menor” (mais conhecida na versão para órgão) com um fogo de imaginação que transcende todos os tratados, sem esquecer deles.
Para o mês de março, está previsto o lançamento também de um CD-ROM, “Johann Sebastian Bach – Uma Enciclopédia Musical”, com biografia, catálogo interativo, ensaios de musicologia e acervo de imagens. A invenção do CD-ROM não alterou rigorosamente nada nos hábitos da escuta; mas beneficia muito esse tipo de instrução, no qual o comentário vem junto com a música, e vice-versa.
Pode-se mencionar ainda outra coleção integral, do selo Hänssler Classic, com 171 CDs, sob a coordenação de Helmuth Rilling. Seria uma grande notícia, se não tivesse sido eclipsada, de antemão, pelas outras duas coleções, que são bem superiores.
Numa era de empobrecimento, inclusive intelectual, o advento dessas coleções ganha uma conotação quase religiosa: sustenta, ao menos, a religião de Bach e a paixão da música. Seremos nós as primeiras gerações a terem a possibilidade de escutar a obra completa de Bach, desde que foi escrita. O efeito de uma escuta sistemática dessas é difícil de prever. O que pode fazer conosco é assunto para a alma de cada um. O que há de fazer com a música é um assunto maior, que talvez não tenha interesse ainda, mas vai ter daqui a 50 ou 250 anos.