Por Flávio Paiva
As livrarias estão sumindo e, pelo visto, quase ninguém se dá conta dessa desaparição. É como se elas não fizessem falta. No entanto, cada livraria desaparecida é um ponto de liberdade a menos na teia da sociedade civil de um país submetido a um estado assombrosamente acrítico, apressado e persecutório. E tudo vai ficando tão comezinho que já não se notam mais as obviedades dos posicionamentos impensados.
O sumiço das livrarias faz parte de um desastroso fenômeno de eliminação dos vínculos sociais espontâneos, desinteressados e fundamentais em qualquer processo de emancipação. Mesmo sendo uma loja, um ponto de venda, um comércio, as livrarias não são apenas negócios, elas aproximam pessoas por modos especiais de relacionamento e contribuem, inclusive, para evitar alienações decorrentes da ilusão da realidade do esquecimento funcional.
Talvez por isso mesmo muitas das livrarias que sumiram da trama urbana brasileira parecem não ter deixado nem vestígios. Por trás do fechamento das livrarias desaparece o horizonte da reflexão, da sensibilidade e do senso crítico humanizante. Com a sua plataforma física de dinamização imaginativa dissipada, a sociedade perde o contato profundo consigo mesma e com a essência dos acontecimentos.
O convívio nas livrarias é ao mesmo tempo íntimo e impudico. Íntimo porque o contato com o livro, e entre quem gosta de livros, se dá pela proximidade da busca, da descoberta e do exercício livre do pensamento em convivência. E impudico por escancarar o livro e a leitura ao sentido de destino dos sonhos e dos desejos, levando o frequentador de livraria aos confins das possibilidades existenciais e de legitimação das diferenças.
Convém dizer que a necessidade das livrarias não nega nem demoniza a produção e o comércio on-line de literatura. São sistemas complementares à circulação de obras impressas e digitais. O sumiço das livrarias é alarmante porque reflete apatia social com relação a um ponto de encontro capaz de reunir lugares, tempos, sentimentos e emoções da experiência humana pelos conectivos sagrados das palavras e seus sentidos.
Naturalizar o sumiço das livrarias, como se isso fosse um determinismo hipermoderno, é sucumbir diante dos abusos doutrinários e consumistas vigentes que promovem a esterilização da autonomia do pensamento nos catálogos literários, fazendo prevalecer os livros que simplesmente entretêm, devastando assim a bibliodiversidade literária de um país tão carente de leitura e de leitores.
As livrarias são como as lavouras orgânicas e familiares em um mundo controlado pelo agronegócio. A escassez de livrarias no abundante âmbito do fluxo das ideias é como a falta de alimentos nos pequenos povoados perdidos em meio aos imensos campos de produção agrícola e pecuária. Desse modo, o sumiço das livrarias assume o caráter social de escassez em uma situação típica da nova economia de conteúdo que revitaliza o ultraliberalismo devastador.
Somem as livrarias enquanto a sociedade se perde por falta da fertilidade imaginativa que elas proporcionam. As livrarias são necessárias para a existência de atos de contraconduta. Conte-se o número de livrarias em uma cidade e se saberá o grau de humanidade que ainda lhe resta. É diretamente proporcional: quanto menos livrarias, mais medíocre a mentalidade humana dominante.
Pois é. Saudades dos anos 90, em que eu morava na Zona Sul do Rio e fazia um périplo semanal por algumas livrarias. Argumento, Dazibao, sebos. A Saraiva Megastore eu já não gostava, pois não tinha o vendedor/livreiro também apaixonado para discussões ou recomendações. O que dizer da Amazon, onde os algoritmos vão te dando sugestões baseados numa IA capenga? O mesmo vale para os discos.
Só li verdades.
Também adoro livrarias, mas, convenhamos, este lamento toca a uma minoria, pois a maioria das cidades brasileiras sequer tem livraria. E quando a tem, é para poucos. Na minha infância no interior do RS, quem supria a necessidade de leitura era a biblioteca pública.
Verdade. Fora das capitais é complicado. Moro em Petrópolis-RJ, que está longe de ser uma roça. Aqui temos apenas duas livrarias Nobel (que foca mais em best-sellers) e uma única livraria que vende livros de interesse mais restrito, no distrito de Itaipava.
É lamentável a situação no interior. Deviam ter umas kombis itinerantes disponibizando acervos em praças, sei lá.