Atrás do balcão da Bamboletras (L)

Atrás do balcão da Bamboletras (L)

De manhã, bem cedo, a moça me liga. Diz que está em Londres e quer dar dois presentes — um para seu pai e outro para um amigo, ambos aqui em Porto Alegre.

Digo-lhe que Londres é a cidade que mais amo no mundo. Ela conta que a cidade está linda no verão, toda florida. Eu fui lá 4 vezes, passei boas temporadas, mas sempre no inverno.

Ela me pede livros impossíveis, fora de catálogo ou jamais traduzidos, mas logo entramos em acordo sobre os presentes. Ela faz um pix e me diz que passa os dias nos parques, estudando. Tem 25 anos. Eu recebo o pix e digo que temos um solzinho bem tímido aqui. Ela quer saber minha idade, chuta que eu tenho 30 anos. Eu lhe digo que sou um velho de 66. Ela dá uma gargalhada e diz que eu sou mais velho que o pai dela, mas que minha voz é jovem. Minha hora de rir.

Ela repete que o livro do pai tem que entregue na segunda porque é o dia de seu aniversário.

Despedimo-nos e eu fico pensando naquela entrada do Hyde Park, vindo da Exhibition Road. Logo ela me manda os endereços de entrega pelo WhatsApp e uma foto. Tenho quase certeza que é do Green Park.

 

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Ao Farol (ou Passeio ao Farol), de Virginia Woolf

Ao Farol (ou Passeio ao Farol), de Virginia Woolf

Em diferentes fases da vida, eu li três vezes este livro. E sempre o li como se comesse chocolate, sempre com a intenção de me deliciar mais um pouquinho. Isso não acontece devido a alguma reviravolta na trama, nem a réplicas espirituosas, nem a envolvimentos românticos. Na verdade, Virginia Woolf frequentemente ignora a trama em favor do exame das minúcias, colocando sob seu microscópio as emoções humanas ou, como na seção central deste livro, a maneira como uma casa se decompõe, como se a casa fosse humana. Eu sou um sujeito, acho, que exijo consistência e profundidade naquilo que leio, mas com VW esqueço de tudo. Está frio em Porto Alegre e fiquei mais do que contente em afundar de novo no banho quente deste livro e isso, creio, foi devido aos personagens.

A história acompanha a família Ramsay e suas visitas à Ilha de Skye, na Escócia, de 1910 a 1920. Lá, há enormes ondas, há um céu sempre mudando de humor e, claro, há o brilho do farol. Quando você entra no fluxo da prosa, é difícil escapar. O estilo de escrita de Woolf é propositalmente inovador. Ela cria frases gigantescas seguidas por linhas abruptas e mais curtas. É quase um poema disfarçado de romance. Normalmente não sou fã de poesia. Sempre preferi uma experiência de leitura mais tangível, uma que não seja movida por imagens.

A proximidade com os personagens, a compreensão que VW tem deles é o que os tornou tão envolventes. Eles não são extraordinários — na verdade, até pelo contrário. São tipos intelectuais de classe média, do tipo que você encontra em muitos livros. Pode-se até dizer que eles não oferecem nada de novo, nada para surpreender ou excitar um leitor. No entanto, para mim, a familiaridade com eles era uma prova da habilidade com que foram descritos – porque todo mundo conhece alguém como eles. Virginia Woolf, em algumas centenas de páginas, pareceu capturar exatamente a essência de certas pessoas — certos traços, peculiaridades e maneirismos que posso reconhecer da minha vida, do meu mundo, apesar de estar a cem anos de distância.

Se a Sra. Ramsay é a baseada na figura da mãe de VW, o que dizer de Lily Briscoe? Sua posição fora da família Ramsay torna sua perspectiva uma das mais interessantes e importantes do romance. Sempre senti uma conexão emocional com Lily enquanto ela anseia pelo apoio e amor dos outros. Ela vê a família Ramsay como um símbolo idealizado de amor e união perfeita; no entanto, as outras perspectivas revelam uma realidade muito diferente. Lily é uma constante em todo o romance, assim como o próprio farol. Mesmo quando o tempo passa e certos personagens vêm e vão, Lily está sempre lá com sua pintura, otimismo e introspecção fascinante. Ela é feminina e independente, uma figura contrastante com a Sra. Ramsay. Ou melhor, a feminilidade convencional, representada pela Sra. Ramsay na forma de casamento e família, confunde Lily, e ela, bem, ela talvez seja VW x sua mãe.

Ah, o farol. É o fio condutor que atravessa todo o romance, aquele destino tão desejado pelos filhos da Sra. Ramsay e tão persistentemente evitado pelo Sr. Ramsay. A ênfase contínua em visitar o farol… Ele parece representar uma espécie de objetivo final inatingível. Quando James finalmente chega ao farol depois de anos querendo visitá-lo, ele percebe que ele não se compara ao farol que ele imaginou quando criança. É interessante ver o relacionamento de todos com o farol conforme o romance avança, especialmente na sua seção final.

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Duas línguas, de Laura Cohen Rabelo

Duas línguas, de Laura Cohen Rabelo

Este é o terceiro livro consecutivo de ficção que resenho e que envolve muita música. Não por acaso, o trio todo é da editora Zain, que parece ser especializada no gênero. Bem, sou viciado nisso. Meu livro preferido na vida já foi o Doutor Fausto de Thomas Mann. Meu livro de contos — um livrinho bem premiado, lembram? — tem algumas histórias cheias de música e aquele romance que estou escrevendo há algum tempo também. Mas tergiverso.

Duas línguas é um livro que trata da vida de um intérprete erudito. Como sou casado com uma, fica fácil dizer que, normalmente, suas vidas começam com um professor local, logo após vão para uma faculdade também local, depois seguindo para e Europa para estudar com um figurão. Neste ponto, o instrumentista ou cantor ou fica na Europa ou retorna a seu país de origem. Onde ele vai se fixar depende de seu calibre ou de sua vontade. O violonista B. cumpriu todo o périplo, foi do Brasil para a Inglaterra e voltou, quando o habitual seria permanecer na Europa.

Laura Cohen Rabelo descreve a vida e as inquietações de B. não como uma documentarista, mas com boa arte literária — ou um bom jorro literário. B. está retornando de uma de suas muitas viagens para concertos no exterior. Chega de madrugada em casa. Sua mulher e filhos dormem. Só a cachorra vai recebê-lo. B. entra no banheiro e vê uma foto sua de 30 anos atrás. Está fora do lugar. A partir dali — no ínterim entre a chegada ao banheiro, o inevitável passeio de madrugada com a cachorra e a volta para a casa –, ele inicia um severo fluxo de consciência que o leva da infância até os dias atuais. Recebemos um relato cerrado da vida profissional e amorosa de B. desde os problemas com a tia professora de piano meio abilolada, seus professores (assediadores ou não…), a ida para Londres, etc. Também os problemas com seus violões são bem narrados.

Não sei se B. existe, creio que não. Acredito mais que ele seja um amálgama de vários violonistas. Por exemplo, fui ver uma entrevista do deus do violão Sérgio Abreu no YouTube e me surpreendi pelo fato de ele dizer coisas que B. disse no livro sobre “gravar discos”. Mas não pense que o livro de Rabelo é uma biografia de Sérgio Abreu. O dito cujo é, inclusive, personagem como o são outros grandes mestres do violão: Julian Bream, Andrés Segovia, etc. Ou seja, B. aparece metido entre personagens e instituições reais.

B. é de primeira linha. Não é qualquer um que toca no Wigmore Hall, por exemplo. E Laura Rabelo acompanha seu personagem igualmente em alto nível. Realmente a vida de um artista internacional difere em muito de outras. Para além dos erros e problemas comuns de todos nós, há fontes de angústia a mais em diversos pontos, ainda mais que B. é um tanto… E percebemos que não era apenas a foto que estava fora do lugar.

Recomendo!

Laura Cohen Rabelo

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