Este é um exemplar do chamado romance híbrido, isto é, aquele que mistura gêneros. Cada capítulo nos surpreende e não somente por seus saltos temporais. Começa com um (bom) conto escrito pela personagem principal, segue com a vida da mesma durante a pandemia, há um capítulo-catálogo todo de medos e desejos relacionados à gravidez, etc. Na verdade, o romance parece um livro de contos com a mesma personagem em quase todos eles.
Não pretendo estragar a leitura de ninguém, mas digo que o capítulo-conto de abertura é bastante pânico, seguido por outro que traz uma discussão puxada pelo namorado da escritora a respeito do conto do primeiro capítulo. E aqui o livro segue já de outra forma. O chamado “namorado” não é abusivo, mas digamos que tende a ser. Ele não apenas complica a vida como pode, como vai invadindo o espaço físico da autora dentro do pequeno apartamento que dividem durante a pandemia. Ele é hábil nisso. Julia também é muito hábil e sutil ao descrever o relacionamento. Parece que ela também cede a ele. Se a personagem evita o conflito, Julia evita a crítica direta. Paradoxalmente, a contenção é um catalisador feminista fortíssimo para quem lê. (Posso dizer que estava lendo este capítulo durante a madrugada e que ele me acordou totalmente. Putz, achei o tal namorado um baita chato).
Há um capítulo que lembra o Ítaca, do Ulysses de Joyce, mas sem as perguntas. É um interessante catálogo ou catecismo de medos e desejos da personagem-escritora a respeito de engravidar. Ela está com quase 40 anos e, se não tiver filhos agora, a biologia logo decidirá por ela. Muitos dos medos são irreais e lá vamos nós para mais uma intervenção do resenhista gonzo. (Afinal, um obstetra que leu o livro inteiro numa tarde — prova de sua alta qualidade — voltou aqui na Bamboletras e deu risadas sobre algumas das suposições da personagem. Elas seriam totalmente fantasiosas. Conheço um pouco o problema: minha ex teve dois filhos de mim e, se eu tinha mil receios do que poderia acontecer, imagine uma portadora imaginativa).
Para aumentar a dúvida, nos capítulos seguintes Julia passa a tratar seu parceiro não mais como “namorado” e sim como “companheiro”. Ora, parece que o cara é outro e este é bem legal, mais digno de ser pai, creio eu. (Sim, quem lhes escreve é um homem cuja barriga só cresce por ser glutão, mas achei o sujeito digno de uma paternidade, fazer o quê?).
Importante ressaltar que há muito humor no texto de Julia. Não vou contar o final, vou deixar para vocês saberem como Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu e suas runas entram na história, mas afirmo que Julia Dantas leva brilhantemente sua história até a última página com um texto inteligente, interessante, leve… E dubitativo.
Recomendo!