O Infinito em um Junco, de Irene Vallejo

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Um excelente livro. Curiosamente, uma amiga comprou-o na Bamboletras e fez questão que eu o lesse. Sei lá como, ela sabia que me fazia falta. Em O Infinito em um Junco, da filósofa, filóloga e escritora espanhola Irene Vallejo, a evolução da sociedade e do livro estão profundamente entrelaçadas, são duas linhas quase paralelas que se juntam, às vezes se afastam, porém sempre se influenciam mutuamente. A obra traça uma história cultural do livro, desde os primórdios da escrita até a invenção da imprensa, mas dando frequentes saltos até a era digital e a fatos de nossa cultura contemporânea para certeiras analogias com as transformações sociais, políticas e tecnológicas. E, é fato, o livro é um objeto revolucionário.

Não costumo fazer resenhas de ensaios, então não me permitirei grandes liberdades. Vou tratar de organizar as ideias de forma cronológica e talvez burra: Vallejo parte da invenção da escrita (na Mesopotâmia e no Egito), de como ela surgiu de necessidades práticas (contabilidade, registros), mas logo se tornou veículo de literatura e poder. Os papiros egípcios e a biblioteca de Alexandria simbolizam o livro como instrumento importante para os poderosos dos impérios, mas também de resistência (como os textos salvos por copistas anônimos). Na época, poucos sabiam ler e a leitura era uma prática em voz alta, para grupos. Pasmem, a prática da leitura íntima é relativamente moderna.

Depois, passamos à Grécia e à primeira revolução. A democratização parcial da escrita na Grécia antiga (com o alfabeto fonético) permitiu que ideias como as de Homero ou Platão circulassem além das elites. Esta parte grega é deliciosa, cheia de fofocas do pessoal do Olimpo. Vallejo descreve como a Grécia migrou da tradição oral (Homero) para a escrita, criando os primeiros “best-sellers” da História (como os rolos de A Ilíada). A biblioteca de Alexandria, no Egito helenístico, tornou-se um santuário do saber grego, com obras copiadas e catalogadas em papiro. (Imaginem o quanto se perdeu dentre obras que não foram copiadas e recopiadas). O alfabeto grego (fonético) era mais acessível que os hieróglifos, permitindo que cidadãos comuns lessem — apesar de os livros ainda serem caros e raros. Vallejo relembra a famosa crítica de Sócrates à escrita: ele a via como uma “memória morta”, incapaz de dialogar e defendia a oratória. Eu estaria ralado, pois escrevo direitinho, converso melhor ainda, mas meus discursos são os de um idiota.

Já Roma era envergonhada de sua incultura e da alta cultura de seus colonizados, os gregos. Eles compravam gregos escravizados para ensinarem seus filhos, numa estranha inversão. O escravo era culto e tinha que ensinar seus filhos para que não crescessem ignorantes como os pais. Os romanos popularizaram o códice (páginas encadernadas, antepassado do livro moderno), mais prático que os rolos. Em Roma, surgiram as primeiras livrarias e editoras (escravos copistas trabalhavam em série). Alguns imperadores como Augusto usaram livros para propaganda, enquanto outros (como Calígula) os queimavam por medo de críticas. Ironia: apesar da repressão, obras com claros propósitos políticos, como Eneida, de Virgílio, sobreviveram como ferramentas de identidade nacional. E foi Roma quem copiou e preservou textos gregos como os de Aristóteles, mas também apagou outros — reciclando papiros para escrever documentos burocráticos.

A queda do Império Romano e a ascensão do cristianismo transformaram o livro em objetos praticamente sagrados, tendo os mosteiros como guardiões de textos clássicos. Enquanto a Europa feudal era fragmentada, os monges copistas mantiveram viva a herança escrita, demonstrando como o livro desafiou o colapso social. O islã teve um importante papel: enquanto o ocidente medieval perdia acesso a textos, bibliotecas como a de Córdoba — a da Espanha, claro — preservaram obras gregas e romanas.

Vallejo descreve como a sociedade pós-feudal — com a burguesia urbana e as universidades, com Gutenberg e a imprensa a partir do século XV — demandava livros acessíveis. A imprensa acelerou a Reforma Protestante, a ciência e as revoluções políticas. A industrialização barateou o papel, e o livro virou símbolo de ascensão social. Lembrem dos romances de Dickens, dos folhetins.

O Infinito em um Junco vai até a era digital. Como em Alexandria e em Borges, há hoje uma biblioteca infinita (Google), mas com riscos de monopolização e desinformação. Ela também enfatiza que, sem a obsessão greco-romana pelo livro, o surgimento da literatura ocidental atrasaria sua chegada. A dualidade entre preservação e destruição, elitismo e popularização, ecoa até hoje em debates sobre acesso ao conhecimento. Obviamente, Vallejo vive cercada por livros e faz a apologia do livro físico como objeto de afeto, resistindo bravamente à lógica do descartável. Ela comprova facilmente que a história do livro é um espelho da humanidade — com ambições, medos e reviravoltas. Cada avanço social — democracia, educação massiva — dependeu do livro e cada crise — autoritarismos, colonialismo — tentou controlá-lo.

Um baita e envolvente livro. Recomendo muitíssimo. Tem na Bamboletras.

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