Donal Og / Broken Vows (Votos Rompidos)

Donal Og / Broken Vows (Votos Rompidos)

Este é um belíssimo poema gaélico, anônimo, da Irlanda do século VIII, traduzido para o inglês pela irlandesa Lady Gregory (Isabella Augusta Gregory). Ele recebeu o título em Inglês de Broken Vows, mas também é conhecido pelo seu título original Donal Og (Jovem Donal).

Lady Augusta Gregory em 1911

Broken Vows

It is late last night the dog was speaking of you;
the snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are the lonely bird through the woods;
and that you may be without a mate until you find me.

You promised me, and you said a lie to me,
that you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you,
and I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that was hard for you,
a ship of gold under a silver mast;
twelve towns with a market in all of them,
and a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
that you would give me gloves of the skin of a fish;
that you would give me shoes of the skin of a bird;
and a suit of the dearest silk in Ireland.

(…)

My mother has said to me not to be talking with you today,
or tomorrow, or on the Sunday;
it was a bad time she took for telling me that;
it was shutting the door after the house was robbed.

My heart is as black as the blackness of the sloe,
or as the black coal that is on the smith’s forge;
or as the sole of a shoe left in white halls;
it was you put that darkness over my life.

You have taken the east from me, you have taken the west from me;
you have taken what is before me and what is behind me;
you have taken the moon, you have taken the sun from me;
and my fear is great that you have taken God from me!

Votos Rompidos

Era  tarde a noite passada, o cão falava de você.
O pássaro cantava no pântano, falava de você.
Você é o pássaro solitário das florestas;
Que você fique sem companhia até me encontrar

Você prometeu e me traiu.
Disse que estaria junto a mim quando os carneiros fossem arrebanhados.
Eu assobiei e gritei cem vezes.
E não achei nada lá, a não ser uma ovelha balindo.

Você prometeu uma coisa difícil.
Um navio de ouro sob um mastro prateado.
Doze cidades e um mercado alegre em todas elas.
E uma branca e bela praça à beira-mar.

Você prometeu algo impossível.
Que me daria luvas de pele de peixe.
E sapatos de asas de ave.
E roupa da melhor seda da Irlanda.

(…)

Minha mãe disse para eu não falar com você.
Nem hoje, nem amanhã. Nem domingo.
Foi um mau momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta após ter a casa arrombada.

Você tirou o leste de mim, tirou o oeste de mim.
Tirou o que existe à minha frente, tirou o que há atrás.
Tirou a lua, tirou o sol de mim,
E meu medo é grande, você tirou Deus de mim.

O poema foi utilizado no filme Os Vivos e os Mortos, de John Huston. A cena:

Funeral Blues, de W. H. Auden

Funeral Blues, de W. H. Auden

O poema Funeral Blues foi escrito por Auden em 1936, como a Canção 9 do livro Twelve songs, e costuma ser citado como expressão exemplar de um forte sentimento de perda e de luto. O poema ganhou popularidade internacional devido ao filme Quatro casamentos e um  funeral, numa cena em que o personagem Matthew homenageia seu companheiro morto. Funeral Blues foi musicado por Benjamin Britten. Segue o original e algumas traduções. Ao final, colocamos a famosa cena de Quatro casamentos.

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone, 
Prevent the dog from barking with a juicy bone, 
Silence the pianos and with muffled drum 
Bring out the coffin, let the mourners come. 
 
Let aeroplanes circle moaning overhead 
Scribbling on the sky the message ‘He is Dead’. 
Put crepe bows round the white necks of the public doves, 
Let the traffic policemen wear black cotton gloves. 
 
He was my North, my South, my East and West, 
My working week and my Sunday rest, 
My noon, my midnight, my talk, my song; 
I thought that love would last forever: I was wrong. 
 
The stars are not wanted now; put out every one, 
Pack up the moon and dismantle the sun, 
Pour away the ocean and sweep up the woods; 
For nothing now can ever come to any good. 
 
April 1936

W. H. Auden (1907-1973)

.oOo.
 
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.
 
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.
 
Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.
 
É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.
 
(tradução de Nelson Ascher)

.oOo.
 
Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.
 
Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas da cidade,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.
 
Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.
 
Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram o bosque;
Pois agora tudo é inútil.
 
(tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

.oOo.
 
Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.
 
Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.
 
Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.
 
Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.
 
(tradução de Vasco Graça Moura)

.oOo.
 
Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e abafem o tambor
Tragam o caixão, deixem passar a dor. 
 
Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe nos pescoços das pombas da região,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão. 
 
Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: “não tinha razão”. 
 
Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Pois agora nada mais de bom nos resta.
 
(tradução anônima)

.oOo.

Parem os relógios, cale o telefone 
Evite o latido do cão com um osso 
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie 
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo. 
 
Que os aviões voem em círculos, gemendo 
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu. 
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua 
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu. 
 
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste 
Meus dias úteis, meus finais-de-semana, 
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto. 
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado 
 
As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma 
Guarde a lua, desmonte o sol 
Despeje o mar e livre-se da floresta 
pois nada mais poderá ser bom como antes era. 
 
(tradução anônima)

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

(Em 2006, em “homenagem” à morte de Pinochet, o grandíssimo Mario Benedetti (1920-2009) escreveu o poema que segue em tradução livre encontrada na rede).

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

Vamos festejá-lo
venham todos
os inocentes
os lesados
os que gritam à noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
venham todos
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o suíno
acabou-se para sempre
hip-hurra´
que venham todos
vamos festejá-lo
e não-dizer
a morte
sempre apaga tudo
a tudo purifica
qualquer dia
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
hip-hurra´
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não-chorar por vício
que chorem seus iguais
e que engulam suas lágrimas
acabou-se o monstro prócer
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
a não-ficarmos tíbios
a não-acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
e não-ficarmos frouxos
e não-esquecer que este
é um morto de merda

.oOo.

A la muerte de un canalla

Vamos a festejarlo!
vengan todos!
los inocentes, los damnificados
los que gritan de noche
los que sueñan de día
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo!
¡vengan todos!
el crápula se ha muerto!
se acabó el alma negra!
el ladrón
el cochino
se acabó para siempre
hurra!
que vengan todos
¡vamos a festejarlo!
a no decir: la muerte siempre lo borra todo
todo lo purifica cualquier día
la muerte no borra nada!
quedan siempre las cicatrices
hurra!
murió el cretino
vamos a festejarlo!
a no llorar de vicio!
que lloren sus iguales y se traguen sus lágrimas!
se acabó el monstruo prócer!
se acabó para siempre!
vamos a festejarlo!
a no ponernos tibios!
a no creer que éste es un muerto cualquiera
vamos a festerjarlo!
a no volvernos flojos!
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda

Por Mario Benedetti
Montevideo, 11 de diciembre 2006.

Mario Benedetti (1920-2009)

Hino do Carnívoro, soneto de Vinícius de Moraes

Hino do Carnívoro, soneto de Vinícius de Moraes

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

Vinícius foi buscar a carne de barco

se isto não é amor

Amar o dia, detestar o dia,
chamar a noite e desprezá-la logo,
temer o fogo e acercar-se ao fogo,
ter a um tempo pena e alegria.
Estar juntos valor e covardia,
o desprezo cruel e o brando rogo,
ter valente entendimento cego,
atada a razão, livre ousadia.
Buscar lugar em que aliviar os males
e não querer do mal fazer mudança,
desejar sem saber que se deseja.
Ter o gosto e o desgosto iguais
e todo o bem livrado na esperança,
se isto não é amor, não sei o que seja.

María de Zayas y Sotomayor (Madrid, 12 de setembro de 1590 – depois de 1647)

27 anos sem Mario Quintana

27 anos sem Mario Quintana

Não sou tão velho assim – ou sou? – , mas conheci Mario Quintana. Ou melhor, falei com ele casualmente uma vez. Conversamos numa Feira do Livro a respeito de algo tão prosaico que não lembro bem do assunto. Acho que ele estava procurando um livro numa banca e me perguntou se eu tinha visto. Sim, foi isso. E eu saí procurando sem encontrar. Fim.

Ele foi uma figura conhecida em Porto Alegre. Era o discreto dono da pequena celebridade possível a um autor gaúcho. Sua única extravagância era a de habitar um hotel do centro onde atualmente é a Casa de Cultura Mario Quintana. No seu quarto havia pouco de seu, o que era de Quintana estava espalhado em livros e jornais.

Quintana fazia pouco caso dos críticos que, aliás, costumavam tratá-lo muito bem. Dizia que escrevia suas poesias (e suas crônicas eram também poesia) por sentir necessidade de escrever. Nunca saiu do Rio Grande do Sul, mas era um esplêndido tradutor. Suas traduções de Balzac, Virginia Woolf, Voltaire e Proust são exemplos de perfeição e senso de estilo.

Quintana nasceu em Alegrete (RS) em 30 de junho de 1906 e faleceu em Porto Alegre no dia 5 de maio de 1994, há 20 anos. Abaixo, alguns exemplos de sua poesia.

Dos Milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Da Discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também…

O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

(sem título)

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

Canção do Dia de Sempre

Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

.oOo.

Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes desses mortos
Me falarão para sempre.

Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

~ Casa dos Mundos Irrepetíveis ~

Se digo mãe, digo Itália; se digo avó, digo ilha,
se digo bisavô, digo Galiza; se digo trisavó, digo França
um tetravô na Grécia outro em Damasco;
um perdido na Índia cigana outra nas ruas da Palestina,
se chegar aos décimos avós sou de todos os lugares,
venho de todas as origens, concebido em todas as religiões;
venho de um pirata e seguramente de uma puta,
de um marajá e de uma cortesã, uma geisha
e um traficante de sedas; uma amazona das estepes
e um boiardo; um vizir e uma poeta,
família de assaltantes nos idos dos avós doze,
marinheiros das austrálias, perdidos nos infernos
de ser gente do mundo e no mundo parental
chego depois de várias incidências
a esta Lisboa remodelada; na Mouraria um primo
outro no Quartier, uma prima no Magrebe
outra em Moscou e mais uma no Congo
e milhares no Brasil, o meu DNA é o mundo,
as minhas células do universo
sou um homem feito de mulheres em verso.
Nas minhas veias há um refugiado profundo
Afinal onde está o meu berço?

Luís Filipe Sarmento

E a morte perderá o seu domínio, de Dylan Thomas

E a morte perderá o seu domínio, de Dylan Thomas

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.

Dylan Thomas, trad. Fernando Guimarães

Dylan Thomas
Dylan Thomas

Cartas recém reveladas de Sylvia Plath citam abuso doméstico cometido por Ted Hughes

Cartas recém reveladas de Sylvia Plath citam abuso doméstico cometido por Ted Hughes

A correspondência inédita entre a poetisa e sua antiga terapeuta registra acusação de espancamento por parte do marido e o desejo explícito de que ela morresse.

Traduzido livremente do Guardian

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Numa carta dirigida a sua antiga terapeuta, Sylvia Plath (1932-1963) escreveu que seu marido, Ted Hughes (1930-1998), vencera. Isso dois dias antes de ela abortar o segundo filho do casal. Também escreveu que Hughes queria vê-la morta. É o que diz nas cartas de Plath. As duas acusações estão entre as revelações mais explosivas de uma correspondência inédita escrita durante um dos casamentos mais famosos e destrutivos da literatura.

Escritas entre 18 de fevereiro de 1960 e 4 de fevereiro de 1963, uma semana antes de sua morte, as cartas cobrem um período da vida de Plath que permaneceu até hoje desconhecido tanto para leitores como para estudiosos. A escritora norte-americana, que viveu estes anos na Inglaterra, era uma prolífica escritora de cartas e mantinha diários detalhados desde a idade de 11 anos. Porém, após sua morte, Hughes declarou que os diários de Plath daquela época foram perdidos, incluindo o último volume que, estranhamente, ele disse ter destruído para proteger seus filhos, Frieda e Nicholas.

Enviada sempre para a Dra. Ruth Barnhouse — o modelo para a Dra. Nolan na novela autobiográfica de Plath, A Redoma de Vidro, e que tratou o escritora nos EUA após sua primeira tentativa de suicídio em agosto de 1953 — a correspondência é entendida como os últimos textos sem censura escritos por Plath em seus meses finais, junto de algumas de suas poesias mais famosas, incluindo as da coletânea Ariel.

Assia Wevill
Assia Wevill

As nove cartas escritas após Plath descobrir a infidelidade de seu marido com sua amiga Assia Wevill em julho de 1962, formam o núcleo da coleção. Também estão incluídos registros médicos a partir de 1954.

O tratamento de Plath com Barnhouse terminou quando a poeta mudou-se para Inglaterra mas as duas seguiram uma amizade muito íntima que tem sido foco de estudo de scholars.  A correspondência revela uma intimidade tranquila e acolhedora, bem como um grande senso de humor.

Além de expor sua dor pela descoberta do adultério de Hughes, as passagens mais chocantes revelam a acusação de abuso físico (espancamento) sofrido por Plath pouco antes de abortar seu segundo filho em 1961. E na carta datada de 22 de setembro de 1962 — no mesmo mês em que os poetas se separaram — ela diz ter sido espancada por Ted. Vários dos poemas de Plath abordam o aborto, como Parliament Hill Fields.

A extensão do distanciamento do casal durante este período é revelada em outra carta da coleção, datada de 21 de outubro de 1962, em que Plath escreve para Barnhouse contando que Hughes lhe disse diretamente que a desejava ver morta. Embora Plath tivesse uma história de depressão e auto-agressão, e tivesse tentado se matar em 1953, ela apenas revelou tais episódios para Hughes após o casamento.

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As cartas foram escritas numa época em que Plath estava temendo por seu estado mental. Era o período da desintegração de um dos mais famosos casais literários do século XX. Hughes, nascido em Yorkshire, conhecera Plath enquanto ambos estudavam na Universidade de Cambridge em 1956. Hughes já era um poeta estabelecido e ela tinha ido a uma festa no dia 25 de fevereiro daquele ano com o desejo expresso de conhecê-lo. Quatro meses depois, eles se casaram e formaram rapidamente uma formidável e mutuamente benéfica parceria criativa que resultou na obra de Hughes, Hawk in the Rain, e na novela semi-autobiográfica de Plath, A Redoma de Vidro.

O fascínio público com o relacionamento era grande, ainda mais que a produção criativa de ambos se baseava em experiências de vida. Em outubro de 1962, Plath escreveu a maioria dos poemas que seriam incluídos em Ariel — publicado postumamente em 1965 — que inclui muitas referências e iconografias interpretadas como sendo sobre Hughes. Estes incluem as linhas em Daddy: “I made a model of you, / A man in black with a Meinkampf look / And a love of the rack and the screw” (“Eu fiz um modelo de você, / Um homem de preto com um olhar de Meinkampf / E um amor de cremalheira com parafuso”). Plath escreveu para sua mãe durante este período: “Eu estou escrevendo os melhores poemas da minha vida. Eles farão o meu nome”.

Décadas mais tarde, em Birthday Letters, de 1998, Hughes falou sobre seu tempo com Plath, sobre a tempestuosa ligação e as consequências da morte da mulher. O livro foi sua resposta final aos críticos feministas que, nos anos 70, acusaram Hughes a respeito do tratamento que dava a Plath. Durante esse tempo, ele foi várias vezes interrompido com gritos de “assassino” em suas leituras. A feminista norte-americana Robin Morgan publicou o poema The Arraignment, que começa com a frase “Eu acuso Ted Hughes”. Plath foi sepultada e na lápide lia-se Sylvia Plath Hughes, por insistência dele. Ela foi alvo de “vândalos” que removeram o sobrenome do marido, que sempre colocava o Hughes de volta.

Grave1Em sua coleção de 1998 Howls and Whispers, Ted citou uma das respostas de Barnhouse a Plath, em setembro de 1962, no poema de título: “And from your analyst: ‘Keep him out of your bed. Above all, keep him out of your bed’” (E se seu analista: Deixe-o fora da cama, deixe-o fora da cama). Em 2010, a aparente palavra final de Hughes sobre o relacionamento turbulento foi publicada sob a forma de seu poema Last Letter, que descreve o que aconteceu nos três dias antes de sua esposa morrer.

O nome de Hughes foi diversas vezes recolocado por ele na lápide de Plath
O nome de Hughes foi diversas vezes recolocado por ele na lápide de Plath

Bem, os estudiosos de Plath elogiaram a alta qualidade e as informações contidas nas cartas recém encontradas. Elas estão sendo publicadas em livro. O primeiro volume já saiu. O co-editor Peter K Steinberg disse: “É um incrível material que tinha ficado totalmente fora do radar”, Citando as poesias “sensacionais” que Plath escreveu em outubro de 1962: “É possível que Plath fizesse uma catarse ao escrever para a Dra. Barnhouse e que, ao fazê-lo, sentia-se livre para escrever aqueles poemas explosivos e duradouros”.

Andrew Wilson, autor de Mad Girl’s Love Song, sobre a vida de Plath antes de conhecer Hughes, disse que a correspondência com Barnhouse fornecem uma inestimável visão das origens de sua batalha contra a depressão. Elas formariam “o elo perdido” entre sua biografia e história literária. “Essas cartas parecem capazes de preencher certas lacunas de nosso conhecimento e lançam novas luzes sobre o casamento turbulento e controverso entre Plath e Hughes”, disse ele.

Por incrível que pareça, o arquivo chamou a atenção dos estudiosos da Plath após um vendedor de livros raros anunciá-lo on-line para venda.

Com todo o barulho provocado pela descoberta, Carol Hughes, a viúva do poeta, tratou de rebater: “As alegações feitas por Sylvia Plath em cartas inéditas para sua psiquiatra, sugerindo ter sido espancada por Ted Hughes, dias antes de ter abortado o segundo filho, são tão absurdas quanto chocantes para quem conhecia bem Ted”.

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Os gregos não escreviam necrológios

Os gregos não escreviam necrológios

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objetos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

– Herberto Hélder

Herberto Hélder (1930-2015)
Herberto Hélder (1930-2015)

Cinzas, poema de Sergei Kruglov

Cinzas, poema de Sergei Kruglov

Às vezes, eu e Elena traduzimos alguma coisa do russo para o português. Dá trabalho, porque ela me explica palavra por palavra, dá o sentido e discorda de minhas soluções… Menos mal que logo entramos em acordo. Ontem à noite (28), ela me pediu ajuda para traduzir um poema que ela ama, de autoria do padre-poeta ortodoxo Sergei Kruglov. Eu sou ateu, ela é ortodoxa. Sem problemas, ainda mais que nenhum dos lados jamais fez proselitismo e o poema é estrondosamente bom. Desta vez foi tudo muito rápido. Espero que Kruglov não saiba português.

Cinzas

— Não vi o seu Cristo!

— Eu vi meu Cristo.
Ele não foi longe,
Ele esteve, como todos nós,
Na linha de produção da morte.
Ele era apenas um trabalhador.
Ele está entre nós.
Apenas Ele consegue
Cometer sabotagem:
Colocar em cada pistola uma falha,
Em cada bomba, a possibilidade de não explodir,
Em cada cela (lembre-se do
Ano 23, o dentista Turner?
Sua angústia em termos de
Limpeza do estilo? – lembre-se:
“Ação Tiergartenstrasse 4”?) – monta uma porta,
Pequena, estridente, que vai
Para o céu.

É isso que Hannah Schwanke,
Membro do Esquadrão da Morte,
Testemunhou perante todo Nuremberg:
“Eu vim, apenas a manhã amanheceu,
Trazer a mirra. Mas os portões do forno
Estavam abertos. Não havia nem cinzas. Alguém
Removeu a pedra,
E os restos de quinhentos e cinquenta e cinco condenados
Não foram encontrados.”

Sergei Kruglov
28/08/2015

Campos de concentração

.oOo.

Para quem curte um russo, aqui está o original:

ПЕПЕЛ

-Я не видел твоего Христа!

-А я видел моего Христа.
Он недалеко ушёл,
Он трудится, как и все мы,
На конвейере смерти.
Он был просто рабочий.
Он среди нас.
Только Он умудряется
На этом конвейере
Совершить диверсию:
В каждый пистолет заложить осечку,
В каждую бомбу вложить возможность невзрыванья,
В каждую камеру (помнишь
23 год, стоматолога Тёрнера?
Его мучения в плане
Чистоты стиля? – помнишь:
«Акция Тиргартенштрассе 4» ?) – вмонтировать дверцу,
Маленькую, скрипучую, ведущую
В небо.

Вот потому Ханна Шванке,
Член айнзатцкоманды,
Свидетельствовала пред всем Нюрнбергом:
«Я пришла , только забрезжило утро,
Принести туда миро. Но врата печи
Были открыты. Не нашлось даже пепла. Кто-то
Откатил камень,
И останков пятисот пятидесяти пяти приговоренных
Найдено не было».

As três palavras mais estranhas

As três palavras mais estranhas

De Wislawa Szymborska*

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

Wislawa Szymborska

Wislawa Szymborska, Poemas. Trad. Regina Przybycien.
Cia. das Letras, 2011, p.107.

via Adalberto de Queiroz

Mario Benedetti, o Grande Despretensioso

Mario Benedetti, o Grande Despretensioso

Cuando éramos Niños

Cuando éramos niños
los viejos tenían como treinta
un charco era un océano
la muerte lisa y llana
no existía.

luego cuando muchachos
los viejos eran gente de cuarenta
un estanque era un océano
la muerte solamente
una palabra

ya cuando nos casamos
los ancianos estaban en los cincuenta
un lago era un océano
la muerte era la muerte
de los otros.

ahora veteranos
ya le dimos alcance a la verdad
el océano es por fin el océano
pero la muerte empieza a ser
la nuestra.

Mario Benedetti

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21 poemas de Drummond lidos por 21 artistas brasileiros

21 poemas de Drummond lidos por 21 artistas brasileiros

Quando da passagem dos 109 anos de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, em 2011, o IMS – Instituto Moreira Salles, produziu uma série de vídeos de artistas lendo poemas de Drummond. Eu descobri isso só hoje, quando vi alguns dos vídeos. Tem muitos além deste 21 que apresento abaixo.

1 – Os inocentes do Leblon, por Chico Buarque

2 – Necrológio dos desiludidos do amor, por Fernanda Torres

3 – Elegia 1938, por Caetano Veloso

4 – O amor bate na aorta, por Drica Moraes

5 – O Elefante, por Adriana Calcanhotto

6 – Amar, por Marília Pêra

7 – Destruição, por Marina Person

8 Elegia a um tucano morto, por Pedro Drummond

9 – Cantiga do Viúvo, por Elvira Bezerra

10 – Especulação em torno da palavra homem, por Sandra Corveloni

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Quando éramos crianças (Mario Benedetti)

Quando éramos crianças
os velhos tinham como trinta
uma poça era um oceano
a morte simplesmente
não existia.

em seguida, quando meninos
os velhos eram gente de quarenta
um tanque era um oceano
a morte apenas
uma palavra

Já quando nos casamos
os anciãos estavam com
cinquenta
um lago era um oceano
a morte era a morte
dos outros.

agora veteranos
demos espaço para a verdade
o oceano é por fim o oceano
mas a morte começa a ser
a nossa.

Trad. duvidosa deste amigo de ustedes.

Foto do tradutor quando criança
Foto do tradutor quando criança

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Alberto Caeiro
Escrito em 20-6-1929

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.

fernando_pessoa_nao_tenho_pressa