Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas

Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas
“Não sou nada (…) À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

Fernando Pessoa são muitos poetas. Se o Pessoa original nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888 e faleceu na mesma cidade, aos 47 anos, em 30 de novembro de 1935, seus heterônimos têm diferentes datas de nascimento e de morte, à exceção de Ricardo Reis, que não tem data de morte. A invenção de tais heterônimos atravessa toda a obra de Pessoa. Heterônimos são autores fictícios que possuem personalidade própria, ao contrário dos pseudônimos. Sendo assim, o autor assume outras personalidades. Cada uma delas seria uma pessoa real, com manifestações artísticas próprias e diversas do autor original, que é chamado de “ortônimo”.

No caso de Pessoa, com o amadurecimento de cada uma das outras personalidades, o autor original tornou-se apenas mais um heterônimo. Os três heterônimos mais conhecidos de Pessoa (e também os de maior obra poética) são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterônimo importante é o de Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Bernardo é considerado uma espécie de semi-heterônimo por ter muitas semelhanças com Pessoa e não possuir uma personalidade distinta, contrariamente aos três primeiros, que possuem até mesmo data de nascimento e morte — à exceção do citado Ricardo Reis.

“Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”

Álvaro de Campos era um engenheiro de educação em língua inglesa e origem portuguesa. Aliás, como o próprio Pessoa. Tinha a sensação de ser estrangeiro onde estivesse. Foi um decadentista influenciado pelo simbolismo que aderiu ao futurismo. Álvaro é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto, é o poeta da irreverência a tudo e a todos. Alguns de seus poemas:

Tacabaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

(…)

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

(…)

Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me
[enfileirem conquistas]
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na

(…)

“Tinha fugido do céu / Era nosso demais para fingir”

Outro era Alberto Caiero. Nascido em Lisboa, Caeiro teria vivido quase toda a vida como camponês, sem maiores estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos. Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma “não-filosofia”. Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.

Poema XX de ‘O guardador de rebanhos’

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

(…)

Poema do Menino Jesus

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 

“Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes”

Pessoa também era Ricardo Reis, um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estoicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, que é finamente depurada e disciplinada.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Anjos ou Deuses 

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem E nós não desejamos.

“O coração, se pudesse pensar, pararia”

Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa num pequeno restaurante frequentado por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando seu livro, que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX. Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterônimo porque, como o próprio Pessoa explica: “Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.”

Do Livro do Desassossego:

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”

“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”

Também era Fernando Pessoa:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

(…)

Mar Português

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

(…)

.oOo.

Fernando Pessoa publicou quatro obras em vida, três em língua inglesa. Mensagem foi o único publicado em língua portuguesa. Ele ocupou diversas profissões. Foi editor, astrólogo, publicitário, jornalista, empresário e crítico literário. Ficou órfão de pai aos 5 anos de idade, o que obrigou a mãe a vender parte de seus bens e mudar-se para uma residência mais modesta. Ela se casou pela segunda vez em 1895, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), que havia conhecido um ano antes. Foi na África que o poeta passou a maior parte da juventude e recebeu educação inglesa, primeiro num colégio de freiras e depois no Durban High School.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Em 1901, escreveu seus primeiros poemas em inglês. No ano seguinte, voltou com a família para Lisboa. Porém, em 1903, Fernando retornou sozinho para a África do Sul, mais exatamente para a Durban High School, onde fez um curso de contabilidade e comércio, após ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades. Se a sua educação havia sido essencialmente humanista, o que o levou ao comércio? Provavelmente quis munir-se de conhecimentos práticos para ganhar a vida. Em 1905, de volta à Lisboa, matriculou-se na Faculdade de Letras, onde cursou Filosofia. Dois anos depois, abandonou o curso e, em 1912, estreou como crítico literário.

No campo profissional, do comércio, Fernando Pessoa nunca tentou ir muito longe. Foi um conformado empregado de escritórios, um guarda-livros como o seu heterônimo Bernardo Soares. Durante um período de sua vida, produziu textos sem grande brilho para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês de cartas comerciais. Desempenhava esta atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se da dependência de Portugal em relação a Inglaterra.

Em 1925, passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda. Mas a experiência não foi bem sucedida. Em 1927, o poeta criou um slogan para a Coca-Cola, que estava sendo lançada em Portugal. O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Foi rejeitado.

“Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”

Considerado hoje um poeta genial, colocado na lista de Harold Bloom como um dos 26 melhores e mais influentes escritores de todos os tempos, não mereceu a atenção de seus contemporâneos. Teve dificuldades para publicar seus versos, o que o levou a encher um baú de escritos, tesouro inestimável da literatura mundial.

Este baú, — de mais de 27 mil folhas — foi comprado pelo Estado português em 1979 e depositado na Biblioteca Nacional. Eles vêm sendo estudados e divulgados por uma equipe coordenada por Teresa Rita Lopes, com o apoio da editora Assírio & Alvim. São ensaios, mais de mil poemas dos três grandes heterônimos, um semi-heterônimo desdobrado em dois (Vicente Guedes e Bernardo Soares), mais de setenta pequenos heterônimos sem obra consistente, cartas, contos, teatro, textos políticos, notas, etc. É a obra do fingidor, do polêmico, do cria­dor de vanguardas, do ocultista, do poeta dra­mático, do poeta das quadras populares e do questio­nador em busca de ser, que foi tanto a sua criação que se perdeu de si mesmo.

“As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas”

A importância de obra de Pessoa é inequívoca e está comprovada pelas inúmeras reedições, citações, trabalhos acadêmicos, biografias e homenagens. A maior deles talvez tenha sido prestada por José Saramago, autor de O ano da morte de Ricardo Reis, baseado livremente na “vida” deste heterônimo. O poeta mexicano Octavio Paz disse que nada na vida de Pessoa é surpreendente, nada, exceto seus poemas. Na comemoração do centenário do nascimento de Pessoa, em 1988, o seu corpo foi trasladado para o Mosteiro dos Jerônimos, dando-lhe o reconhecimento que não teve em vida. Em Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições dão continuidade ao lirismo português, com marcas de saudosismo. Outras iniciam o processo de ruptura do modernismo, o que se concretiza nos heterônimos, mesmo que a música da poesia de Fernando Pessoa esteja tanto no tradicionalista como no modernista.

Logo após a morte do poeta, seu irmão João fez uma conferência e afirmou que ninguém na família adivinhava que Fernando Pessoa, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”, “resultaria em génio…”. A verdade é que o mundo também levou muito tempo para descobrir.

Cervantes, Nietzsche, Suassuna, García Márquez, Clarice, Pessoa e outros, ao comerem miojo

Cervantes, Nietzsche, Suassuna, García Márquez, Clarice, Pessoa e outros, ao comerem miojo

Autor desconhecido. Foi muito alterado e acrescentado por mim e amigos — o texto mais que dobrou.

– Você é Nietzsche?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”
– Deveras obscura a ideia de que uma ração precária e arbitrariamente nomeada alimento, possa, de fato, nutrir ao ponto de esquecermos de que toda a vontade de potência manifesta na determinante ideia diante da tragédia do eu, cuja única escolha possível é o aniquilamento total de toda divindade contida na ignorância e na natureza da matéria dormente e vagante a que chamam: homem. Era sim um prato de massa delicadamente disforme que sentia adentrar minhas entranhas, embebida em um suco pobre e tépido, salino! humano demasiado humano e arbitrário afirmar que de fato é um miojo.

.oOo.

– Você é Suassuna?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”
– Já cansado dessa agonia de passa fome, come gororoba, passa fome, come gororoba, achei por bem de engolir essa papa e torcer pra não chegar tão cedo a hora de descomer!

.oOo.

– Você é Cervantes?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Calhou de aquele dia ser sexta-feira, e não havia em toda a estalagem nada além de umas rações de uma massa que em Castela chamam miojo, e na Andaluzia macarrão instantâneo, e noutras partes lámen, e noutras ainda noodles. Perguntaram-lhe se porventura comeria ele noodles, pois não havia outra massa que dar-lhe de comer.

.oOo.

– Você é Gabriel García Márquez?
– Sou sim.
-Então fala: “comi um miojo”.
– Minhas únicas viagens foram quatro aos Jogos Florais de Cartagena de índias, antes dos meus trinta anos, e uma noite ruim na lancha a motor, convidado por Sacramento Montiel para a inauguração de um de seus bordéis em Santa Marta. Quanto à minha vida doméstica, sou de comer pouco e de gostos fáceis. Quando Damiana ficou velha não se tornou a cozinhar em casa, e minha única refeição regular desde então foi um macarrão de rápido cozimento, embebido em um caldo salgado que me confundia o paladar, depois do fechamento do jornal.

.oOo.

– Você é Tolkien?
– Sim
– Então fala: “comi um miojo”
– Adentrei a cozinha naquela tarde ensolarada. Os raios atravessavam as janelas fazendo traços paralelos que tocavam a parede cimentada e pintada de azul. Um azul profundo como de um céu a tarde a beira do crepúsculo em Valfenda. O teto contrastava com o azul, a madeira me lembrava as florestas de carvalho. O assoalho era de madeira de lei, rangia enquanto eu caminhava para pegar minha tigela favorita. Quando a água começou a borbulhar na panela, introduzi o macarrão em meio a fervura. O fogo crepitava sob a panela de ferro, era uma leve brisa que invadia pelo corredor longo. Coloquei os temperos e senti subir o aroma. Despejei na tigela a sopa e sorvi ainda quente. Era como o fogo de Aldruin, com o sabor dos banquetes em Minas Tirith.

.oOo.

– Você é Augusto dos Anjos?
– Sou sim.
– Então fala “Comi um miojo”.
– Senti como que preso a um ferrolho
Incapaz de saciar minha própria fome
Prostrado diante da massa disforme
Coberta de um ígneo e mal cheiroso molho

.oOo.

– Você é Bukowski?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– Tomei um último gole de vinho do porto. Olhei pro pacote em cima da mesa. Abri. Joguei a massa seca e fedorenta na água fervente. Não era nada saboroso mas ia garantir uma boa cagada. É necessário ter algo pra se cagar além de cerveja e vinho barato.

.oOo.

– Você é Drummond?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– No meio da fome tinha um miojo,
Tinha um miojo no meio da fome
Fome vasta que dá nojo
Se eu comesse um miojo
Seria uma rima, não uma solução.
Fome vasta, mais vasto é meu coração.

.oOo.

– Você é Clarice Lispector?
– Sim.
– Então fala: “Comi um miojo”.
– Se ela ao menos soubesse onde está o macarrão desidratado nessa casa desidratada, pouparia o mundo do constrangimento de se deixar flagrar agora no centro ordinário da cozinha que sequer treme, e não responde ao sussurro “Onde está o miojo?”. Pare de buscar. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério”. “Se tivesse a tolice de se perguntar ”quem sou eu?” ao invés de “onde pus o miojo?”, cairia estatelada e em cheio no chão, com o pacote do lámen sabor blattodea na mão . Sabor barata. Comeria já frio o miojo que não comi.

.oOo.

– Você é Fernando Pessoa?
– Sim e não. Sou outros.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Falo a três vozes. A quatro. A mil.
(Ricardo Reis) Enquanto a biblioteca de Alexandria arde em chamas, como esse miojo e é tudo. Sábio é o que assiste ao espetáculo do mundo.

(Alberto Caeiro) A flor é a flor, o tempo é só flor. Pensar é mastigar. O mais é flor, chuva, miojo.

(Álvaro de Campos) Eia, engrenagens que moem, trituram a moderna nutrição dos argonautas do amanhã! Eia, uhaaa, r-r-r-r-r-r de meus dentes apolíneos contra o trigo do gêmeo cop-noodles que fermenta o filho odisseico e já regurgito o novo homem-lámen das auroras sanguinárias.

(Fernando Pessoa) O miojo de vossa mesa não é mais belo e triste que o miojo de minha aldeia.

.oOo.

– Você é Homero?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Canto a brava sofreguidão de Aquiles, que tomando da inexorável colher de bronze investia contra a massa semelhante aos cabelos de Medusa, que fervilhava fumegante sobre as bem construídas mesas. Briseida, tá sem sal! bradou o filho de Peleu. Eu avisei! retrucou Cassandra do alto das inexpugnáveis muralhas.

.oOo.

– Você é Leonardo Padura?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Ele sabia que a velha Josefina não o perdoaria pelas folhas de taioba não entregues. Precisava falar com o magro Carlos e pedir que intercedesse a seu favor com a velha. Mas a cabeça ainda latejava devido as duas garrafas de rum vagabundo que conseguira comprar com o que lhe restou da venda do último livro, uma espécie de guia de como remover pulgas de cães. Acordou com o focinho gelado de Lixeira II no seu braço testando se ainda havia ali, naquele moribundo, um resquício de alma ou se teria de voltar a cavocar o pote com massa que havia lhe servido na noite anterior.

.oOo.

– Você é Guimarães Rosa?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Nonada, minha barriga estava desinquieta. Como diz meu compadre Quelemém, lá das bandas do Andrequicé, se ouvir uns roncos das entranhas homem, Deus esteja. Varei o pacotinho das minhoquinha a vir a ser um caldo cramunhado e salgado com as lágrimas do visitado pelo sem nome. Meti-lhe goela adentro. Travessia.

.oOo.

– Você é Anaïs Nin?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– A massa contra o prato produz asco, mas o contato com a língua apenas engendra repulsa e resignação.

.oOo.

– Você é Monterroso?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Quando viu, o miojo ainda estava lá.

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Alberto Caeiro
Escrito em 20-6-1929

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.

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