Não sou tão velho assim – ou sou? – , mas conheci Mario Quintana. Ou melhor, falei com ele casualmente uma vez. Conversamos numa Feira do Livro a respeito de algo tão prosaico que não lembro bem do assunto. Acho que ele estava procurando um livro numa banca e me perguntou se eu tinha visto. Sim, foi isso. E eu saí procurando sem encontrar. Fim.
Ele foi uma figura conhecida em Porto Alegre. Era o discreto dono da pequena celebridade possível a um autor gaúcho. Sua única extravagância era a de habitar um hotel do centro onde atualmente é a Casa de Cultura Mario Quintana. No seu quarto havia pouco de seu, o que era de Quintana estava espalhado em livros e jornais.
Quintana fazia pouco caso dos críticos que, aliás, costumavam tratá-lo muito bem. Dizia que escrevia suas poesias (e suas crônicas eram também poesia) por sentir necessidade de escrever. Nunca saiu do Rio Grande do Sul, mas era um esplêndido tradutor. Suas traduções de Balzac, Virginia Woolf, Voltaire e Proust são exemplos de perfeição e senso de estilo.
Quintana nasceu em Alegrete (RS) em 30 de junho de 1906 e faleceu em Porto Alegre no dia 5 de maio de 1994, há 20 anos. Abaixo, alguns exemplos de sua poesia.
Dos Milagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Da Discrição
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também…
O Mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
Presença
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!
(sem título)
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
Canção do Dia de Sempre
Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…
Poeminho do Contra
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!