Estou relutante em escrever minha opinião acerca deste livro. Não gosto de SÓ ficar falando mal das coisas. É a história de um cara que faz tudo para tornar-se famoso. Já li e vi coisas muito melhores no gênero arrivista. Loyola tentou ser engraçado e sou um cara que gosta de rir. Tinha tudo para dar certo. Pois ele não conseguiu nenhuma risada. Fazer o quê? Não sei onde foi parar o tal “Realismo feroz” que mestre Antonio Candido com toda a razão (para variar) viu em Loyola no passado. O homem foi sumindo depois de Zero…
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Noites Florentinas, de Heinrich Heine
Noites Florentinas, de Heinrich Heine (1797-1856), é um livro surpreendente. Publicação póstuma, é de notável contemporaneidade, antecipando procedimentos que teríamos de volta somente 70 anos depois, com Isak Dinesen. Refiro-me especificamente à intromissão a todo momento de uma poesia muito pouco comedida, às histórias que surgem dentro das histórias, à simbologia e à aparente livre associação dos fatos. Quanto às duas últimas, talvez seja melhor acolher um conselho da própria Dinesen e aceitar que, numa história, não é adequado compreender tudo.
Achei que o livro estivesse mais para o cômico, pois o excelente tradutor Marcelo Backes salienta bastante este aspecto na introdução. Na verdade, as Noites Florentinas devem ter sido um divertissement para Heine e são lúdicas, muito lúdicas para o leitor de hoje. Por exemplo, é muito prazerosa a troca de papéis que Heine faz em relação ao modelo das 1001 Noites. Se nas 1001 Noites, Sherazade – uma mulher – contava histórias e mais histórias a fim de não morrer, nas NF Maximilian – um homem -, faz o mesmo para que Maria sobreviva. Sei lá se o Rei das 1001 Noites dormiu durante alguma história; mas posso dizer que fiquei quase escandalizado ao descobrir que, ao final da primeira noite, Maria dormia. Eu estava acordadíssimo. Outra surpresa é o clima erótico sugerido por Heine. Além da história se passar ao pé do leito, o escritor eleva a temperatura diversas vezes. Relembremos a passagem na qual os amigos “…olharam-se em silêncio por longo tempo. Em ambas as almas surgiam pensamentos que cada qual tratava de dissimular ao outro. Mas a mulher segurou de súbito a mão do homem e a cobriu de beijos ardentes”, seguido pelo toque dos lábios de Max nos pés de Maria, e ainda pelo “Sorrindo cheio de afeto ao olhar afirmativo de Maria…”. Se tais trechos não servem àquilo a que a Playboy se propõe, pelo menos faz sonhar. Alguns capítulos depois, a história de Mademoiselle Laurence também vai fundo neste sentido, apesar do onírico da situação.
O trabalho do tradutor Backes é impecável. O desafio de traduzir uma obra do século XIX, tendo que dar ao texto uma feição antiga, foi cumprido com naturalidade. Usando uma expressão da música erudita, diria que ele possui perfeito senso de estilo. Para comprovar, basta ver a diferença entre o Backes da introdução e o Heine-Backes do texto de Noites Florentinas. A edição é da gaúcha Mercado Aberto. Vale a pena ler!
Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll
Os livros de Noll quase sempre tratam do mesmo personagem: o próprio Noll. As características biográficas, físicas, étnicas e profissionais do tal personagem coincidem inteiramente com as do autor. No começo do livro, é impossível não sermos tomados de simpatia pelo personagem quando o mesmo declara sua extrema pobreza – vive apenas de literatura e de pequenos trabalhos correlatos – e com todos os fatos que o levam a aceitar dar um curso sobre “Cultura Brasileira” em Berkeley. Os fatos são descritos sumariamente. Estava envergonhado de “filar” inumeráveis almoços na casa dos outros, de pedir dinheiro emprestado, etc. Ao mesmo tempo, parece sentir alguma culpa por estar prestes a mamar na teta de uma universidade americana.
Então, ele aceita o convite para o curso e chega à California com menos de 100 dólares no bolso e sem saber falar inglês. Suas aventuras, primeiramente em Berkeley (para dar aulas) e depois em Bellagio (onde fica em uma “oficina criativa” em frente ao Lago de Como), poderiam ser bastante interessantes do ponto de vista humano, porém nosso autor está mais a fim é de descrever as aventuras sexuais. Tudo bem, o sexo faz parte da vida, mas não é, digamos, mais que 88% dela. Apesar de conviver com ensaístas, músicos, pintores e ficcionistas, nada de intelectual acontece. Já de sexual…. é do caralho. As lavanderias de Bellagio devem ter se surpreendido com os sucrilhos deixados nas cortinas de seus salões, pois o autor declara ter limpado seu pênis nelas.
Intermezzo: o personagem principal é homossexual, talvez o Noll também o seja, sei lá. Nada tenho contra a opção dele, mas sou totalmente contra as descrições pós-sexo que o autor nos impinge. Ora, depois de cada relação, a narrativa é atacada daquela indireção poética ao estilo de Clarice Lispector. A narração pós-ragazzo em Belaggio é longuíssima para o tamanho do livro e… é chata, chata, chata, como Clarice NÃO o faria.
O final do livro, quando o narrador retorna à casa em Porto Alegre é muito emocionante. O fato inesperado de estarem lá um ex-namorado pai-solteiro com sua filha é surpreendente e é também uma brisa depois do prolongado claustro. Tá bom, não é nada original aparecer uma criança ou uma jovem para dar uma refrescada e mudar o contexto da história, mas com o Noll a coisa funcionou. A vida também é assim, não?
Não sei porque voltei a ler o Noll. Não tinha gostado de outros livros lidos anos atrás. Acontece que o vi em uma entrevista na TV e gostei dele. Mas valeu a pena retomar o contato com sua literatura. Uma curiosidade: toda a vez que abria o livro vinha aquela baita saudade de ler Thomas Bernhardt, pois, quando via seu parágrafo único, lembrava-me de como aquilo poderia ser bom, se tivesse mais solidez, racionalidade e raiva. E um pouco mais de arte narrativa, é claro.
Os Emigrantes, de W. G. Sebald
Se, como escreveu Michel Laub, Austerlitz é o grande lançamento de 2008, W. G. Sebald já havia comparecido no Brasil com outro extraordinário livro: Os Emigrantes. Trata-se do relato de quatro expatriados numa obra que mistura gêneros habilmente. Cheios de fotografias de família, seus capítulos podem começar como um romance de ficção, tornar-se ensaio para depois virar relato de viagem e ainda autobiografia, tudo no tom de uma conversa outonal ao pé do ouvido. Este híbrido é absolutamente envolvente.
Vou falar sobre um episódio suscitado por Os Emigrantes. Estava lendo o livro na cama enquanto a Claudia via TV sem som a meu lado, certamente pensando em outra coisa, como sempre faz. Então, resolvi ler em voz alta um trecho para ela e, quando dei por mim, estava lendo há duas horas. A Claudia tinha passado a costurar e não queria que eu parasse. Minhas qualidades de locutor são apenas aceitáveis, minha voz não é nada boa, portanto acredito que esta cena ao estilo do século XIX foi gerada principalmente pelo crescente interesse dos dois nesse cara que morreu, jovem e estupidamente, num acidente de carro em dezembro de 2001. Sebald sofreu um enfarto enquanto dirigia. Não sei de detalhes, mas dizem que morreu do acidente, não do enfarto… OK.
As pessoas quase não lêem mais livros uns para os outros, este ato de amor e consideração ficou extraviado em alguma esquina do século XX, fora de nossas salas e quartos atuais; porém alguns textos nos permitem recuperar esta delicadeza. Qualquer hora destas vou pegar de novo um bom livro, com uma boa “conversa narrativa”, e entregarei a minha amiga todas as meias furadas, calças de bolsos rotos e camisas com botões caídos que tiver…
Bom, afastei-me do Sebald, mas acho que ficou claro: é um baita livro.
Futebol e identidade social, de Arlei Sander Damo

Em primeiro lugar, preciso falar um pouco sobre como consegui este livro. Ele me foi enviado por Idelber Avelar, professor da Universidade de Tulane, em New Orleans. Em vão, tentei comprá-lo, apesar de ser um livro novo, de 2002. Em minhas tentativas, escrevi para a Editora da UFRGS, tendo recebido como resposta o mais completo silêncio. Procurei novo contato, pois queria dá-lo de presente aos criadores do Impedimento, mas nada, não parece haver ninguém por lá. Por que então existe um Fale Conosco bem aqui? Então, meu sobrinho conseguiu o e-mail do próprio autor. Foi atendido mui educadamente, obtendo a confirmação de Damo de que a obra era muito procurada, mas que só a editora podia resolver o caso. Bem, ao menos isto não é culpa da corrupção do futebol, nem de Ricardo Teixeira…
O livro de Arlei Sander Damo tem o subtítulo de “Uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes” e originou-se da dissertação de mestrado do autor, escrita entre 1996 e 1998, aproximadamente.
É obra interessantíssima para quem queira sair da mesmice das notícias diárias sobre futebol — aquelas mesmas que tanto deprimem nosso noturno cidadão de uma república enlutada — e adentrar de forma inteligente e bem conduzida na história da formação desta loucura que vemos. Damo nos explica o nascedouro da dupla Gre-nal e de sua rivalidade. “Se queres ser universal, canta tua aldeia”, dizia Tolstói de forma mais esperta que Wianey Carlet. Cantar sua aldeia é o que faz Damo, fazendo-nos descobrir claras analogias com outras cidades, estados e rivalidades clubísticas brasileiras. As explicações são do autor, as projeções são nossas; há leitura mais produtiva e agradável do que conjeturar junto com o autor? Não, né? A obra começa no início do século passado, descrevendo o início do associativismo esportivo em nossa Porto Alegre – empurrado pelos imigrantes alemães, “ficiados” em clubes – para chegar aos primórdios de uma paixão e de uma rivalidade que é boa para torcer, mas que também é boa para se pensar a respeito.
São absolutamente preciosas as argumentações sobre raça e classes sociais que faz o autor, sobre o crescimento do racismo no Grêmio à época do Dr. Py e a da salvação do clube através de seu maior presidente, Saturnino Vanzelotti, o qual resolveu enfrentar os “gremistas vigilantes”, que lhe escreviam mal-disfarçados apedidos em jornais, sempre zelosos de que a camisa tricolor não fosse maculada pelos negros. (Seus textos, sempre anônimos, parecem ter como autor um Joseph Goebbels com superego fraco.) Outros fatos significativos que são analisados são as infrutíferas tentativas do autor para descobrir a origem clara do poderio colorado dos anos 40: a célebre Liga das Canelas Pretas – o que vem comprovar a pouca documentação da história negra no Rio Grande do Sul –; a derrocada do amadorismo; um exame sobre a influência dos estádios na gangorra Gre-nal e um estudo sobre a formação das torcidas sob a ótica das raças e das classes sociais.
É apenas isto o que a Editora da UFRGS insiste em nos esconder. Ainda não devolvi o livro para o Idelber. Querem cópias…?
Observações finais:
1. Apenas o texto “Sobre o regional e o nacional no futebol brasileiro” é datado e mereceria uma recauchutagem geral.
2. Arlei Sander Damo daria um bom leitor do Impedimento.
3. Apesar de não confessar, Arlei Sander Damo é um gremista nojento.
Saudações coloradas e morte à progênie do racismo!
:¬)))
O Poste de Vapor, de Ferenc Molnár
O escritor não sabe quando aprende.
FERENC MOLNÁR
É estranha a trajetória do húngaro Ferenc Molnár (1878-1952). Autor de crônicas em jornais húngaros, de livros infanto-juvenis — é dele o clássico Os Meninos da Rua Paulo –, de peças de teatro em sua maioria muito bem escritas mas sentimentalóides, acabou emigrando para os Estados Unidos onde tornou-se requisitado dramaturgo, principalmente para a Broadway. Várias de suas histórias cômicas foram passadas para o cinema em filmes de Henry King, Billy Wilder, Michael Curtiz e outros. Não era somente popular, mas um escritor respeitado. Imaginem que este autor da Broadway recebeu adaptações de Arthur Miller para rádio e o teatro e Tom Stoppard fez o mesmo modernamente. Molnár é um raro caso de sucesso popular e literário.
Mas isto ocorria separadamente, obra a obra: há um posfácio neste O Poste de Vapor que nos explica que Molnár produziu às vezes “para a literatura” e outras vezes “para o mercado” — expressões minhas. Concordo com o autor do posfácio: certamente, este livro pertence à parte literária de sua obra. O narrador é um jovem jornalista que descreve as loucuras de certo falso capitão, seu colega numa estação de águas termais, localizada na bela ilha Margarida, que fica entre Buda e Pest, no rio Danúbio.
As inverdades e loucuras do capitão dos hussardos, em si muito engraçadas, são apenas o primeiro plano de uma demonstração da inconseqüência de muitas atitudes — boas ou maldosas — e do oportunismo de outras. Não é um livro otimista ou que promova bons sentimentos ou de final feliz, mas é curiosamente sedutor e agradável. Vá entender.
A trégua, de Mario Benedetti
Eis um excelente escritor. Muito pouco lido no Brasil, o velhinho Mario Benedetti está às vésperas de completar 88 anos. É um poeta, romancista, cronista e ensaísta uruguaio. A trégua é o diário de Martín Santomé, um viúvo de quase cinquenta anos, pai de três filhos, que vive há mais de vinte entre a criação dos filhos, o trabalho de contabilista e casos de uma noite com mulheres quaisquer. É um sujeito apagado e deprimido, um bom funcionário que detesta seu trabalho, mas que o faz bem; um pai que, com os filhos crescidos, recebe deles a indiferença e o desejo de distância. Tudo muda lentamente com a entrada de Laura Avellaneda como sua funcionária no escritório. Jovem, tímida, contida e muito inteligente, ela proporcionará uma trégua à vida de Santomé.
Dito assim, parece uma história como tantas outras, mas não é, não da maneira como o faz Benedetti. Fino observador, ele conta a história com o exato grau de minúcia, explorando principalmente a insegurança do viúvo em sua relação com uma mulher vinte e dois anos mais nova. É quase um estudo da solidão, da felicidade e do passar do tempo em forma de ficção. Vale a pena ler este pequeno romance com mais de cem edições em espanhol.
Minha única estranheza foi a forma como Benedetti refere-se ao homossexualismo antes do episódio do politicamente correto. Não é agressivo, porém não é nada compassivo. Compreende-se, o romance é de 1960.
Soube que a editora Alfaguara traduziu mais dois livros de Benedetti: El Buzón del Tiempo, lançado como Correio do Tempo, e Primavera con una Esquina Rota (ainda sem título). Mas fiquemos antes com A trégua. Indico fortemente.
Incompletos, de Albano Martins Ribeiro (Branco Leone)
Eu acho mais simpático e engraçado Branco Leone, mas o outro nome também está adequado; afinal, meu avô chamava-se Manoel Martins Ribeiro, nascido em São João do Loure, Portugal.
De todos os autores que apareceram através dos blogs, Albano-Branco é o que mais gosto. E não li poucos. Vamos começar pelo título do livro. Fico na dúvida se Incompletos é uma referência aos personagens do livro — sempre em busca do outro (em alguns casos em fuga) –, ou se aponta para a estrutura voluntariamente fragmentária dos contos. É um belo título. E um belo livro. Os contos são curtos, parecem instantâneos de um fotógrafo muito indiscreto. São muito bem escritas “cristalizações do fugidio” amoroso, como diria Erico Verissimo, contadas na voz característica do autor, entre a bem-humorada indulgência e a absoluta crueza. A única coisa que me perturbou na coletânea foi a história da qual gostei mais. (sexta à noite, no purgatório) é a maior narrativa do volume – 28 páginas -, a mais fragmentária e a que me causou a estranha sensação de pertencer a algo maior, que não nos foi dado a conhecer… Queria mais, parece haver mais. Haverá? Talvez seja porque a mim, o sarcástico narrador deste conto fez lembrar o extraordinário narrador da obra-prima Homo Faber, de Max Frisch. Mas isso é problema meu. Tiago Casagrande, ao comentar o livro, escreveu que Incompletos era um livro rarefeito, daqueles que nos deixam com mais dúvidas que esclarecimentos. Perfeito. Quem quiser verdades estabelecidas que vá a outro quintal, quem quiser o prazer da leitura que venha aqui.
O excelente livro é da editora Os Viralata.
Música perdida, de Luiz Antonio de Assis Brasil
Quando Música perdida fez a final da Copa de Literatura Brasileira contra Um defeito de cor tive absoluta certeza de que o vencedor seria o elogiado livro de Ana Maria Gonçalves. Ora, Ana surgiu nos blogs, Um defeito de cor recebera críticas favoráveis de todo gênero e os julgadores, seus pares, acabariam por escolhê-la, mas não foi o que aconteceu. O vencedor foi Música perdida. Tive então outra certeza: a de que se tratava de um livro superior, de uma obra cuja premiação era inexorável. E, burro que sou, enganei-me novamente.
Assis Brasil adota seu habitual tom manso para contar a história do Maestro Mendanha. No início, tudo me interessava. O personagem principal e suas circunstâncias eram muito sedutoras, principalmente para alguém que, como eu, ama e convive diariamente com a música erudita. Tanto foi assim que foi um pouco complicado inferir o que estava me incomodando no romance. Só quando o autor apresentou Pilar é que ficou clara a planura e a débil construção dos personagens. Assis Brasil nega-se a invadir suas psicologias, preferindo sinalizar acontecimentos e transições com simbolos factuais que são tão claros, mas tão notórios, que funcionam como deselegantes semáforos. Três mortes casuais ocorridas num mesmo dia – recurso estranho para uma narrativa tão tradicional – e uma enorme culpa fazem o personagem fugir de Vila Rica para uma guerra no sul, mas ele, internamente, não parece padecer grande sofrimento simplesmente porque Assis Brasil não o descreve. O livro é todo feito de narrativas de fatos, parecendo mais um roteiro cinematográfico escrito em linguagem literária. Para acabar com meu humor, o autor dedicou-se a estragar o final de minha tarde de domingo – a hora do suicídio – adotando um tom grandiloqüente em seu gran finale, equívoco que ele já havia cometido no patético final feliz de Concerto Campestre.
Pretendo ler Um defeito de cor assim que o obtiver de volta. A empregada lá de casa o pegou para ler. Ela escolhe seus livros e costuma ter bom gosto: antes leu Lolita.
Shostakovich – Vida, Música, Tempo (de Lauro Machado Coelho)
Foi uma surpresa descobrir a existência deste calhamaço de 502 páginas, uma biografia do enorme compositor russo-soviético Dmitri Shostakovich (1906-1975). O que não foi absolutamente surpreendente é o fato da biografia ter sido escrita por Lauro Machado Coelho, autor de alentadas obras sobre ópera que têm preenchido o deserto de publicações do gênero com alguns bem-equipados oásis.
Este livro sobre Shostakovich é imprescidível a quem se interessa pelo autor. O volume de informações é inacreditável e fiquei de tal forma envolvido pelo livro que seria quase uma injustiça criticar o trabalho de Lauro, porém, em meio a tanta novidade, consegui vislumbrar o guichê de reclamações e pretendo fazer uso dele. O texto é muitas vezes descuidado. Tenho a impressão de que Lauro necessitava finalizá-lo no ano de 2006 – ano dos cem anos de nascimento de Shosta – e deixou passar alguns parágrafos que são quase anotações esparsas. Pressa, certamente. A editora poderia tê-lo alertado. Deve haver leitores profissionais na Prespectiva, não? Outro fato é que o autor claramente arrepende-se de ter sido tão anticomunista durante o texto e escreve um inteligente e equilibrado último capítulo – talvez o melhor do livro – chamado “O Caso Shostakovich”. É um curioso e necessário recuo. Afinal, Shostakovich utilizou o mais abstrato dos meios para dar o depoimento mais realista da história da música sobre sua contemporaneidade e há controvérsias por todo lado. Shostakovich não nos legou testemunhos confiáveis. Há momentos de descontrole e outros em que já vemos o LMC do último capítulo. Ou seja, carece de revisão.
Agora, só um louco ousaria criticar o que realmente importa: a detalhada cronologia, a notável descrição das obras, a palavra de um indiscutível conhecedor, as valiosas opiniões de um excelente ouvinte. Também elogio a diagramação do livro, que nos deixa duas boas colunas para que façamos anotações e possamos discutir com o autor e suas fontes… Coisa que adoro fazer.
Vocês sabiam que L&PM lançou em pocket a tradução de Lauro Machado Coelho dos poemas de Anna Akhmátova – Poesia: 1912-1964? Pois é, é bom lê-los.
Ássia, de Ivan Turguêniev
Comparar Dostoiévski e Tolstói sempre me pareceu coisa de amador. Os dois são tão diferentes que parecem trabalhar em faixa própria. Tolstói tem melhor texto, se o encararmos do ponto de vista clássico, e, de certa forma, é um escritor que aspira à imortalidade. Ele a obteve com folgas… Já Dostoiévski é mais escabelado e moderno, fazendo com que sua prosa dobre-se aos personagens. Eu, que não sou bobo, não faço escolhas e gosto de ambos. Porém, havia outros enormes escritores circulando pela Rússia czarista e havia um que trabalhava na faixa de Tolstói. Era Ivan Turguêniev. Escritor de grandes recursos, criou algumas novelas perfeitas e um romance idem: Pais e Filhos.
Tenho especial consideração pelas novelas, estas narrativas que ficam entre o conto e o romance, seja em tamanho, seja em alargamento de intenções. Grandes escritores se dedicaram ao gênero. Kafka escreveu A Metamorfose, A Colônia Penal e outras; Henry James tem obras-primas como A Volta do Parafuso, Os Amigos dos Amigos, A Vida Privada, O Altar dos Mortos, a insuperável A Fera na Selva, etc.; Isak Dinesen tem Os Sonhadores e outras; Heinrich von Kleist escreveu uma inesquecível: Michael Kolhaas; Tolstói tem seu trio de ferro: Sonata a Kreutzer , A Morte de Ivan Illich e A Felicidade Conjugal; Goethe tem Werther. Estes exemplos foram os primeiros a me ocorrer, há muitíssimos mais.
Voltemos a Turguêniev ou Turguenev, como queiram. Quando vi que a Cosac & Naify tinha lançado a novela Ássia, animei-me imediatamente – seria ela um outro O Primeiro Amor, seria ela outra grande novela de Turguêniev? Não, não é tão boa, mas estão lá todas as características que fizeram deste russo um escritor tão singular. Lá está a prosa impecável do russo e lá estão os aristocratas inúteis de sempre, porém o narrador de Ássia é, além de inútil, um covarde emasculado. Ássia é uma jovem que se apaixona por ele. Só que o narrador fica confuso no momento decisivo e deixa a moça pensar que ele não a ama.
Este tema é um clássico em várias literaturas. Inclusive Machado de Assis constrói um de seus melhores e mais importantes contos sobre o tema do momento decisivo – o Missa do Galo (que é muito melhor que Ássia, bem entendido). Só que Turguêniev não deseja apenas mostrar um desencontro fortuito entre dois amantes, mas uma “história moral de sua geração”. Talvez por isto tenha criado um narrador tão inerte e irritante. Esta aristocracia russa, cuja psicologia é tão bem descrita neste livro e em grande parte da obra de Tchékov, mereceu plenamente a revolução que a sepultou.
Não ignoro que na literatura russa do século XIX havia eslavófilos e europeístas. Eu passei intencionalmente por cima desta esta classificação, OK?