Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido.
THOMAS MANN, citado por Andrei Tarkovski
Quando peguei o livro de Esculpir o Tempo, obra escrita pelo cineasta soviético Andrei Tarkovski (Martins Fontes, 1998, fácil de encontrar) numa estante da Livraria Bamboletras em Porto Alegre, fui direto à contracapa. Li isto:
O meu mais fervoroso desejo sempre foi o de conseguir me expressar nos meus filmes, de dizer tudo com absoluta sinceridade, sem impor aos outros o meu ponto de vista. No entanto, se a visão do mundo transmitida pelo filme puder ser reconhecida por outras pessoas como parte integrante de si próprias, como algo a que nada, até agora, conseguira dar expressão, que maior estímulo para o meu trabalho eu poderia desejar? Este livro amadureceu durante todo o período em que minhas atividades profissionais estiveram suspensas… Seu principal objetivo é ajudar-me a descobrir os rumos da minha trajetória em meio ao emaranhado de possibilidades contidas nesta nova e extraordinária forma de arte – em essência, ainda tão pouco explorada – para que nela eu possa encontrar a mim mesmo, com plenitude e independência.
Gostei. Abri o livro e comecei a lê-lo a partir da primeira página, só parando quando chegou a hora de entrar no cinema. Quando devolvi o livro à estante, lembro de ter pensado se veria algo melhor do que ele; difícil. Alguns dias depois, voltei à Bamboletras, procurei o livro e recomecei a leitura do ponto onde havia parado. Fiz isto várias vezes consecutivas sem nunca comprá-lo, já estava lá pela página 100 das 306 que ele possui.
Então, talvez na quinta sessão de leitura, quando empreendia a procura do livro nas estantes, notei que a responsável pela livraria saía sorridente de trás de seu balcão. Olhei para ela.
— Procurando o livro do Tarkovski?
— Sim, como é tu sabes? – disse, meio sem jeito.
Ela exibiu todos os dentes num sorriso e falou:
— Pô, tu estavas sempre mergulhado nele! Eu o vendi ontem, mas já pedi mais dois.
— Por quê? Este livro deve ser complicado de vender. É de interesse restrito.
— Não é não, é de interesse geral. Vou acabar indicando e vendendo para alguns dos meus clientes. Eu também comecei a lê-lo. É muito bom mesmo. E, se eu não trouxesse mais…, como tu ficarias?
É claro que deixei meu telefone para que a Bamboletras me avisasse quando da chegada do livro e o comprei. Não, caros leitores, não fiquei nem casei com a moça da livraria. Esta história bonitinha, comercial e verdadeira serve apenas para demonstrar quão envolvente é o livro de Tarkovski.
Tenho uma admiração distante por seus filmes. Vi Andrei Rublev nos anos 70 e saí do cinema Vogue eufórico, pois o Milton adolescente nunca tinha cogitado sobre a possibilidade de existirem filmes tão poéticos. Andrei Rublev (1360/70 – 1430) é um monge-pintor russo. O filme tem uma atmosfera parecida com a de O Sétimo Selo de Bergman, mas é muito mais onírico. Há um episódio inesquecível no qual um jovem constrói seu primeiro sino. Ele é filho do sineiro da cidade, que morreu, cabendo a ele lembrar-se de como seu pai fazia e construir o sino. A cena na qual o sino é testado pela primeira vez, o momento no qual o badalo é empurrado para frente e para trás através da força dos braços de um homem quase enterrado no chão e que é apenas entrevisto, está em meus olhos 35 anos depois. Creio ter sido esta a maior emoção que o cinema me passou até hoje.
Depois, vi Solaris e, creio eu, O Espelho com meu pai e não nos entusiasmamos muito. O entusiasmo voltou com Stalker e O Sacrifício, que vi neste século. Não são filmes fáceis e posso afirmar que alguns deles foram vistos como se formados por pequenos episódios que eram maravilhosos, perfeitos, mas eu não conseguia ligá-los logicamente. Durante algum tempo pensei que a grande obra de Tarkovski era o mosaico formado por estas pequenas histórias.
Goethe está certo quando diz que ler um bom livro é tão difícil quanto escrevê-lo. Completo dizendo que se não estivermos à altura da obra, nunca a compreenderemos tal como o autor gostaria. Sempre estive, portanto, muitos pontos abaixo daquilo que o cineasta Tarkóvski requer. Porém, no livro não é assim. Ali tudo é explicado de forma clara, tão clara que fico tentado a rever todos os filmes para finalmente me apropriar deles.
Mas por que lembro justamente de Tarkovski? Melhor dizendo: a que desejo me referir quando falo sobre ele? Creio que desejo apresentar um homem que podia expressar-se artisticamente escrevendo ou filmando, desejo mostrar um homem que não apenas conhecia profundamente cinema e literatura, mas também era conhecedor de música, arquitetura e artes plásticas. Era um homem raro e — nestes tempos de obtusa especialização — sinto falta destas pessoas multifacetadas, que podem nos surpreender ao dar convívio aos assuntos mais díspares dentro de um só cérebro, de um só livro ou de um só parágrafo.