A Chegada de António Barbeiro ao Brasil (I)

António Barbeiro é um personagem criado pelo poeta português Rogério Simões. Ele permitiu que eu desse continuidade à história de seu personagem António, notável escritor de cartas e, é claro, barbeiro. Transcrevo a seguir um pequeno texto de Simões no qual ele nos apresenta António. Ele jamais imaginaria onde António foi reaparecer…

O António da minha imaginação era um homem notável — barbeiro de profissão e médico-enfermeiro nas horas vagas. António buscou o saber nos velhos livros de medicina e, porque era letrado — poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever — , escrevia e lia as cartas do povo. Mas António “Barbeiro” gostava de ouvir! (Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!).

E, mal tardasse a noite, pé ante pé como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho que sintonizava a Rádio Moscovo. António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e no silêncio das quatro paredes se a telefonia emitia uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não ouvir:

— Não viesse por ali algum “bufo”para o denunciar ou agente da polícia politica para o levar.

Mas o “Barbeiro” que sabia tanto… procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam. Foi por isso que ouviu dizer que os comunistas iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar…

Talvez por isso que o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia “abusivamente” nas entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas. Certa noite, de intensa tempestade, o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo! Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém!

António chegou de navio ao Rio de Janeiro num dia ensolarado de verão. Gostava do calor e, após hospedar-se num hotel barato, saiu pela cidade. Em frente à Biblioteca Nacional, comprou um mapa do Brasil e começou a procurar por Santa Fé, no Rio Grande do Sul. Tinha lido O Continente e O Retrato, de Erico Verissimo, e decidira que moraria novamente em uma pequena cidade, exatamente naquela. Só que não encontrou Santa Fé no mapa. Estava encantado com a beleza do Rio, mas achava muito óbvio ficar naquele cidade cheia de portugueses. Mesmo que seu sotaque ficasse mais evidente numa cidade pequena, ele pensava que seria melhor ficar afastado. Entrou na Biblioteca Nacional e puxou conversa com um dos atendentes. Achou estranho seu nome, Hudson, mas como ele falava bom português, perguntou sobre a localização de Santa Fé. Foram aos livros e nada. Deve ser uma verdade ficcional, disse Hudson. António achou a expressão cômica. Voltou ao hotel para — dentre as poucas coisas que trouxera às pressas de Portugal — procurar seu exemplar de O Continente. Amava os livros de Erico, mas não sabia onde ele tinha nascido. Descobriu que o autor nascera em Cruz Alta e vivia em Porto Alegre, ambas cidades no estado do Rio Grande do Sul. A última era uma cidade pequena. Iria para lá.

Esperava que Cruz Alta não fosse mais aquele faroeste descrito por

Comprou passagens para o sul e, dois dias depois, estava chacoalhando dentro de um ônibus. Dormiu uma noite em Porto Alegre e embarcou em novo ônibus com destino à cidade natal daquele escritor que fazia os mortos saírem de suas tumbas a fim de enfrentar os poderosos do dia, pois só eles teriam coragem para tanto.

Cruz Alta era como ele imaginara. Caminhou pelas ruas tranquilas e sentou-se na praça principal. As pessoas que passavam o cumprimentavam. Não havia ali espaço para o anonimato e logo sentiu-se alvo de olhares. Pensou que deveria entabular conversação com alguém que não lhe criasse problemas, mas que havia tempo para fazê-lo com calma. Em frente à praça, havia um consultório dentário onde se lia: João Nepomuceno Cunha Filho — Cirurgião Dentista. Gostou daquele nome e algo difuso — talvez a cor da casa, sua localização, as letras da placa de metal — , dizia-lhe tratar-se de alguém confiável, de boa instrução, amigo; alguém semelhante a Erico. Falaria com aquele homem.

Esperou até o final da tarde e, quando concluiu que o último cliente entrara, sentou-se na ampla sala de espera. Ao despedir-se de sua vítima, o Dr. João Cunha surpreendeu-se com aquela figura desconhecida e sorridente encarapitado no sofá.

— Como vai? — disse o dentista.

A resposta de António fez com que João Cunha risse, pois o que menos esperava era ouvir aquele sotaque puramente português.

— O senhor fala como meus amigos de Portugal!
— Ah, sim? O doutor tem muitos amigos portugueses?
— Sim, tenho amigo por todo o lado sem nunca ter ido muito longe daqui. Sou rádio-amador.
— Que interessante!

O português tinha boa conversa e João convidou-o para ir fumar na praça. Lá ficaram até às oito da noite, quando Débora, a esposa do dentista, veio chamar-lhe para o jantar. A curiosidade era mútua; António interessou-se por aquele dentista interiorano que desejava ser cosmopolita, enquanto João ficara encantado com aquele português tão informado que fora parar ali apenas por amor ao famoso filho da cidade.

— Onde o senhor está hospedado? — perguntou-lhe João Cunha.
— Estou no Hotel Santa Helena – respondeu António. – Convido o senhor a visitar-me. Devo encontrar um Adriano na cidade para oferecer-lhe.

João Cunha riu.

Ao entardecer do dia seguinte, o dentista abriu as cortinas de sua casa e viu António na praça com um jornal enrolado nas mãos. E assim ocorreu dia após dia. António passou a frequentar a casa do doutor — às vezes ficava operando sozinho o rádio-amador — , brincava com seus filhos e até passou a fazer-lhe a barba e a cortar o cabelo de seu filho João Reinaldo, sempre na cadeira de dentista. Em Cruz Alta, o rádio-amador servia de sucedâneo para as cartas que tinha deixado de escrever, mas tinha receio de procurar a Rádio Moscou. Com jeito, sem informar seu nome, perguntava aos rádio-amadores portugueses sobre as novidades do país. O que informavam — com todo o cuidado e muitas vezes através de intrincadas analogias — era deprimente. Certo dia, João perguntou-lhe se ele não desejava voltar a trabalhar.

Era o que António queria ou, mais exatamente, precisava. Não tinha vindo de Portugal com tanto dinheiro e necessitava voltar logo à ativa.

– Adoraria, João.
– Há uma barbearia perto do 17º Regimento de Infantaria. A casa é de minha familia e o barbeiro me paga aluguel. Quer dizer, paga quando quer e pode. Há dois quartos atrás que estão desocupados. O homem que trabalha lá — de nome Orlando — é um bêbado e os milicos não o suportam. Dou um jeito de te colocar lá. Vocês podem trabalhar lado a lado. Haverá freguesia para isto.

– Este homem tem família?
– É sustentado por uma santa, a Dora. Vou resolver o caso para ti.

Alguns dias depois, António voltou a trabalhar. A princípio trabalhava pouco, pois os militares o preteriam em favor do conhecido Orlando. Com António a seu lado, Orlando teve seu último período de abstinência, voltando a trabalhar sóbrio; depois, quando percebeu que António “roubaria” pouco a pouco a maior parte de sua clientela, voltou a beber. A qualidade principal de um barbeiro, segundo António, era, além de proporcionar um bom corte, a audição. António, que não apreciava muito os militares, logo notou que os dirigentes do país adoravam fazer bravatas e confidências que, somente em suas bocas, tinham o poder de alterar o rumo da vida de toda a gente. O que António não sabia é que sua amizade com o Dr. João Cunha e o pouco que falava sobre livros e Europa estavam tornando o barbeiro português uma respeitável figura da cidade. Todos queriam seus serviços, o que significava, para António, que todos desejavam ser ouvidos por ele.

E António ouvia.

(continua)

O António Barbeiro
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)

Maria.
Espero que ao receberes esta carta estejas bem que nós por cá vamos na graça de Deus.
Recebi a tua última carta onde me dizias palavras lindas, como só tu sabes dizer, e com ela vinha a senha para levantar o cabaz das mercearias que nos mandaste pela camioneta.
Já recebemos a encomenda, estava tudo bem, mas escusavas de te incomodar.
Aqui na terra tudo vai como no costume.
A cabra da Ti Rosário entrou na horta e foi dar cabo da vinha do “tê” pai.
Ouvimos dizer que o Ti Chico fugiu para França. Que raio é que deu ao homem que tinha aqui tanto mato para roçar.
O Zé do fundo do lugar, coitado, é que não teve a mesma sorte. A família dele está de luto! Morreu de uma bala ao atravessar a fronteira. Mas esse, coitado, não tinha aqui de comer. Agora que vai ser dos filhos dele. É assim! Temos de nos conformar…
Maria! Vieram-me contar, (aqui na terra há cá umas mexeriqueiras), que estás apaixonada e que até lhe escreveste, numa carta, umas sem vergonhas.
Vê lá que eu nem queria acreditar. A TI Aninhas, que é cá uma coscuvilheira, pediu ao primo que trabalha aí em Lisboa para descobrir se era verdade.
Sabes lá: o Ti Manel da estiva, que é um magano, roubou a carta ao teu namorado.
Maria – nem sabes a vergonha por que estamos a passar. Ainda se fosses um rapaz… mas logo uma menina tão bem educada que fez a comunhão e tudo
Aproveito para te mandar uma cópia da carta que o barbeiro copiou.
Vê lá se a escreveste, pois quero desmentir o povo.
Desculpa a letra mas o Ti António barbeiro cortou-se na navalha.
Por hoje não tenho mais para te dizer. Espero a tua resposta na volta do correio.
Beijos da tua mãe

Maria Desculpa a letra e não ligues tudo vai passar.
Ouvi dizer na Rádio Moscovo que a PIDE vai ser corrida pelos comunistas e que as mulheres irão votar.
Por favor queima a carta e manda-me um frasco de “Pitralon” que depois pago.
Este que se assina
António Barbeiro.

(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
Rogério Martins Simões.

P.S:
Estes desenhos da alma foram construídos a partir de um comentário que escrevi directamente a um texto, lindo de amor, que a amiga Maria, do antigo blog “Cumplicidades” escreveu.
Mas a Maria já respondeu! E escreveu à sua mãe uma linda carta.
Afinal porque estava na Cidade e não se preocupou com as “linguareiras”

Resposta da Maria na volta do correio
Mãe, Sim estou apaixonada. A carta que te chegou às mãos, minha querida mãe, fala de um amor imenso, puro e que me faz tão feliz. Por isso minha mãe te peço, fica feliz por a tua filha conhecer o amor, por a tua filha se viver em felicidade.
Sabes mãe, não conheço outra forma de viver que não através dele, e isso minha mãe, aprendi contigo. Por isso te peço, ignora o povo, e não sintas nunca vergonha. O amor não se vive dela. Nada do que consta nessa carta são sem vergonhas, minha mãe.
Lê, repara em cada palavra, em cada sentir que elas revelam, não é isso que é a vida minha mãe?
Não é assim que deveríamos todos viver, no amor? Acredito que se todos se vivessem nele, saberiam compreender, e com toda a certeza o mundo seria muito mais humano, estariam todos muito mais disponíveis para os outros. Não concordas? Não desmintas, mãe. Confirma que foi a tua filha que a escreveu. E não ligues à voz do povo, o importante não é que saibas que a tua filha, está bem? Da filha que te ama…
(Resposta escrita por Maria Branco, Blog Cumplicidades, a quem agradeço)

Mas a Maria esqueceu o “Petralon”, para a barba, que o Ti António Barbeiro pediu.
Mas o bom António quando a carta chegou já não a leu.
O narrador volta a chamar pelo poeta

Aos Homens grandes
O António que escreveu as cartas à Maria era um homem notável: barbeiro de profissão, médico-enfermeiro nas horas vagas.
António foi buscar o saber nos velhos livros de medicina, e, porque era letrado – poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever – lia e escrevia as cartas do povo que não sabia ler nem escrever.
Mas o António “Barbeiro” gostava de ouvir!
(Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!),
Mal tarde tardasse a noite, pé ante pé, como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho e de novo sintonizava a Rádio Moscovo.
António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e se no silêncio das quatro paredes a telefonia emitisse uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não se ouvir:
– Não viesse por ali algum “bufo” para o denunciar e agente da polícia política para o levar.
Mas o “Barbeiro” que sabia tanto procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam.
Foi assim que ouviu dizer, aos comunistas, que iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar
Talvez por isso, o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia abusivamente nas entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas.
Certa noite de intensa tempestade o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo!
Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém!
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
À Maria Branco o meu agradecimento por completar este diálogo.

Rogério Martins Simões.
(Homenagem póstuma ao Ti João Barbeiro da Póvoa, amigo de meu pai e que ainda conheci)
(Esta história foi continuada no Brasil por Milton Ribeiro)

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