Se, após Kleber Mendonça Filho fazer o notável O Som ao Redor, seu próximo filme já era aguardado, a curiosidade tornou-se ainda maior depois que ele e um grupo de atores de Aquarius ergueram cartazes denunciando o golpe parlamentar brasileiro em pleno Festival de Cannes, minutos depois da extinção do MinC.
Como tem sido comum, o governo reagiu tentando atrapalhar o filme da forma mais tosca — aumentando sua classificação etária. Para completar, um dos porta-vozes do novo governo, a revista Veja, através de seu colunista Reinaldo Azevedo, aconselhou os leitores a que boicotassem a obra. Foi como jogar oxigênio na fogueira. Houve sessões lotadas em Porto Alegre em que o filme foi aplaudido no final. Observem o cartaz de divulgação abaixo, onde Azevedo é citado. Parece piada, mas a condenação de Veja já é usada como mérito.
Com esta divulgação, Aquarius levou cerca de 55 mil pessoas ao cinemas em seus primeiros quatro dias de exibição. De quinta a domingo, o filme converteu-se na segunda maior abertura de nacional do ano, atrás somente de Os dez mandamentos, onde houve flagrante fraude, com a igreja comprando ingressos para sessões vazias. Só como comparação, O Som ao Redor teve um total de 94 mil espectadores em todo o seu tempo de exibição. Ou seja, em quatro dias, Aquarius já ultrapassou a metade dos espectadores do primeiro longa de Mendonça.
É claro que os cinéfilos estavam indóceis para assistir logo o filme, mas 55 mil assim de cara é certamente resultado da tentativa de boicotar a produção. Que é excelente.
Os dois longas de Mendonça têm pontos de contato. São filmes que partem do específico para o geral. Não parece haver preocupação em fazer um filme político, mas de focar em situações comuns aos brasileiros. Só que a identificação é tão grande que somos levados a pensar nos motivos para o que vemos. A superfície é sorridente, mas a base é formada por desigualdade, tensão e violência. Para um filme brasileiro ser político, não precisa mostrar deputados corruptos, pois suas cópias fiéis estão em toda parte. Seus modus operandi estão dentro dos condomínios e por toda sociedade. Então, qualquer filme honestamente naturalista acaba por esbarrar nas relações sacanas entre classes sociais e, na tela, tudo fica potencializado, claro e absurdo. E o filme acaba tendo força política, de crítica.
Não vou passar spoilers, apenas a situação. Clara (Sônia Braga) é uma jornalista aposentada. Viúva, vive no Ed. Aquarius, de frente para o mar da praia de Boa Viagem. É uma construção bonita, antiga e baixa em zona valorizada, dessas que você sabe que vão sumir quando uma construtora comprar todos os apartamentos para botar um monstro enorme no lugar. E este momento já chegou para o Aquarius, só que Clara nega-se a vender o apartamento que é há décadas da família.
O filme foi feito com apenas R$ 3,3 milhões e não abandona nossos pensamentos após a sessão. Mendonça é engenhoso: para compor o ambiente de uma jornalista presumidamente ex-crítica musical, Kleber faz com que Braga ponha discos e mais discos para tocar — sempre vinis. São canções que fazem parte de nosso referencial. Como escreveu Tarkovski em Esculpir o Tempo, “o cinema pode ser entendido como a capacidade de registrar o tempo através de signos exteriores e visíveis, identificáveis aos sentimentos”. E o que marca mais afetivamente o tempo do que as canções?
Sorridente e cruel, a pressão para Clara se retirar vai crescendo. O roteiro se esbalda em mostrar várias facetas da personagem principal e de como sua vida é complementada pelo local onde vive. O apartamento faz parte do modo de vida de Clara. A atuação de Sônia é esplêndida. Tranquila, sem grandes rasgos, ela dá tom poético à firmeza e ao mal-estar de Clara. Tudo o que ela faz, as festas, as reuniões com amigos, o sexo, ajudam para que compreendamos sua resistência contra um velho conhecido nosso, o medo.
Filmes não são teses ou representações exatas, mas é curiosa a forma como Clara e a construtora fazem parte do mesmo balaio. Ela diz que dinheiro não importa porque tem a aposentadoria e a renda de cinco outros apês. Ou seja, o conflito é entre um membro da elite — uma rentista — e uma empresa, o que torna ainda mais burra a resistência de certa direita.