Durante minha adolescência e após, quando era um estudante universitário com bastante tempo livre — ou, como diria Kafka, com mais energia do que necessidade de produzir –, passei um longo tempo lendo clássicos. Houve alguns autores que ataquei de forma sistemática, pois minha expectativa a seu respeito era muito alta. Foi o caso de Dostoiévski. A leitura de todas as suas obras em ordem cronológica constituiu-se numa experiência inesquecível. Como literatura e visão de mundo, foi algo arrebatador, chocante mesmo. Ele era um escritor… diferente, mas eu não imaginava o motivo disto. Se a aventura de lê-lo jovem nos causa profundas marcas emocionais, também tolhe-nos, pela inexperiência, a análise das razões de tal assombro.
Após este período, já aos 24 anos, li um livro que investigava os procedimentos ficcionais do escritor russo e aquilo que neles havia de original. Problemas da Poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin, é uma obra complexa, mas que vale o investimento de tempo, pois analisa o tratamento que o autor dá a cada ponto de sua literatura. Procurarei resumir um dos capítulos deste livro: A Idéia em Dostoievski, pois em minha opinião, nele está descrito o que há de mais surpreendente em sua obra e, talvez, o que mais seduz seus leitores.
Primeiramente, Bakhtin nos fala de Sócrates e sobre a natureza dialógica da idéia. Segundo o grego, o habitat natural das idéias é diálogo. A idéia internalizada é algo inútil e morto; porém, se a mera divulgação de uma idéia já a altera pelas limitações da linguagem e de quem a expressa, imaginem as transformações que nela ocorrem quando em choque com outras. O diálogo socrático influenciou tanto Dostoievski que ele direcionou sua arte no sentido de tornar-se principalmente um regente de personagens, retirando de seu texto a voz onisciente (que tudo sabe) do autor. Seu objetivo era o de deixar suas criaturas livres e de colocar-se à altura delas, nunca acima. Para fazer isto, o escritor tinha de converter seu pensamento numa arena na qual as diversas vozes do romance lutavam, sofriam, amavam, decidiam e se debatiam, sempre com lógica interna e verossimilhança – mas sem a aparente mediação do autor. Não é fácil. Com esta disposição, Dostoiévski coloca-se como um criador de biografias pessoais e de situações que falam simbolicamente por si mesmas; mas que, pronto isto, parece deixar seus personagens livres, agindo e opinando de forma independente, enquanto anota o que dizem.
A tal projeto artístico, a esta quase insanidade de tornar sua obra uma arena, temos que acrescentar o fato de que Dostoiévski dá razão a todos e a ninguém, pois NUNCA EMITE JULGAMENTO DEFINITIVOS. O escritor-voz-da-razão, o que elabora belas teses e aforismos infalíveis foi misturado a seus personagens. Dostoiévski não é divino nem definitivo. O realismo o obrigou a isto.
A partir de Crime e Castigo – isto significa eliminar apenas as obras da juventude – só se conhecem as idéias de cada personagem, não a clara opinião do autor sobre elas. E muito menos se saberá quem o representa dentre os personagens. Ele não nos deixa pistas claras, pois permanece não distante, mas eqüidistante. Some-se a isto uma imensa capacidade de observação, um talento artístico ímpar e o fato do homem ser um manancial de preocupações éticas muito a frente de seu tempo, e estaremos no caminho de entender porque Dostoiévski é tão apaixonante.