Quando vi Gritos e Sussurros pela primeira vez, tinha quinze ou dezesseis anos. Nunca pude esquecer a atmosfera do filme, o monte de coisas inéditas que ele me apresentava e meu choque à saída do velho Avenida. Sentia um misto de entusiasmo pela realização de uma obra daquele porte e de amargor pelo realismo do filme. Era como se me dissessem finalmente: “o cinema pode ser algo mais interessante do que tu pensas”. Me deem um desconto, não tinha visto nada parecido antes.
É um filme sobre duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) que temem, lamentam e ao mesmo tempo desejam a morte da terceira irmã Agnes (Harriet Andersson). Como quarta personagem principal, há a devotada criada de Agnes: Anna (Kari Sylwan). Improvisando, vou tentar colocar em tópicos fingidamente organizados o que penso sobre o filme depois de tê-lo visto muitas vezes.
As cores. Basicamente, há apenas três cores em Gritos e Sussurros: o vermelho das paredes e o branco e preto que as mulheres vestem. Ou seja, um filme que retrata a morte, o amor, o sexo e o ódio, passa-se em uma casa de paredes e chão vermelhos. Bergman disse não saber exatamente o motivo, afirmou que talvez fosse porque imaginava vermelhas as paredes do útero, assim como as da alma. Deve haver alguma verdade no senso comum que considera tal cor a representação da paixão e da raiva. O que interessa dizer é a saturação de vermelho no filme me hipnotiza, deixando-me apreensivo desde o lento início do filme.
O rosto é o palco. Bakhtin escreveu que o diálogo é o real habitat das ideias, é o local onde elas se transformam e que a mera expressão de uma ideia já bastaria para a alterar. Isto demonstra a importância da interação num mundo polifônico onde nada pode ser visto isoladamente. Bergman prova que o habitat da emoção do ator é seu rosto, fazendo com que vejamos a tela cheia de enormes rostos que falam e, principalmente, ouvem, reagindo à palavras quase sempre antagônicas. A câmara está sempre muito perto, mostrando bocas, ouvidos e olhos. A propósito, notem o título de alguns filmes de Bergman: “O Rosto” (Ansiktet), “Face a Face” (Ansikte mot ansikte) e “Persona” (máscara em grego). O homem era fascinado por rostos! O escritor Fernando Monteiro — imenso admirador de Bergman — reivindica para Joseph von Sternberg a compreensão da força da face humana na tela. Sternberg chegou a escrever: “O cinema é a ARTE DO ROSTO”.
A seguir, elas falarão de suas infâncias.
O ódio e o afeto. A agressividade permanece em estado de latência por grande parte todo o filme, apenas explodindo aqui e ali. Mesmo o momento em que Karin e Maria se acarinham é resultado de lembranças invocadas durante a reparação a mais uma briga. Agnes é dócil e solitária enquanto suporta a doença que a vencerá, Anna é a criada fiel, amorosa e adequada à resignação de Agnes, Karin é ressentida e insatisfeita e Maria é fútil e não tem por hábito sentir remorsos. Deus é silencioso e invisível como sempre e até o pastor acaba confessando sua falta de fé: “Encomendo-a a Deus para livrá-la da angústia causada por esta terra sombria e suja, onde vagamos sob um céu vazio e cruel”.
O puro ódio. A cena em que Karin mutila seu sexo com um caco de vidro — do copo que ela antes quebrara durante uma refeição nada interessante com o marido –, passando após o sangue em seu rosto… Bem, não preciso continuar.
O filme baseia-se no mundo feminino e mais. Os homens são inteiramente inúteis. O médico e o pastor falham em sua tentativa de oferecer qualquer conforto à Agnes e os maridos de Karin e Maria não compreendem suas necessidades emocionais. Mas elas também não são apresentadas como anjos. Todas, talvez à exceção de Anna, são autênticos monstros. Agnes tem uma doença inexorável que a devora internamente; Karin odeia e odeia; Maria leva seu marido à tentativa de suicídio com suas traições e Anna falha com sua filha biológica e com Agnes, apesar do toda sua capacidade de doação. Ou seja, o filme é uma representação de pessoas normais.
As cenas clássicas. Agnes — já morta, em cena assustadora — chama Karin e Maria, sendo recusada por ambas; então Anna a abraça em imitação à Pietà de Michelangelo (abaixo). A seqüência em que Karin a Maria rememoram sua intimidade quando crianças (foto com legenda), tocando uma à outra e o final do filme são absolutamente inesquecíveis (última foto).
A câmera, o tempo e a música. A posição da câmera sempre fragmenta o corpo de Agnes ou a flagra em posições desconfortáveis, sugerindo a doença que destrói seu corpo ao longo do tempo, mostrado em vários relógios na sua faina de registrar o tempo passado. Ouçam as raras intervenções musicais, dedicadas a Bach (com Pierre Fournier, como lembrou Moacy Cirne) e Chopin, plenas de significação.
A fotografia do mestre Sven Nykvist: desnecessário comentar.
Finalizando, diria que Gritos e Sussurros é uma obra de extrema audácia dentro de uma estrutura clássica. Até mesmo a cena final, quando Anna abre o diário de Agnes e lê em voz alta um trecho sobre os tempos de felicidade das irmãs, acompanhado das imagens da foto abaixo, isto é, inclusive no único momento em que saímos da atmosfera de claustro do filme, a sensação é de estranheza, por tudo o que aconteceu antes. A presença da belo e rápido final, por mais convencional que nos pareça, causa espanto.
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