O que eu escrevo hoje dialoga vagamente com o artigo de Paulo Gleich, publicado há algumas horas pelo Sul21. Ontem à noite, soube que ia passar o excelente Motores Sagrados (Holy Motors), de Leos Carax, num desses canais Max da Net. Eu simplesmente precisava rever este filme tão surpreendente quando crítico em relação ao cinema atual. Seguindo a trilha do prefixo “re”, digo que rever e reler são as formas de reter conhecimento e impedir a fuga de referências de nosso cérebro. É melhor apelar para os clássicos, mas um belo filme contemporâneo, como Holy Motors, faz o serviço.
Tudo começa com um cinema lotado, onde todos dormem. Há projeção e som, mas todos dormem, estáticos. É exatamente o que sinto muitas vezes ao ver a produção comercial norte-americana e a da Globo Filmes. Enquanto a gente vê, já vai inserindo tudo o que nos entra pelos olhos e ouvidos no escaninho “Para esquecer”. A gente vê como se estivesse dormindo ou, mais consistentemente, perdendo tempo. Pois bem, voltemos ao filme de Carax. Nele, o Sr. Oscar — vivido por Denis Lavant, ator onipresente nos filmes do diretor — tem um estranho trabalho. Anda de limusine por Paris, recebendo ordens para atuar em diversos papéis que lhe são passados por uma estranha organização. Por que lhe são dadas aquelas ordens? Quem o paga? Quem é sua plateia? Onde estão as câmeras? Qual sua verdadeira identidade? E Oscar percorre a cidade cumprindo uma série de compromissos sem nexo entre si, onde humor e drama não estão ausentes. Há uma cena de dança, outra em esgotos e cemitérios, há outra em o Sr. Oscar morre de forma tocante (e subitamente acorda para o próximo compromisso), em outra comete um assassinato e assim vamos visitando diversos gêneros cinematográficos que deságuam numa intrigante cena final, onde várias limusines comentam que o mundo não quer mais emoção nem surpresas. O que Carax nos mostra em Holy Motors é uma super-fetação de emoções.
Extremamente bem acabado, cheio de cenas de virtuosismo arrebatador, Holy Motors carece de unidade. Esta é sua maior qualidade. Michel Piccoli, chefe de Oscar, aparece em uma cena e pergunta o que o leva a seguir fazendo aquele trabalho. A resposta é simples: “A beleza do gesto”. Se carece de unidade, o filme tem muito humor, o humor anárquico de que tanto gosto. Holy Motors só pode ser compreendido em cada um de seus módulos e na tese geral de Carax de que o cinema de nossos dias… é muito chato. Ele tem razão. Na cena final, todas as limusines da “empresa Holy Motors” entram numa garagem e travam um diálogo antes de dormir. O filme foi aplaudido por dez minutos após ser apresentado em Cannes 2012. Claro que não levou nada. Por algum motivo, o humor e o sarcasmo passam ao largo das comissões julgadoras, que talvez se julguem desprestigiadas se premiarem algo que não parece sério, mesmo que seja seríssimo.
Vi este tremendo filme pela primeira vez em 2013, no saudoso Instituto NT. Fui sozinho. Estava me separando de Pâmela. O notável é que a ligação de Holy Motors é com o NT e com o fato de, coisa rara, eu tê-lo visto sozinho. Em minha mente, a obra ficou Pâmela-free. Ótimo.
Enquanto escrevo isso, o Latuff me chama para discutir a trilha sonora de O Iluminado. Falamos de meu ídolo Bartók. Frase do Latuff: “Alguns artistas têm fácil acesso às sombras, caso do Kubrick”. Bartók também tinha, Latuff. Elegemos o filme de Kubrick, mais Psicose e O Exorcista como os melhores filmes de terror que vimos. Nada original. Gostaria agora de acrescentar um mais recente: O Silêncio dos Inocentes.