Publicado em 18 de maio de 2015 no Sul21
O anunciado fim da Ipanema FM e o verdadeiro muro das lamentações que se tornou a caixa de comentários da brevíssima matéria era o pretexto óbvio para uma entrevista com Katia Suman. Porém, a ex-coordenadora e principal apresentadora da legendária emissora não é apenas seus quase 20 anos de Ipanema, é também os 16 anos de Sarau Elétrico, e os 5 de rádio Elétrica, além tocar vários projetos paralelos como o do Cais Mauá de Todos.
Katia, que se autodenomina uma “sub celebridade porto-alegrense” é a filha do zagueirão gaúcho Gago. O motivo no apelido é que ele gaguejava na hora das entrevistas, problema que ela não herdou. Ela nasceu em Salvador quando seu pai jogava no Vitória (BA) e agora está escrevendo um livro sobre seus anos na famosa 94.9. Mas sua entrevista ao Sul21 não se limita à nostalgia, focando também o modo como se faz o rádio tradicional, as novas formas e a série de projetos que Katia leva em frente. Tudo isso acompanhado das boas histórias de quem pode dar consultoria de como viver e trabalhar sem dinheiro.
Sul21: Como começou a tua história na Ipanema FM?
Katia Suman: Eu tinha voltado de uma temporada de 7 anos em São Paulo, tinha decidido não mais trabalhar com publicidade (fui redatora) e estava tentando achar meu rumo. Nesse processo havia sempre um rádio ligado, porque eu sempre gostei de ouvir. Descobri a rádio Bandeirantes, que era muito melhor do que qualquer emissora paulista, com um excelente repertório musical. E uma fala tão coloquial, tão verdadeira, tão fora dos padrões radiofônicos, fiquei realmente muito impressionada. Pensei que eu poderia fazer um programa nesta rádio. Elaborei um roteiro, levei para o Nilton Fernando e ele me recebeu, gostou da ideia, gostou do meu perfil. Pouco tempo depois, quando a rádio passou a se chamar Ipanema, eu comecei, ancorando o horário da noite, das 20h à meia-noite.
Esse negócio de “música de trabalho” que a indústria fonográfica inventou, não colava com a gente.
Sul21: Como a equipe (principais apresentadores) foi formada? Como o pessoal chegava?
Katia Suman: Quando eu cheguei o grupo era formado pelo Nilton, diretor, Mauro Borba, locutor da tarde, a Mary Mezzari, redatora. Tinha também o Ricardo Barão que fazia o Central Rock. A interação da rádio com os ouvintes sempre foi muito forte, muito antes da internet os ouvintes realmente tinham voz na Ipanema: eles participavam, opinavam, davam dicas, levavam discos e nos mantinham informados de tudo o que estava rolando pela cidade. Era já uma rede. Pois bem, em 85 eu criei o Clube do Ouvinte, programa que, como o nome diz, os ouvintes faziam. Eu explicava como fazer o roteiro e eles iam lá apresentar. Houve programas memoráveis, muita gente legal se dispôs a ir ao estúdio, compartilhar seus discos e artistas preferidos. Alguns que apresentaram esse programa acabaram entrando para a equipe da rádio: a Nara Sarmento, por exemplo, o Porã, o Cagê e o Cláudio Cunha. O Alemão Vitor Hugo começou como redator e depois virou locutor.
Sul21: Como se deu o crescimento da rádio?
Katia Suman: Era a rádio certa na hora certa. O país vivia o processo de redemocratização, estava saindo do período tenebroso da ditadura militar. Havia no ar um desejo de liberdade, de exorcizar toda aquela opressão. É nesse momento que surge a famosa cena dos anos 80: Barão Vermelho, Paralamas, Titãs, Blitz, Ultraje, Camisa de Vênus e tantas outras. E aqui TNT, DeFalla, Replicantes, Engenheiros, Taranatiriça, Cascavelettes e tantas outras. A sintonia entre o público e nós, que fazíamos a rádio, era total. Falávamos a mesma língua, tínhamos os mesmos interesses, íamos aos mesmos shows, assistíamos aos mesmos filmes, frequentávamos os mesmos bares, líamos os mesmos livros. Era uma comunicação muito horizontal, éramos, sem saber, já um coletivo. Não era uma relação “rádio aqui e público lá”, como costuma ser. A rádio falava de tudo: política, ecologia, economia, artes, drogas, religiões, tudo! Nunca subestimamos a inteligência da nossa audiência. Num contexto em que as outras rádios voltadas ao público jovem tinham aquele discurso padrão, aquela locução alegre, acelerada e superficial, aquele listão de músicas reduzido e predominantemente internacional, a diferença era gritante. Com o tempo, as outras rádios passaram a dar atenção também a essa nova cena que surgia e a incorporar algumas das nossas sacadas.
Sul21: Havia jabá ou a liberdade era total?
Katia Suman: Liberdade total. Nunca nos submetemos. Inclusive uma das características da rádio era rodar praticamente todas as faixas (era no tempo das faixas) de um disco. Esse negócio de “música de trabalho” que a indústria fonográfica inventou, não colava com a gente. E a gente se esmerava em oferecer o que havia de melhor na música. Não havia internet, as gravadoras deixavam de lançar muita coisa aqui no Brasil. Então era a “caça ao tesouro”: alguém viajava e trazia de fora, ou conseguíamos em lojas de discos importados, ou os ouvintes nos levavam e a gente gravava. Enfim, era uma batalha. E a gente rolava de tudo: rock, funk, blues, jazz, mpb, bossa nova, música erudita, rap, hip hop. Sobre jabá, quem se interessar, minha dissertação de mestrado é sobre o tema e está disponível aqui.
Naquele momento a nossa voz era mais forte que a da RBS.
Sul21: Qual foi o papel da emissora em relação ao rock gaúcho?
Katia Suman: Foi muito importante. O fato de a rádio rodar os artistas, dar visibilidade a eles, ajudou a criar público. Começaram a surgir várias bandas, vários estúdios de ensaio, estúdios de gravação, casas noturnas com espaço para shows, um circuito de shows pelo estado, enfim, uma cena. As bandas gaúchas num dado momento, lotavam o Gigantinho.
Sul21: Tu te tornaste uma rara celebridade porto-alegrense fora do mainstream da RBS.
Katia Suman: Sub celebridade, né? Mas sim, todos nós ficamos muito conhecidos. Naquele momento a nossa voz era mais forte que a da RBS.
Sul21: O resultado financeiro da Ipanema FM era aceitável ou ficava abaixo do esperado?
Katia Suman: Olha, não só era aceitável como chegou a ser excelente em alguns momentos. Nos anos 80 e 90 a rádio cresceu muito em audiência e faturamento. Todo mundo que tinha como alvo o público jovem, anunciava na Ipanema.
Sul21: E a tua primeira demissão na Ipanema? Foi mesmo por “contenção de custos”?
Katia Suman: Foi o que me disseram. Deve ter sido mesmo. Se foi outro o motivo, nunca soube e acho que nunca saberei.
Sou entusiasta de primeira hora da internet e de toda essa revolução que está em curso.
Sul21: O teu período de madrugadão — programa das 2h às 6h — na Atlântida equivaleu a uma temporada na Sibéria?
Katia Suman: Mais ou menos. Mas por outro lado aprendi a operar uma mesa de áudio, aprendi a falar no ar, inventei um jeito de me comunicar. Valeu. Esse estágio foi antes de eu entrar efetivamente para a Ipanema.
Sul21: É mesmo? Saíste de lá por ignorar o set list programado para tocar na rádio, fazendo a tua própria seleção musical?
Katia Suman: Sim. Eu ficava falando a noite inteira, lia e comentava notícias e rodava a programação musical que me deixavam. Acho que os porteiros de prédios, seguranças e taxistas que ficavam acordados de madrugada, gostavam. Eu comecei a enjoar da programação que era sempre a mesma, só alterava a ordem das músicas. E comecei a dar uma incrementada. Claro que o programador musical não gostou.
Me orgulho da rádio Ipanema ter sido a primeira emissora gaúcha a ter um site (e a segunda do país) e isso aconteceu na minha gestão.
Sul21: Antes de voltar à Ipanema, durante tua época na TV Com, criaste a rádio Elétrica na web. Durante um período, as duas rádios foram concomitantes, correto? Qual é o caráter deste projeto?
Katia Suman: A rádio Elétrica surgiu da minha necessidade de compartilhar o que eu leio, descubro e aprendo. É um lance meu, uma necessidade. Desde o tempo em que eu fazia a madrugada da Atlântida, eu tinha um caderno em que, durante o dia, anotava notícias e reportagens e trechos de livros e coisas do gênero para falar no ar. Então, quando eu fiquei sem rádio — nessa época eu estava na TV Com –, criei a Elétrica. Em dezembro de 2010. No começo eu fazia sozinha, 2 horas por dia, ao vivo, rolando música e falando. Aos poucos foram entrando pessoas, vários programas foram criados e transmitidos. Algumas pessoas saem, outras entram e assim segue. Eu fiz a escolha de uma a uma das milhares de músicas que rodam. E hoje apresento o Talk Radio mais ou menos ao meio-dia, de segunda a sexta, cada dia conversando com uma das pessoas de um grupo muito legal, de diversas formações e profissões. Participam comigo, ao meio-dia, a psicanalista Christiane Ganzo, o produtor cultural Fernando Zugno, a médica Cinthya Verri, o escritor e professor Diego Grando e a especialista em sustentabilidade, Fabíola Pecce.
Sul21: A rádio Elétrica dá alguma grana ou tu pagas para tê-la? Essa migração já faz parte de uma percepção tua de que não dá mais nas FMs e AMs da vida?
Katia Suman: Até agora eu paguei o custo da rádio que inclui serviço de streaming, hospedagem de dados e equipamento. Agora comecei uma parceria com um apoiador (obrigada, Newkeepers) e esses custos serão bancados. Sou entusiasta de primeira hora da internet e de toda essa revolução que está em curso. Me orgulho da rádio Ipanema ter sido a primeira emissora gaúcha a ter um site (e a segunda do país) e isso aconteceu na minha gestão. Em 1997, tínhamos uma webcam transmitindo do estúdio da rádio. Quase ninguém assistia, pois eram poucos os que já estavam conectados. Mas nós já estávamos lá. Portanto a rádio web é quase um caminho natural para mim. Me agrada muito esse espírito do it yourself da internet.
Há uma diferença primordial da web para o FM, que é a possibilidade de ouvir o conteúdo a qualquer momento.
Sul21: Há também o Sarau Elétrico, de longa vida para um projeto literário. Como surgiu e ganhou consistência?
Katia Suman: O Sarau Elétrico também está dentro daquela lógica de compartilhar informações, no caso, informações de alta cultura, de intelectuais como os professores Luís Augusto Fischer e Cláudio Moreno. Atualmente, enquanto o Fischer está fora, o professor Sergius Gonzaga entrou para a trupe, que tem ainda o poeta e professor Diego Grando e a querida Claudia Tajes. Ainda nos primórdios da Ipanema, eu tinha por hábito ler trechos de livros. Sempre li bastante e cheguei a cursar Letras, embora não tenha concluído. Eu pensei em fazer um evento aberto, público, para leituras e conversas. Convidei o Fischer e o Frank Jorge. Eles toparam e começamos. E lá se vão 16 anos. No decorrer do período fomos criando uma dinâmica, um jeito, um borogodó qualquer que funciona. A atividade é muito prazerosa, aprendo muito. E nos divertimos também.
Sul21: Como potencializar audiências em tempos de narrowcasting? Pois uma radioweb é radicalmente diferente das tradicionais AMs e FMs (broadcasting).
Katia Suman: Ah, pois é. Eu não sei como potencializar audiência e nem chego a pensar muito sobre isso. Talvez devesse. Sim, rádio web é bem diferente. Não vejo sentido em botar só música, por exemplo, já que com esses serviços tipo spotify e deezer é possível ouvir música da melhor qualidade de qualquer gênero. Sem falar nas milhares de rádios espalhadas pelo mundo todo. Por outro lado, quem ouve a rádio Elétrica deve gostar da minha curadoria musical, porque tudo o que roda foi escolhido a dedo por mim. Estou constantemente atualizando o repertório. Mas o que faz mais sentido pra mim é compartilhar ideias, trazendo pessoas interessantes para juntos pensarmos o mundo que construímos. Eu acho também que há uma diferença primordial da web para o FM, que é a possibilidade de ouvir o conteúdo a qualquer momento. Por isso, os programas da rádio são todos arquivados em podcast.
Parece que a faixa FM já está virando uma imensa AM
Sul21: Que futuro tu vês para as atuais FM e seus modelos?
Katia Suman: A migração das AMs para a faixa de FM está acontecendo antes mesmo do prazo estabelecido pelo governo. E de uma maneira meio esquisita, que é duplicar o sinal, ou seja, transmitir o mesmo conteúdo nas duas frequências. Com o mesmo custo, o empresário tem duas fontes de faturamento. Então parece que a faixa FM já está virando uma imensa AM, ou seja, notícias, futebol e comunicação bem popular. Rádio FM para público jovem, acho que já era. Adolescentes nem conhecem o objeto rádio, não sabem como ligar (não é touch) nem para que serve. Tudo o que eles precisam em termos de informação e música está na internet.
Sul21: Tu tens te envolvido em projetos e tomado posições claras em relação à cidade. Há a Festa da Leitura e o coletivo Cais Mauá de Todos, por exemplo.
Katia Suman: Na Festa da Leitura eu participei muito discretamente, sugerindo algumas atrações para a programação e fazendo assessoria de imprensa.
Daqui a pouco vou dar consultoria de como viver, trabalhar e produzir sem dinheiro.
Sul21: E o resto?
Katia Suman: Atualmente eu estou fazendo um doutorado em Letras e o meu trabalho final será um livro sobre a Ipanema, feito a partir de relatos feitos à época, por todos os integrantes da rádio. Eram cadernos que ficavam no estúdio e ali anotávamos tudo o que acontecia, nos comunicávamos internamente. Era o nosso e-mail. Eu tenho cadernos de 1984 a 1997. É um belo documento. Também quero finalizar um documentário que comecei em 2013, quando tomei contato com uma cena de festas que acontecem nas ruas de Porto Alegre. São ocupações do espaço público, bonitas, com arte, alegria. Gente jovem reunida. Durante 2013 e 2014 captamos mais de 40 horas de imagens dessas festas, entrevistei um monte de gente. Estou buscando formas de finalizar. Tentei o Fumproarte, mas não rolou. Estou esperando agora o resultado de um edital nacional. Se não rolar vou fazer sem dinheiro mesmo, como tudo foi feito até aqui. Eu daqui a pouco vou dar consultoria de como viver, trabalhar e produzir sem dinheiro.
Sul21: Como surgiu a necessidade de te envolveres com as questões da cidade e da orla? O fato de seres bastante conhecida facilita e dá maior visibilidade às causas?
Katia Suman: Eu era daquelas pessoas que andava sempre de carro. Fazia todos os meus trajetos de carro. Mas, à medida que o trânsito começou a ficar muito denso e travado, eu passei a me sentir tão incomodada que fui mudando a maneira de me locomover pela cidade. Passei a caminhar muito mais do que antes, a usar mais transporte público e a andar de bicicleta. A partir desse contato mais próximo com as ruas da cidade — no carro, a gente está numa bolha –, eu comecei a tomar consciência da realidade da cidade, do estado de abandono das ruas, da deterioração dos espaços públicos, da humilhação a que os pedestres são submetidos quando esperam longos minutos para terem direito a alguns poucos segundos para vencer ao menos uma faixa de uma avenida. Paralelo a isso, comecei a fazer um programa chamado Cidade Elétrica com a escritora Carol Bensimon e o arquiteto João Marcelo Osório. (Na rádio Elétrica, claro – tem os podcasts lá). Entrevistamos muitas pessoas envolvidas com urbanismo, eu passei a pesquisar o assunto, li livros, vi palestras, fui me informado. E quando a gente se informa e cai na real, não tem como não se envolver. A gente vive hoje uma situação inédita na história do planeta terra: pela primeira vez a população que vive em cidades é superior a que vive no campo. E os problemas que a gente costuma encarar como “globais”, como mudanças climáticas (80% da emissão de gases que causam o aquecimento global vem das cidades) ou crise energética (75% do consumo global de energia acontece nas cidades), são em muitos aspectos, problemas urbanos, problemas das cidades. Eles não serão resolvidos se as pessoas que vivem nas cidades não se envolverem ou se responsabilizarem.
Nós precisamos de uma revolução de participação. E rápido!
Sul21: E Porto Alegre, neste contexto.
Katia Suman: Pois é. Vou dar um exemplo dessa falta de envolvimento: Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira a ter coleta seletiva de lixo. Desde 1990 há esse tipo de coleta e hoje toda a cidade está contemplada. 100%. Mas qual a porcentagem da população que efetivamente separa os seus resíduos? Apenas 25%!!!!! O que acontece com os outros 75%? Eles não se responsabilizam, eles não se envolvem. Eles não se interessam pelo assunto. Nós precisamos de uma revolução de participação. E rápido!
Sul21: E o movimento Cais Mauá de Todos?
Katia Suman: Aproveitando o espaço, eu convido o distinto leitor a conferir a página facebook.com/caismauadetodos e participar da discussão que nós estamos propondo. Somos um grupo de pessoas que, a exemplo de mobilizações passadas — como a que evitou que o Parcão virasse um lote de 40 prédios nos anos 50 e a que evitou a derrubada do Mercado Público nos anos 70 –, está lutando para que não se desfigure uma área de imensa importância histórica da cidade. Seguramente a mais importante. Porto Alegre só existe por causa do porto, que aliás dá nome à cidade. Se não fosse o porto, a capital seria Viamão, como de fato foi. Obviamente que nós não queremos que aquela área continue abandonada e degradada. Nós queremos sim progresso e desenvolvimento, geração de empregos, tudo isso. Mas não aceitamos shopping e torres naquela área da cidade. Queremos envolver a população nessa discussão.