O ideal seria que todos os violinos desta cidade e de cada aldeia fossem cortados em dois. Depois, seriam pendurados em salgueiros, e os violinistas que tocam as danças seriam pendurados pelas pernas ao lado deles.
De uma publicação religiosa húngara de 1681
Nos filmes de Kusturica são ciganos. Quando estão pedindo no metrô, são romenos. Quando vivem em casas, são “ex-ciganos.” Quando muito pobres, são ladrões. Quando têm bons carros, também são ladrões. A imagem negativa é a do pobre nômade pedinte e sem lei. A positiva é a ser rebelde orgulhoso, livre e… músico, quase sempre violinista.
A música para violino da Hungria, Romênia, Moldávia e adjacências é conhecida em todo o mundo por sua paixão e virtuosismo e, para os não nativos, tal música é sinônimo de fogueira, estrada e ciganos. A música para violino húngara é música cigana? Sim, pois, no mínimo, ela foi muito influenciada. No entanto, dentro do país você encontrará um ressentimento considerável em relação a esse estereótipo e, embora haja muito apreço pela habilidade dos violinistas ciganos, ela é considerada música húngara, não música cigana. Mas a polêmica ainda é quente.
O húngaro Franz Liszt deu o tiro de abertura ao publicar seu livro Os ciganos e sua música na Hungria em 1859. Ele já era conhecido por apreciar a música cigana e pela publicação, em 1853, de suas Rapsódias Húngaras. O que causou ira entre seus conterrâneos foi sua afirmação de que, embora a música tradicional de aldeia na Hungria seja “modesta e imperfeita” e digna de pouco respeito, a música instrumental das orquestras ciganas húngaras é “capaz de competir com qualquer coisa em sua sublimidade e na ousadia de emoção, além da perfeição de sua forma”. Este não era um assunto a ser tratado levianamente. Dificilmente haverá um país tão intensamente patriótico do que a Hungria, e os meados do século XIX foi um período de grande nacionalismo, pois o país tentava, sem sucesso, libertar-se do Império Habsburgo. A música tornou-se o foco deste florescimento do nacionalismo só que, desde os anos 1760, a música húngara esteve em grande parte nas mãos de orquestras ciganas. O que Liszt afirmava era que sem os ciganos, a música húngara seria insignificante, enquanto seus detratores afirmavam que, embora ninguém duvidasse ou deixasse de valorizar a contribuição dos “novos húngaros” — como eram eufemisticamente conhecidos os ciganos –, o que eles tocavam era fundamentalmente música húngara.
Pondo lenha na fogueira, Kodaly escreveu em 1960: A música folclórica húngara não é de forma alguma uma criação dos ciganos, como ainda é frequentemente afirmado como resultado do erro monumental de Franz Liszt. Os anti-Liszt, por assim dizer, acusavam o compositor de nem ter aprendido húngaro em sua vida, de ter passado a maior parte de sua vida no exterior e de, portanto, não estar bem posicionado para comentar com precisão o que compreendia da música folclórica húngara. Faltaria a ele o tal lugar de fala.
Os ciganos viviam na Hungria desde o século XV. Um rei lhes deu liberdade de movimentos em 1423. O século XVII viu a partida dos turcos e a abertura do país às influências ocidentais e da igreja — o que foi particularmente importante para a introdução do conceito de harmonia. Para os músicos nativos de aldeias húngaras, a Reforma da igreja, como em muitas partes da Europa Ocidental, foi sentida como um endurecimento das atitudes em relação à música, dança e prazer pecaminoso geral.
No século XX, com a sofisticação crescente do repertório urbano, um grande abismo começava a se abrir entre este e o repertório rural mais simples, terreno e rústico. Inevitavelmente, alguns intelectuais começaram a considerar o repertório urbano muito longínquo de sua fonte. Foi assim que Bartók, ainda muito jovem e impressionado ao ouvir uma empregada da vizinhança cantando em linda melodia que a maçã vermelha caiu na lama, começou a desenvolver um fascínio pessoal pela música primitiva do interior da Hungria, e iniciou uma busca para coletar o máximo que pudesse. “Nos chamados círculos urbanos de cultura” observou Bartók, “o tesouro inacreditavelmente rico da música folclórica era inteiramente desconhecido. Ninguém sequer suspeitou que esse tipo de música existisse”. Usando uma máquina de gravação cilíndrica Edison, ele começou em 1906 uma série de expedições, gravando e transcrevendo um total impressionante de 10.000 músicas. Muitas delas foram coletadas nas áreas de língua húngara além das fronteiras atuais, como a Transilvânia da atual Romênia. Bartók, junto com seu colega e compositor Kodály, incorporou muitos dos temas, formas e modalidades em suas composições, criando com sucesso uma música que era ao mesmo tempo muito moderna e repleta do que era visto como o verdadeiro espírito da Hungria antiga. Eles trabalharam em conjunto, dividindo sistematicamente entre si as regiões do país e outras regiões de língua húngara para pesquisa e estudo.
Eles também reabriram a controvérsia Liszt, rejeitando a ideia de que a música cigana e a húngara estivessem inextricavelmente ligadas. Ao colecionar melodias, procuravam sempre selecionar materiais que não tivessem sido “contaminados” pela influência cigana. Para citar Sarosi; “Aos olhos de Bartók e Kodaly, o grave pecado dos músicos ciganos desde o final do século XVIII foi servir à moda e ao entretenimento de quem os pagava, intrometendo um decadente repertório urbano mais recente na autêntica cultura popular. ” Essa visão ainda é controversa, até porque no passado a aristocracia húngara patrocinava ciganos e sua música de verbunkos e csardas. Sugerir que o coração da cultura húngara não estava com eles, mas com os camponeses iletrados, é uma ideia estranha, bem polêmica.
Não vamos resolver a questão aqui, é claro. A nobreza europeia, especialmente em países como Rússia, Romênia e Hungria, há muito tem um fascínio pelo romance, pelo mistério e pelo exotismo dos ciganos e têm sido patrocinadores voluntários deles. No século XIX, a Hungria, a maioria da nobreza rural mantinha sua própria orquestra cigana. Não existe um estilo de música cigano único. Pensem na extensão coberta pelo flamenco, pelo jazz cigano de Django Reinhardt, pelo hard jazz / rock romeno de Ivo Popozov, pela música crua de Taraf de Haiduks, por Goran Bregovic, etc.
O que é comum a todos é a grande aptidão dos músicos, adotando sistematicamente a postura de aprender os repertórios locais e, geralmente, aprimorando-os através do virtuosismo, da improvisação e do fato de serem showmen. Como viajantes periódicos, os ciganos têm sido uma força importante na polinização musical, pois além de dominarem o repertório local, podem introduzir técnicas e sabores que parecem misteriosos e exóticos.
Resumido e (muito) adaptado a partir deste texto de Chris Haigh.