O médico informa a Nina sobre sua liberação do hospital nos próximos dias. Ela pensa que aquilo só pode ser resultado de um pedido de Ana. Afinal, o dia de seu aniversário está próximo e é provável que a filha deseje ver a mãe passá-lo em casa. Meu último aniversário, ela diz para si mesma. Não pergunta sobre o significado daquela “alta”, nem quando acontecerá. Permanece longamente em silêncio; depois, pega o gravador, deita-se de lado como lhe foi aconselhado e continua sua história para Ana.
Continuando… Bem, se eu vivia sob alguma oposição em casa, era muito feliz na universidade. Ana, tu conheces Brueghel, não? Há um quadro chamado A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma. Não é bem uma batalha, é antes o encontro de dois grupos, um alegre e bizarro, o outro contrito. Mas o autor não parece simplesmente aprovar a felicidade do primeiro grupo – há até alguns estropiados e pedintes que são ignorados pelos “carnavalescos” -, nem desaprovar a contenção religiosa do segundo. É uma pintura curiosa e eu, naquela época, pensava viver a Quaresma em casa e o Carnaval no Instituto de Letras. Talvez a analogia não fosse feliz porque não é razoável considerar minha relação contigo como parte da Quaresma, mas, enfim, está dito. Obviamente, eu não tinha muito jeito para a contrição e a castidade e fui cada vez mais me aproximando e permanecendo preferencialmente com o grupo carnavalesco.
As caronas de meu professor preferido tornaram-se frequentes — eu o aguardava ou ele a mim e quando algum motivo o impedia de me levar, era avisada com antecedência e vice-versa –, assim como os encontros e idas aos bares com os colegas. Se as caronas significavam uma amizade de natureza um pouco dúbia, os encontros em bares acabaram ganhando grande importância. Sair à noite, beber e rir era uma novidade para mim. Nossa vida quieta em casa era afetuosa e sem incômodos, tu retribuías minha dedicação com sorrisos e amor; porém a ruidosa vida da rua prometia, finalmente, fatos novos. Tratei de manter a Quaresma organizada e emiti repetidos sinais de que precisaria passar mais tempo na universidade. Também providenciei comentários para as caronas que ganhava. O atraente professor Roberto, que depois soube ter vinte anos a mais do que eu, tornou-se “o velho que mora aqui perto e me traz em casa”. Ele morava do outro lado da cidade. Por uma questão profilática, também não fazia questão de ser visitada pelos amigos da faculdade; diferentemente (ou não) do quadro de Brueghel, achava que poderia ser perigosa a introdução do mundo carnavalesco na circunspeção de casa. Os pontos de interseção entre os dois mundos poderiam tornar-se problemas a serem administrados e o máximo de aproximação que admitia era o carro tcheco do professor na frente do edifício. Várias vezes ele brincou que acabaria apanhando do marido ou de um namoradinho nervoso. Nunca respondi se este era ou não um risco real, preferia fazer a mulher misteriosa. Na verdade, acho que inconscientemente criei uma personagem de ficção para meu professor: uma jovem madura, discreta, elegante e delicada (puf!) destinada inexoravelmente a tornar-se uma mulher inteligente, sedutora, culta e ativa (puf!). Investia na personagem em cada contato e é provável que meu objetivo fosse apenas o de satisfazer minha vaidade, pois não projetava o caminho que me levaria a ter um caso com ele. Pensava que ter uma aventura com um homem casado àquela altura seria como me drogar na tua frente ou virar alcoólatra. Seria muito bom tê-lo, mas pouco inteligente. E eu já tinha uma visão prática o suficiente para não considerar novos conflitos como “produtivos”. Claro que havia a atração física e como! Porém, por impressões difíceis de explicar, tinha certeza que ele não tomaria a iniciativa. Talvez minha presença servisse a ele de forma análoga, isto é, talvez eu servisse para satisfazer sua vaidade e estávamos empatados. Era bom ser alvo de suas atenções e retribuir me deixava feliz.
Então, é claro, ele fez jus a nosso jogo sem consequências e, num desses dias de carona, falou que estava com pressa porque precisava comprar um presente para o aniversário de seu cunhado. Naquela noite haveria a festa e Isabel tinha-lhe passado a incumbência. Isabel? Pela maneira como tinha sido citada, sem maiores explicações, era inequívoco: tratava-se de sua mulher. Ele dispunha de pouco tempo para comprá-lo. Fingi não dar importância à novidade e até tentei auxiliá-lo: perguntei que idade tinha o cunhado, do que gostava, quais eram seus interesses, grau de intimidade, etc. Mas saí do carro decepcionada, pensando que era uma imbecil. Tinha recebido, em minha opinião, a confirmação de que seríamos “apenas bons amigos”.
Nada grave, apesar de lembrar que Roberto tinha escancarado seu interesse por mim e eu por ele. Ou não? Eu o evitei? Ou ele era um medroso, apenas se regozijando em travar um joguinho de sedução com uma aluna mais jovem? Ou desinteressou-se subitamente?
Mas não foi nada grave, já disse, e decidi que me adaptaria ao papel de aluna e amiga meio-solteira do professor casado. Passados alguns dias, ele me convidou para um jantar em sua casa, onde estariam presentes Isabel e uns poucos amigos. Fui apresentada a Isabel como uma “brilhante” aluna do curso de Letras e, é claro, fiquei me comparando com ela. Minha maldade fez com que eu não me impressionasse nada. Era alta, sorridente, usava roupas caras — logo achei que fosse de família rica –, tinha trinta e poucos anos, estava em boa forma e só. Tratou-me muito bem. Eu estava bastante contrariada porque Isabel e Roberto eram muito carinhosos um com o outro, trocavam carícias, beijinhos e até fizeram um brinde particular depois de servido o vinho, como se estivessem numa festinha íntima com a libido a mil. OK, estava enciumada, mas, em torno da mesa, já indulgente pelo efeito do vinho e refletindo sobre meus fracos direitos sobre o mestre, pouco a pouco entrava na conversa e sentia-me ironicamente agradecida a meu ex-futuro amante pelo convite. Era um grupo de pessoas muito interessante e eu fora distinguida por ele para estar ali. Era a única estudante presente, a pessoa mais jovem, a mais inexperiente, a que precisou explicar que não era parente nem de Roberto, nem de Isabel, que era uma simples… estudante de graduação. Roberto respondeu que eu não era uma simples aluna, que eu era “a aluna”, alguém muito capaz, com luz própria – lugar comum roubado ao futebol – e, além de tudo – olhem bem para ela! –, muito bonita. Estava comovida, sentindo como me acolhiam e matutando, com álcool, que adoraria me integrar a um grupo assim. Isabel permanecia tranqüila e sorridente, sem demonstrar nenhum ciúme ou hostilidade. Comecei a simpatizar com ela. Depois de dois cálices, talvez simpatizasse com Hitler. Não, a comparação é injusta, sou amiga de Isabel, gosto dela.
Acabei me integrando mais rapidamente do que esperava… Como estava meio alta, um professor amigo do casal ofereceu-se para levar-me em casa. Só que no meio do caminho, ele me convidou para ir ao Alaska, onde bebemos algumas batidas de coco – eram chamadas de coquinhos – e depois ainda fomos ao Estudantil, um antro frequentado por menos intelectuais e que tinha um garçom chamado Ataliba e dois ambientes: o da frente, iluminado e com mesas, e o de trás, que era escuro e destinado às atividades sexuais. Do amasso ao coito, podia tudo. Foi interessante.
Nina desliga o gravador.