Os Ratos, de Dyonelio Machado

Os Ratos, de Dyonelio Machado

— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.

O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:

— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?

— Uma boa morte, pelo visto.

— Meu filho, não existe morte boa.

Comecemos pelo menos importante. Não sei o que Dyonelio Machado (1895-1985) cometeu contra a Editora Todavia para merecer uma capa tão idiota. Vejam a já velha capa da Planeta (abaixo), muito mais adequada. Mas hoje o que está disponível é a edição da Todavaia, editora que adoro, mas que desata vez merece… Vaias. Publicado em 1935, Os Ratos é uma das obras mais intensas e originais da literatura brasileira. É pra deixar e pânico qualquer pessoa dotada de empatia. Escrito em plena era Vargas, o romance abandona o tom épico e regionalista de boa parte da produção da época para mergulhar no labirinto mental de um homem comum — e endividado. É um romance urbano e, embora o autor não cite a cidade onde Naziazeno transita, sabemos que ele está em Porto Alegre. Aliás, dia desses aconteceu uma curiosa iniciativa. Um guia levou um grupo de pessoas pelos Caminhos de Naziazeno. Não pude ir, infelizmente. É que Dyonelio cita ruas e esquinas a cada momento. Todo o seu trajeto é muito claro para quem conhece o centro de nossa pobre cidade, tão castigada por nosso prefeito bolsonarista.

O protagonista, Naziazeno Barbosa, passa um único dia tentando conseguir dinheiro para pagar o leiteiro. Valor da dívida: 53 mil-réis. Tentei fazer uma conversão para os dias de hoje, 90 anos depois, e deu aproximadamente R$ 300,00. A partir deste ponto, Dyonélio constrói um retrato devastador da miséria e da culpa, conduzido por uma escrita tensa, febril, claustrofóbica. Eu tinha lido o romance ainda aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e, naquele tempo, não fiquei muito impressionado com o livro. Hoje, aos 68 anos, sua verossimilhança e a angústia de Naziazeno tomaram tais proporções que o romance foi-me difícil de suportar. E de largar.

O realismo de Dyonelio — influenciado pela psicanálise — faz de Os Ratos um romance de avassalador tumulto interior: pensamentos se embaralham, a razão se desfaz, o desespero toma forma. Uma das cenas mais marcantes nesta leitura é o momento em que o protagonista consegue fazer com que 5 mil-réis se tornem 75. Ele consegue a proeza jogando na roleta — permitida àquela época. Mas está tão mobilizado pelo desespero que nem se dá conta de que já tem os 53 mil-réis devidos ao leiteiro. Ele segue jogando até perder quase tudo. Age como o Alexei Ivanovich de O Jogador de Dostoiévski.

Além de médico psiquiatra, Dyonelio era do Partido Comunista Brasileiro. Foi até deputado constituinte, mas logo o partido foi posto novamente na ilegalidade e Dyonelio foi cassado junto com outros comunistas como Júlio Teixeira e Pinheiro Machado. Citei este fato para sair da área meramente psicológica e dizer que, sob esta, há uma crítica ao capitalismo e às humilhações sociais que ele impõe: em Os Ratos há o homem reduzido à dívida, o tempo medido pelo dinheiro, a dignidade corroída pela espera. O título é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. Seu triste papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto de Dyonelio, altamente coloquial.

Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Erico Verissimo. Ela datilografava o trabalho. Então, num dia, eu levava algumas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.

Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.

Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e foram presos em meados dos anos 30.

Os Ratos é um livro sobre o Brasil — mas também sobre qualquer lugar em que a miséria se disfarce de normalidade. Sua modernidade é tamanha que, quase um século depois, ainda fala de nós.

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Os Ratos, de Dyonélio Machado, completa 80 anos

Os Ratos, de Dyonélio Machado, completa 80 anos

Vim do inferno, o que criou nova forma de conviver com a vida; e, pela mesma razão, uma nova forma de romance.
Dyonelio Machado

— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.

O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:

— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?

— Uma boa morte, pelo visto.

— Meu filho, não existe morte boa.

Os Ratos, de Dyonelio Machado, completa 80 anos em 2015. O pequeno romance é um dos mais importantes da literatura brasileira. A história se passa durante um dia, são 24 horas de completa angústia para o personagem Naziazeno Barbosa em sua preocupação sobre como arranjar dinheiro para quitar uma dívida com o leiteiro.

O título Os Ratos é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que, depois de ter conseguido o dinheiro para saldar a dívida, sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O desenrolar do drama do funcionário público endividado e com vergonha de olhar os credores atravessa os capítulos e enche de angústia o leitor. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome de Naziazeno… E enfim, o empréstimo salvador. Porém, ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando atrás de uma solução.

Dyonelio Machado

O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. O triste e diminuto papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto Dyonelio, altamente coloquial. O escritor nos envolve no drama do protagonista através dos pensamentos do personagem principal. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado, mas tudo retorna nas angustiadas lembranças dos movimentos do dia, agora observado sob novos ângulos.

Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo. Ela datilografava o trabalho. Num dia, eu levava umas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.

Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.

Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e ambos foram presos em meados dos anos 30.

Em 1935, Dyonélio recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por Os Ratos. Soube da premiação quando estava preso, incomunicável, no porão de um navio estacionado no porto de Santos. Apesar disso, um amigo conseguiu lhe avisar do fato.

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Dyonelio Machado nasceu em Quarai, RS, em 1895. Político, psiquiatra, jornalista e poeta, aos 12 anos já trabalhava no semanário O Quaraí. Em 1911, fundou o jornal O Martelo, onde deixa clara sua adesão ao comunismo. Em 1929, formou-se médico e estudou psicanálise, constituindo-se num dos responsáveis pela divulgação da nova disciplina no Rio Grande do Sul. Em 1934, traduziu a obra Elementos da psicanálise, de Eduardo Weiss, livro fundamental na área.

Dyonélio Machado no Pátio da Prisão de Bananeiras em 1935

Dyonelio Machado dividia-se entre a política, a psiquiatria e a literatura. O interesse pela última foi demonstrado por seu primeiro livro de contos – Um pobre homem – publicado em 1927.  Depois viria sua mais importante obra, Os ratos, de 1935, e O louco do Catí (1942), outro romance clássico do autor. Sua obra foi reconhecida tardiamente, tendo recebido destaque nos meios acadêmicos apenas a partir da década de 80. Foi ainda um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, de Porto Alegre. Em 1946, com Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.

Membro do PCB, em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos. Solto mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, em razão da Intentona Comunista. Suas posições ideológicas custaram-lhe dois anos passados na prisão. Mas seguiu fazendo política, tanto que foi deputado constituinte pela Partidão e, em 1947, com o PCB na legalidade, elegeu-se deputado estadual, tornando-se líder da sua bancada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Em 1956, numa entrevista para o jornal A Hora, disse: “Se algum conselho eu tivesse o direito de dar aos jovens, seria de que a vida deve ser vivida com indiferença”. E, pouco antes de morrer, Dyonelio concedeu uma longa entrevista para Julieta de Godoy Ladeira onde fez uma declaração que sempre surpreende os que tem contato com seus bem cuidados textos: “Não releio o que faço. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única revisão”.

Dyonélio Machado faleceu em 1985, aos 90 anos.

Fontes:
— História da Literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar
O Pensamento Político de Dyonélio Machado, publicação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
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