Quem de nós, de Mario Benedetti

Vivi tanto nesta semana que nem parece que ainda é quarta-feira. Meu equivocado relógio interno indica sexta. Talvez um dos motivos seja a súbita leitura deste primeiro romance de Mario Benedetti, Quem de nós (Record, 83 páginas). Li-o quase todo ontem à noite, enquanto esperava, num restaurante, que minha mulher e amigos — Jussara e Branco — chegassem do concerto da OSPA. É que tinha devolvido meu ingresso a quem me dera e ficara sem…

Jamais chamaria Quem de nós (1953) de novela. É um romance curto, um excelente e intenso romance curto. A narrativa — que no Brasil recebeu o duvidoso complemento de Uma História de Amor (ver capa ao lado, sob o título) é dividida em três partes muito diferentes entre si e que justificam plenamente a epígrafe de Auden que lemos assim que abrimos o volume:

I shall never be Different. Love me.

O verso faz parte do Hymn to St. Cecilia, mas eu falava sobre as três partes. Elas se chamam Miguel, Alicia e Lucas e são escritas em primeira pessoa. Os três personagens se conhecem desde a adolescência. Miguel e Alícia são casados e têm dois filhos, mas o marido, uma pessoa daquelas que alguns chamam de “simples”, tem certeza que a mulher tem tudo em comum com o amigo Lucas. Afinal, ambos têm os mesmos interesses, a mesma ironia, cultura, etc. Na época do casamento, Lucas saiu de Montevidéu para viver em Buenos Aires e não mais voltou. Ao longo de 11 anos de separação, Miguel e Lucas apenas trocaram cartas, e sempre, ao final delas, aparecia um tímido recado de Alícia: “Carinhosas lembranças ao bom amigo Lucas”.

O livro abre com a narrativa de Miguel, a qual ocupa mais da metade do livro. As anotações são datam de logo após Miguel levar Alicia ao porto de Montevidéu para ir a Buenos Aires visitar Lucas. Baseado numa rigorosa baixa auto-estima que o faz quase empurrar a mulher para o amigo, Miguel tem a certeza de que ela não voltará para ele. Não devo contar o que virá a seguir, é claro. Mas algumas observações devo fazer. A parte escrita por Lucas (tradutor e escritor) vem na forma de um conto, um work in progress cheio de anotações de rodapé com os nomes dos personagens alterados. Não sei contar contos; sei reconhecer o conto em alguma coisa que vejo ou experimento. Depois deformo, acrescento, tiro. Vem também na prosa voluntariamente truncada de quem está meio escrevendo, meio anotando.

A grande curiosidade do livro não é nem pela psicologia ou por minha identificação com as situações e personagens. O que me seduziu foi como a franqueza de Miguel e Alicia foi estranhamente rebatida por uma meia ficção: a força desta chega a ser assustadora em relação ao naturalismo das duas primeiras partes. Benedetti nos engana — passa uma impressão de simplicidade enquanto nos destroça.

Nada menos que genial.

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