A Noiva Jovem, de Alessandro Baricco

A Noiva Jovem, de Alessandro Baricco

A Noiva Jovem Baricco(Sem spoilers). De escrita primorosa e de grande originalidade, A Noiva Jovem deixou-me verdadeiramente embasbacado. Em entrevista que li agora, concedida ao Estado de S. Paulo, Alessandro Baricco afirma que se propôs a escrever um livro com 20% de realismo mágico, 20% de Lampedusa e 60% dele mesmo. Deu razão a este leitor que, sem entender de onde vinha aquele argumento, pensou em uma mistura de García Márquez e Lampedusa. Uma mistura altamente poética e potente. Só que ainda predominam, é claro, os 60 % de Baricco, com as constantes e curiosas intervenções do escritor no texto, que fala até num notebook perdido e numa namorada que critica a obra que está sendo escrita, além das perfeitas mudanças de foco narrativo. Também há Baricco na criação de um clima estranho, que faz com que o livro grude em nossas mãos, como já me acontecera na leitura de Mr. Gwyn.

Tudo acontece em um ambiente familiar muito curioso. Não há nomes, mas um Pai, uma Mãe, um Filho, uma Filha, um Tio. E a Jovem Noiva. O único que ganha nome é Modesto, o gentil mordomo que tudo vigia para que a felicidade seja um estado permanente. As relações são delicadamente insanas, as manias e medos são muitos.

O Filho conhece a Jovem Noiva ainda adolescente e ela é prometida a ele. Conheceram-se na Europa, mas a família dela, falida, foi tentar a sorte na Argentina. Quando completa 18 anos, a Jovem Noiva atravessa o oceano de volta para chegar a uma paisagem que parece a Sicília de Lampedusa. Vem para juntar-se ao Filho. Ela entra numa casa que parece cheia de personagens de García Márquez, todos eles docemente malucos, dando respostas e tomando atitudes entre o desconcertante e o poético, mas de um realismo mágico altamente racional.

Mas o Filho não está lá e demora. Entre os mil fatos, novidades e experiências que a casa oferece, o far niente começa trabalhar. Passam-se meses e a tensão cresce. E o Filho não chega. Isto atormenta e faz amadurecer a Jovem Noiva. Ela mantém a certeza de que ele virá.

Parabéns para a excelente tradutora Joana Angélica d`Avila Melo. Não deve ser fácil traduzir um livro que muda tantas vezes seu foco narrativo.

Baricco é um escritor altamente sofisticado que também faz crítica musical de música erudita, é pianista e apresenta um programa na televisão italiana. Seria bom iniciar correntes de orações para que tivéssemos alguém tão talentoso por aqui.

Recomendo fortemente!

Livro comprado na Bamboletras.

Baricco também faz critica musical. De eruditos, claro.
Baricco também faz critica musical. De eruditos, claro.

 

 

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Não há amanhã, de Gustavo Melo Czekster

Não há amanhã, de Gustavo Melo Czekster

Gustavo Melo Czekster não há amanhãQuando recebi este livro de Gustavo Melo Czekster, sorri imediatamente. Conheço o Gustavo. Ele é um cara simpático de 1,90m e tem o sorriso mais fácil do mundo. Invejo-o. Trata-se de um craque das fotos, algo que nem sempre é fácil para este que vos escreve. Porém, se eu tirasse uma foto com o autor de Não há amanhã, sei que sorriria de forma muito convincente. Inevitável. Parece um sujeito muito alegre. Mas… Ao ler os 30 contos de Não há amanhã, ficam claras as sombras de envolvem esta criatura que, de forma concomitante ao lançamento do livro, mudou sua foto de perfil no Facebook, antes sorridente, por uma muito séria (abaixo). Não vou especular.

Sempre que recebo um livro de um amigo, fico na dúvida se devo ler ou não. Porque é chato criticar pessoas que cruzam com a gente. Tenho graves problemas nesta área. Já dei palestras a respeito do tema de ser crítico em nossa província. Na palestra, contei sobre a Ospa, sobre alguns escritores que passaram a me negar cumprimento, sobre ameaçadores e-mails, sobre músicos que dizem que eu não entendo nada de nada, sobre pequenos linchamentos patrocinados por autores e músicos no Facebook que costumam dar o link de meu texto e perguntar para seus amigos: “Vocês concordam com este crápula?”. Quem está de fora, ri, enquanto eu procuro ignorar, o que é difícil às vezes.

Abri Não há amanhã, segundo livro de Gustavo — não li o primeiro — e, após o susto de ler seu prefácio histericamente laudatório — autoria de um sujeito que fala em “estonteante linha final” –, fiquei surpreso por sua alta qualidade. Estou com sorte porque, nos últimos seis meses, li três excelentes livros escritos por vizinhos: o de Nelson Rego, o de Julia Dantas, o de Iuri Müller e este. Ufa, vou passar mais um tempo sem problemas, já que desisti de escrever sobre a música de Porto Alegre.

Não há amanhã é um livro de 160 páginas e 30 contos que variam entre o curtíssimo — praticamente crônicas ficcionais — e o longo. Mas a característica principal é que, mesmo que autor transite bastante na área do fantástico, suas criações não são nada leves, ligeiras ou meramente mágicas. São histórias de impacto que não prescindem de um pós-prandial reflexivo. Eu não conseguia partir para a próximo conto sem parar para pensar sobre o que tinha lido. Algumas histórias são dignamente grandiosas, outras são irônicas, mas todas elas perturbam através de elementos representativos de fatos exteriores que amplificam o texto.

Gostei muito do insolucionável Problemas de Comunicação, do ofegante A Passionalidade dos Crimes, do curioso e igualmente ofegante Neve em Votkinsk, dos conselhos de Os que se arremessam, das multiplicações de Os problemas de ser Cláudia (que merecia perder seus 3 últimos parágrafos *), do mímico Mas não falam, das elegantes equações de A revolução como um problema matemático, da bela cena de O silêncio e do parque de Um outro sentido. Mas nada do restante é esquecível.

Os contos guardam fartas doses de unidade entre si e, repito, não são de modo algum literatura descartável, de entretenimento. Czekster consegue fabular e ser autenticamente filosófico, por todo o tempo. É literatura séria, até um pouco dura e sombria, onde o fantástico e a morte estão muito presentes.

Recomendo fortemente.

* Explico: como um devoto da ficção, não gosto quando entra certo “tom de tese”. Não estraga o conto, mas ele poderia ser perfeito, não?

Gustavo Melo Czekster

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O Tribunal da Quinta-feira, de Michel Laub

O Tribunal da Quinta-feira, de Michel Laub

O Tribunal da Quinta-Feira

É preciso ser muito estúpido para transformar um registro teatral e hiperbólico entre duas pessoas conversando em privado numa declaração literal e pública que revela intenções e caráter.

Michel Laub, O Tribunal de Quinta-feira

Sem spoilers, tá? O publicitário José Victor, de 43 anos, está se separando após um casamento de 4 anos com Teca. Ele sai de casa deixando o computador e, poucos dias depois, ela descobre uma série de e-mails trocados entre seu ex e Walter, um velho amigo gay de Victor. Eles têm um tratamento bastante franco, jocoso e “incorreto” nos e-mails, mas suficientemente irritante e informativo para Teca, que bota os melhores lances no maior dos ventiladores, as redes sociais. (Não pensem que os amigos tinham um caso, nada disso, Laub não se utiliza de lugares-comuns). E começa o linchamento típico da Internet, cujas consequências são tratadas por Laub. Este é um resumo que ignora boa parte da complexidade do romance, que também envolve AIDS, relações profissionais, culpa e hipocrisia.

O livro é ótimo, mas há algo que me incomodou. Laub é um narrador poderoso e, em capítulos curtos, vai montando uma complexa teia que nos traz um contexto bem real da situação. Seu ritmo é lento e inexorável. A cada capítulo, vamos sabendo mais e mais, mas não gostei das pequenas intervenções ensaísticas inseridas na narrativa e nem da aceleração final da mesma. Me pareceu que Laub, controlando magnificamente a história, decidiu deixá-la sensacional nos últimos capítulos. Ou seja, já tinha ganho a partida quando decidiu massacrar. Acabou tomando um contra-ataque que resultou num inútil gol do adversário e manchou o que estava perfeito. Tipo 7 x 1.

O tribunal do título refere-se principalmente à explicação que ele terá de dar que à pessoa que realmente feriu durante o episódio, mas tal fórum pode ser expandido para o descontrole, suscetibilidades, desinformação e distorção das redes sociais.

Excelente livro. Recomendo.

Livro comprado na Bamboletras.

michel_laub

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Serena, de Ian McEwan

Serena, de Ian McEwan

Serena McEwanResenha sem spoilers, tá? Serena conta uma história que se passa nos anos 70, em Londres e Brighton, misturando amor, literatura, costumes e política (Guerra Fria). Serena Frome é uma jovem que vai trabalhar no MI5 (Military Intelligence, Section 5), serviço de inteligência do governo inglês. Ela estudou matemática em Cambridge, mas gosta mesmo é de literatura ligeira. No início do livro, diz preferir Jacqueline Susann a Jane Austen… e, sim, ela se torna mais razoável depois. Em razão de seu amor pela literatura e por ser de direita (além de linda), ela é convidada a participar de um projeto bem comum na época: com a finalidade de combater as ideias comunistas, o MI5 passa a financiar autores talentosos que escrevam a favor do capitalismo. Normal. Até Orwell participou de um programa desses. Após alguns casos amorosos, inclusive com o homem que de certa forma a colocou no MI5, Serena envolve-se com um escritor que recrutou, um certo Tom Haley. A partir deste ponto, paro de contar a trama.

Dito assim rapidamente, parece ridículo. Não é. McEwan é um baita escritor, realiza sempre minuciosas pesquisas e consegue manter esta trama vintage — meio espionagem, meio farsa, meio romanção — bem escondida sob uma prosa sempre interessante. Só que o livro não chega a ser bom. O final que o leitor elabora em sua cabeça, imaginando as cenas que virão antes do desenlace sugerido, é menos elegante do que aquilo que é descrito por McEwan. E a gente fica pensando que ele não explicita a história porque ela não é tão boa. Fica uma sensação estranha e insatisfatória.

McEwan nasceu em 1948, eu em 57. Muitas das referências feitas por ele àquele período de minha juventude foram-me absolutamente deliciosas. Talvez eu e ele tenhamos sucumbido nostálgica e apaixonadamente à música popular e aos problemas em voga na época. As descrições detalhadas de como Serena se veste ou pensa são ótimas e a certa ingenuidade sempre presente dão um perfume especial à esta narrativa longa (382 páginas).

Mas, vocês sabem, um mau McEwan é superior do que o melhor livro de muito autor consagrado e Serena é exatamente isso, um equívoco de um excelente autor. Afinal, sempre se espera deste cara que diz vencer seu bloqueio criativo lavando louça.

Livro comprado na Bamboletras.

Ian-McEwan-escritor

Livro comprado na Bamboletras

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A Descoberta da Currywurst, de Uwe Timm

A Descoberta da Currywurst, de Uwe Timm

A descoberta da currywurstLi este livro durante uma longa viagem pela Europa. Queria algo leve e achei que o best seller A Descoberta da Currywurst combinaria bem a já gasta mas agradável fórmula de “gastronomia e história”. E, com efeito, apesar de quase tudo se passar logo após o final da Segunda Guerra Mundial, trata-se de um livro leve. Uwe Timm simula uma longa entrevista com Lena Brücker, a possível inventora da iguaria. Porém, antes de dizer qual é a origem da currywurst, Lena, enquanto tricota num asilo de velhos, faz questão de contar sua aventura de final de guerra. E o que ela conta por quase todo o livro é seu caso amoroso com o jovem soldado alemão Hermann Bremer. Ele fora designado para uma unidade de caça de blindados, mas, nos dias finais da guerra, Lena o convence a tornar-se um desertor, arrastando-o primeiro para um abrigo antiaéreo e depois para seu apartamento. Bremer fica escondido ali, tentando adequar-se a mil cuidados para não ser ouvido pelos moradores do prédio. Já Lena sai bastante de casa. Trabalha numa cantina e é lá que, não obstante a escassez, rouba alimentos para si mesma e Bremer. Também consegue enganar Bremer, dizendo que a guerra não acabou. Ela mente que não há jornais e confirma que a Alemanha juntou-se aos aliados para atacar a União Soviética. Ou seja, a guerra segue e ele ainda seria um desertor. É interessante a relação entre ambos. O fato é que ela o quer e ponto final. Transam todos os dias e vão engodando. Então, o livro cai em outro clichê, saindo de “história e gastronomia” para o “romance de cativeiro”. Só nas páginas finais sabemos da origem da currywurst. Até curti o livro, queria saber seu final, não obstante o amontoado de clichês. Timm escreve muito bem, a tradução é boa, só que a história é um amontoado de coisas há muito tempo vistas ou lidas.

Uwe Timm: desta vez passa, tá?
Uwe Timm: desta vez passa, tá?

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Ruína y leveza, de Julia Dantas

Ruína y leveza, de Julia Dantas

ruina-350Gosto de resenhas curtas, mas acho que esta será pouca coisa maior do que o habitual.

Muitos de meus amigos elogiavam Ruína y leveza e faziam cara de espanto quando eu dizia que ainda não tinha lido. De certa forma, eles me enganaram. Não quanto à qualidade do livro, que é efetivamente excelente, mas quanto ao tema. Esperava uma espécie de “romance de viagem” pela América Latina, com descrições das minas de Potosí, de Nazca, do Salar de Uyuni, de Machu Picchu, misturadas com a vida sentimental da narradora, algo assim. Eles me falavam do livro e eu imaginava algo de inspiração goethiana ou hessiana, solitária e paisagística, sempre com a viagem como centro, abrindo espaço para uma viagem interior de auto-conhecimento. E pensava que talvez não fosse o livro mais adequado a este leitor… Só que Dantas me ganhou facilmente.

Porque é o inverso. A crise pessoal da personagem — fim de um caso amoroso, súbita demissão de seu trabalho como publicitária — é que a leva a viajar e as tais transformações e recomeço ocorrem como resultado dos contatos de Sara com figuras como a do argentino Lucho e a da peruana Carmem e não através de lições ou grandes frases forçadas. Ou seja, tudo parte da simples interação. Ponto para Dantas. Ou seja, não é um livro de um narrador solitário, apesar de Sara buscar ficar sozinha. Sim, escrevo uma resenha mais dizendo o que Ruína y leveza não é, mas a culpa é de quem me fez ler o livro…

E o que é o livro? É um livro sobre um processo de retomada da vida, de um recomeço. Da crise à retomada. Ele gravita em torno das experiências passadas e da viagem de Sara, uma narradora de voz muito sedutora e envolvente. Em segundo lugar, é um texto bem escrito, fluente, inteligente e realista. Os capítulos alternam entre as experiências da viagem e os motivos a levaram até ali. Então, boa parte do livro é urbana e porto-alegrense. Sara está deprimida, mas sempre permanece interessante e até divertida — o livro contém boas piadas e histórias. Não se trata de uma pessoa perdida e desesperada “que se encontrou”, pelamor.

A frase que parece dar título ao livro é do duro Lucho, que afirma: “Turistas voltam para casa com malas mais pesadas. Viajantes voltam com mais leveza”. Gosto especialmente da palavra leveza e a uso com cuidado. Na acepção que prefiro, ela não é confundida com simplicidade ou falta de profundidade, mas com delicadeza e viço. Mozart, para mim, seria uma mistura de leveza e ousadia. Julia Dantas a utiliza bem.

Recomendo a leitura.

Livro comprado na Bamboletras.

Julia Dantas em foto sem crédito encontrada na rede
Julia Dantas em bonita foto sem crédito encontrada na rede

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Luz em Nevoeiro, de Iuri Müller

Luz em Nevoeiro, de Iuri Müller

luz-em-nevoeiro-iuri-mullerVolume de estreia de Iuri Müller na área da ficção, Luz em Nevoeiro traz doze contos, alguns já conhecidos meus da internet. Mas nada como lê-los em grupo. Neste caso, a desvantagem da leitura esparsa foi a de dificultar a distinção da boa voz de Iuri e de prejudicar a observação da unidade e da coerência do trabalho do autor. Em livro, tudo ficou mais claro. Os contos são escritos em ritmo decididamente adágio, tendo por base, quase via de regra, as ações dos personagens. Há também há uma peculiar integração entre eles e os diversos ambientes. Por ambiente, entenda-se as ruas e as cidades. A coisa acontece de tal maneira que é impossível imaginar o belíssimo e original Andava a te buscar fora de Montevidéu ou o ótimo Avenida Salgado Filho fora da conhecida e infernal rua de Porto Alegre. As histórias vêm grudadas às características específicas de cada habitat.

(Intervenção gonzo: li o livro durante uma viagem à Europa na qual mudei 4 vezes de cenário. Era curioso receber a enorme carga de informações da cada nova cidade onde me hospedava, enquanto lia um livro tão ligado a outras cidades também conhecidas de mim. Caminhava por Berlim, Praga, Amsterdam e Londres, vagando literariamente por Montevidéu, Buenos Aires, Porto Alegre, Santa Maria, Lisboa…)

A atmosfera ficcional de Luz em Nevoeiro é cuidadosamente rarefeita. Os contos não dizem tudo, deixando bom espaço para a imaginação do leitor e para a poesia. Iuri Müller nos joga detalhes sem ser exageradamente explícito (ou explicadinho), criando lentamente boas histórias de conflitos contra a situação política, a pobreza, a falta de perspectivas. Papéis Molhados, Edifício Paris e Acevedo, poeta são bons exemplos de sua arte. Os personagens são lenta e maravilhosamente bem construídos. E costumam tomar atitudes desconcertantes.

Além dos contos citados, gostei muito de O Estado das Coisas. Importante salientar: citei seis, mas a outra meia dúzia não é nada esquecível. Recomendo a leitura.

P.S. — Iuri Müller já tinha publicado anteriormente a reportagem Estilhaços de Rodolfo Walsh, comentado aqui no blog.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O Céu de Lima, de Juan Gómez Bárcena

O Céu de Lima, de Juan Gómez Bárcena

o-ceu-de-lima-juan-gomez-barcenaJosé Galvéz e Carlos Rodríguez são dois jovens ricos que, com o futuro garantido, escolhem viver de maneira leve e superficial. São daquele tipo de estudantes universitários que raramente frequentam as aulas. Amam a literatura, sobretudo poesia, apreciando especialmente o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez. Querem ler seu novo livro, mas não o encontram na provinciana Lima da primeira década do século XX. E resolvem pedir o livro diretamente ao autor. Para que dê certo, fazem com que uma mulher o faça, criando assim a personagem Georgina Hübner – uma moça apaixonada pela obra de Juan Ramón. É ela quem lhe escreve uma doce e inteligente carta solicitando o livro, preparada pela bela e feminina caligrafia de Carlos. Ambos ficam loucos de felicidade quando a edição chega, acompanhada de uma resposta. E começa uma longa correspondência que forma um romance, tanto literário quanto amoroso.

É curioso. A narrativa é inspirada em uma história real. Sim, o grande Juan Ramón Jimenez foi iludido por dois dândis limeños. A partir desta uma introdução de comédia, Bárcena constrói minuciosamente a relação entre José e Carlos, além da deles com seus aconselhadores. Mostra-nos como se envolvem cada vez mais na farsa. Também a elite de Lima e suas relações sociais com os empregados e serviçais é retratada com particular exatidão. O contexto histórico é rico e esclarecedor, auxiliando e tomando boa parte da narrativa.

O livro é dividido em quatro capítulos: I- Uma Comédia; II- Uma História de Amor; III- Uma Tragédia e IV- Um Poema. Neles, lemos algumas cartas de Georgina, que acaba se tornando cada vez mais real, além de alguns trechos das cartas que o escritor Juan Ramón Jiménez lhe envia. Há sutil e inteligente metalinguagem. Os dois farsantes acabam discordando muitas vezes. Buscam conselhos de um homem que trabalha no centro da cidade redigindo cartas de amor. Carlos não deseja aderir às sugestões. Depois, outros amigos acabem se envolvendo, o que leva a dupla a um quase rompimento. A coisa fica séria e eles apenas voltam a se encontrar quando…

O Céu de Lima é excelente e foi uma grande surpresa. Comprei-o por indicação do amigo Iuri Müller e só porque tinha algum dinheiro sobrando no bolso, coisa rara. Valeu muito a pena. Recomendo!

Livro comprado na Bamboletras.

Juan Gómez Bárcena
Juan Gómez Bárcena

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A Natureza Intensa, de Nelson Rego

a-natureza-intensa-nelson-regoNão sei quais são as principais referências literárias de Nelson Rego, mas não devo errar muito se falar em Bataille, Sade, Genet, Gombrowicz e Gide, além de algo mais político. Porém, este livro não segue nenhum modelo utilizado pelos autores citados, apenas fazendo com que lembremos deles. Em A Natureza Intensa, Rego faz uma curiosa literatura hedonista, onde há belas e glamurosas mulheres em posições de poder. Elas administram suas empresas a partir de fundamentos éticos muito pouco praticados, que incluem não somente a solidariedade como o sexo e a beleza.

O volume abre com o conto Garota Espiralada, onde uma modelo posa nua para um grupo de artistas. Só que estes parecem um grupo de voyeurs mais interessados no corpo da menina do que em seus trabalhos. O trabalho parece pretexto para a contemplação.

Farsantes Sinceras conta uma viagem onde duas mulheres circulam por uma Itália cheia de tentações e mistérios. Aqui, somos apresentados a algumas personagens da narrativa que fecha o livro.

Sim, o melhor é o conto final (ou novela, pois tem 75 páginas). A natureza intensa brota por todo lado trata de um homem maravilhosamente perdido na casa da dona de uma grife que retira da pobreza meninas para trabalharem como modelos. Vitória dá-lhes tudo: educação, roupas, segurança, beleza… Dá-lhes o mundo. E elas tornam-se “queridas, ousadas, nada submissas, valentes, justiceiras, taradinhas, narcisistas, perspicazes e profundas, um pouco fúteis, criativas, inteligentes e estudiosas e aplicadas em suas responsabilidades, cheias de compaixão e amor apaixonado, exibicionistas, ecológicas, solidárias, com espírito de equipe, independentes, vaidosas, uns amores, tudo de bom”.

Rego não faz pornô soft, faz boa literatura com um belo trabalho de linguagem, que lembra os autores citados na abertura desta resenha. O que é também singular no mundo de Nelson Rego é que tudo isso é temperado por posições contra o establishment. Isto é, não estamos nunca no terreno do conformismo. Os planos das poderosas mulheres incluem investimentos nos promissores editores gays de Londres que sonham em abrir uma sucursal antirreligiosa em Jerusalém e outra antirracista no Texas. Elas também pretendem abrir linhas de crédito para quintais quilombolas dedicados à agricultura orgânica nas regiões mais latifundiárias e racistas do RS… Lembram que o deputado Luis Carlos Heinze disse que quilombolas, índios, gays e lésbicas era “tudo que não presta”? Pois bem, ele ficaria louco com os planos delas.

Sem dúvida, é um mundo é bem interessante e, infelizmente, distinto de nossa realidade. Talvez, como diz a poderosíssima Jewel, verdadeira suma-sacerdotisa, a intenção seja a de dar esperança para o mundo através do tesão.

Recomendo!

Nelson Rego | Foto: Palavraria
Nelson Rego | Foto: Palavraria

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Enclausurado, de Ian McEwan

Enclausurado, de Ian McEwan

enclausurado-mcewanA ideia é insólita e tinha tudo para dar errado, acho. Mas do outro lado não estava um diretor de comédias norte-americanas e sim Ian McEwan. Bem, gente, o narrador de Enclausurado é um feto. Dentro do útero, ele aprende as coisas da vida ouvindo programas de rádio que sua mãe tanto aprecia. Ouvindo tais programas, que falam da política e da situação mundial, o feto teme por seu futuro. Além disso, degusta e tem opiniões acerca dos vinhos que ela ingere não obstante a gravidez. Sua mãe prefere o Borgonha, ele, o Sancerre. (McEwan afirmou que se trata de um feto alcoolista). E ali, dentro do útero de sua genitora, fica sabendo dos planos de Trudy, a mãe, para matar o pai em conluio com o amante que é irmão do pai, ou seja, seu tio.

Apesar de estarem sempre misturados ao desconforto e, às vezes, à burrice e ao descontrole, o livro tem momentos absolutamente hilariantes. Há alta e baixa comédia. O feto declara-se impotente para alterar tanto o destino da trama que vê ocorrer em torno de si, como da situação do mundo onde vai chegar, mas faz comentários acerca de tudo. Preocupa-se demais, inclusive em se esquivar das estocadas do pênis do tio, o insuportável Claude. Então, o romance tem uma base absolutamente fantasiosa, momentos de comédia e outros de grande realismo e sinceridade, guardando também pontos de contato com as tragédias shakespearianas, apesar da ambientação 100% contemporânea. O nome da mãe, Trudy, obviamente vem de Gertrudes, a Rainha da Dinamarca de Hamlet; enquanto que o nome do irmão do pai é Claude, um sujeito traidor, assassino e tolo. Lembram que o irmão de Hamlet chama-se Claudius?

O feto desaprova os planos, porém não consegue detestar a mãe e sua placenta saudável e alcoolizada. Neste livro, McEwan mantém as detalhadas descrições de seus melhores textos, mas revisita o espírito de suas primeiras obras que lhe valeram o apelido de Ian MacAbre (Ian Macabro).

Há um momento em que levantei e comecei a caminhar rindo. O marido inverte o discurso e Trudy fica enfurecida em razão de que o abandono deve ser uma decisão dela, não dele. Ela quer se separar, não ele… A raiva de Trudy é “vasta e profunda e é seu meio ambiente, sua personalidade”. Puxa, como eu conheço isso!

Enclausurado é uma pequena joia. De início tão inverossímil quanto Memórias Póstumas de Brás Cubas, o livro ganha enorme força através da arte de um McEwan inspiradissimo como em Reparação e Amsterdam.

Recomendo fortemente!

Livro comprado na Bamboletras.

Ian McEwan
Ian McEwan

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O Inverno e Depois, de Luiz Antonio de Assis Brasil

O Inverno e Depois, de Luiz Antonio de Assis Brasil

o_inverno_e_depoisDepois de Música Perdida (2006), eu tinha desistido de Assis Brasil. Sendo mais claro: sempre lia os livros do autor gaúcho em busca de algo tão vivo quanto O Homem Amoroso (1986), mas ele permanecia perdido em romances históricos que me pareciam difíceis de engolir, seja pela artificialidade de algumas situações, seja pela linguagem clássica e perturbadoramente deslocada daquilo que descrevia — normalmente o Pampa inculto e romantizado –, seja por minhas manias e gostos de velho leitor, certamente a razão mais forte.

Mas aí veio o excelente escritor, crítico literário e amigo Carlos André Moreira. Ele escreveu bobamente que gostaria de ler uma resenha de Milton Ribeiro sobre o recém lançado O Inverno e Depois. Espero que tenha se lembrado que isto aqui é um blog onde apenas me coleciono de um jeito meio estabanado. Bem, mas moço obediente que sou, liguei para a Ladeira Livros pedindo o romance. E o livro é ótimo.

A narrativa tem seu foco em Julius, um violoncelista que se isola numa estância que herdou de seus pais — e que não visitava há 40 anos — para estudar uma obra pela qual é obcecado desde seus estudos na Alemanha, o Concerto para violoncelo e orquestra, de Dvořák. Ele tem um concerto marcado como solista e quer ser digno da grande música que escolheu.

Logo no início do livro, enquanto é descrita a longa viagem de carro entre Porto Alegre e a fronteira com o Uruguai, já deu para notar que tudo estava muito bem encaixado: humor, linguagem e tema. Durante a jornada, Julius, que nascera no mítico Pampa de Assis Brasil e que mudara-se criança para São Paulo, divaga sobre seu passado. A viagem vai sendo descrita paralelamente à história de vida de Julius e, quando vi, estava totalmente envolvido. Aprendi que o maior sinal de que o livro é bom é quando abro novos espaços de tempo para apressar a leitura. Isso aconteceu e passei a achar legal que o volume tivesse 350 páginas.

Hitchcock não era escritor, mas sabia como poucos o que era uma narrativa bem feita. Na imensa entrevista que concedeu para Truffaut, disse uma coisa fundamental: um profissional vê o mundo a partir de sua profissão e trata de influenciá-lo e defender-se a partir e com o que faz. Lembram do fotógrafo de A Janela Indiscreta defendendo-se de Lars Torvald com “flashes”? Há algo mais crível do que aquilo? Ou queriam que ele pegasse em armas?

Pois Julius pensa e vê o mundo a partir do violoncelo. Foi o instrumento que o levou à Würzburg (Alemanha) e depois fez com que se fixasse em São Paulo. Suas opiniões e amores são mediados pelo violoncelo. Ele não conheceria a amiga Klarika, seu professor Brand, seu amor Constanza e talvez nem a esposa contadora sem ele. Um bom romance realista deve ter surpresas, mas não pode conter sinais de artificialidade. E Assis Brasil aceita o fato de tal forma que não recua em dar detalhes técnicos do instrumento e das peças com que Julius se debate. Os desentendimentos que ocorrem também são típicos do mundo musical. (Lembrem que sou casado com uma violinista da Ospa, conheço o ambiente).

Outro elogio que faço ao livro é o de sua arquitetura narrativa. A linguagem é aquela clássica que Assis Brasil nunca abandona, aquela que mira a clareza e a elegância. Mas aqui a construção é muito bem feita, as narrativas paralelas funcionam bem e nos levam a boas cenas simétricas, como a do recital de Constanza e a do concerto de Julius. Porém…

Algumas vezes Assis Brasil pisa a linha do melodrama e até dá um passeio por lá. A descrição da morte do professor Brand é menos digna do que poderia e algumas coisas funcionariam melhor se deixadas a cargo da imaginação do leitor. Também é surpreendente que Julius, ao retornar do outro lado da fronteira, tenha perdido todos os medos — algum artista que sofre de medo do palco pode perdê-lo 100%? —  e tenha ido de peito aberto, surpreendendo até o maestro com seu risoluto. Creio que, na cena final, ele pudesse ter deixado claro o medo inicial e a sua diminuição à medida que Julius observava a plateia e criava vínculos com Antônia, Maria Eduarda, Sílvia e Constanza. Pô, nem uma visitinha às pressas ao banheiro antes de entrar do palco? Sua súbita segurança pareceu meio mágica, como se ele tivesse incorporado Starker.

Mas isto são detalhes. É o varejo no meio de um atacado de acertos. Eu comi o livro. O romanção me convenceu fácil, fácil. E não pensem que eu não quero que Constanza e Julius vivam felizes para sempre. Garanto-lhes: fazem um belo casal!

Recomendo.

luiz-antonio-assis-brasil

(Livro comprado na Ladeira Livros).

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Oswald — Ponta de Lança e outros ensaios, de Éder Silveira

Oswald — Ponta de Lança e outros ensaios, de Éder Silveira

oswaldCVEu sempre me aproximo com receio de obras escritas por acadêmicos. Nelas, às vezes tudo fica muito esquisito, com os rodapés crescendo quase tão altos quanto a parede. Por isso, foi uma surpresa abrir a obra do historiador Éder Silveira e ver-me logo envolvido por temas culturais fundamentais do Brasil, acompanhados de elegância, boa prosa e comentários consistentes. Antes de descerrar esta cortina de elogios, aviso que sim, há os malditos rodapés, mas o autor esforçou-se para integrá-los ao texto. Deste modo e erguendo o nariz para alguns deles, a leitura ioiô ficou reduzida.

Oswald ponta de lança e outros ensaios trata de temas culturais e políticos da primeira metade do século XX, com foco na Semana de Arte Moderna de 22 e suas margens. São textos cheios de informação — e algumas fofocas — sobre figuras como Monteiro Lobato, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Oswald. Para mim, o verdadeiro interesse do livro está no fato de que o autor cuida mais da algaravia geral. Isto é, cuida menos de suas individualidades e mais de suas obras e dos diálogos entre eles e a política da época, vertidas principalmente em artigos publicados em jornais. No início do século passado, não havia tanto compadrio entre os autores brasileiros e muitas vezes uns criticavam aos outros. Também mudavam de opinião, o que é saudável. Ou seja, o ambiente intelectual não estava boiolizado como o que vemos hoje.

(Bem, antes que a patrulha da correção me alcance com seus dedos pegajosos, informo que boiola tem também o significado de indivíduo fraco ou medroso, tá? OK? Certo? Então tá, podem abraçar seus dicionários e dormir tranquilos).

E, além de não haver tanto compadrio, era uma época agitada, com o vanguardismo tentando abrir a golpes de facão as brumas parnasianas e naturalistas. O painel que os textos do livro toca é amplo — vai desde o higienização de Lobato até as lutas de Oswald contra o “desprezo pela inteligência” na direção do PCB, das tendências nacionalistas e conservadoras do modernismo brasileiro até o humor praticado pelo movimento, do encantamento e à frustração dos dois Andrades e, é claro, de muitos e muitos projetos irrealizados.

A pergunta de fundo não é nada fácil: o que é o Brasil, qual é sua identidade? É claro que a resposta não está no livro, mas a discussão é bonita.

Livro fundamental para quem se interessa por cultura no Brasil.

.oOo.

O historiador Éder Silveira confirma com o indicador: é o único gremista que sabe escrever em Porto Alegre | Foto: Joana Berwanger / Sul21
O historiador Éder Silveira confirma com o indicador: é o único gremista que sabe escrever em Porto Alegre | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Obs. final: o que me deixa encafifado é o fato de tão bom autor ser gremista, incidência que ele não declina em seu livro. Por anos, o mítico Impedimento andou procurando bons cronistas gremistas. Os resultados foram claros: eles não sabem escrever direito. Os raríssimos bons ou eram deprimidos ou não se mostravam suficientemente disciplinados para a tarefa. O único azul que escreve bem — além de dançar tango — em Porto Alegre é Sergio Faraco. Ele torce para o Cruzeiro, sim, o cruzeirinho de Erico Verissimo e Moacyr Scliar. O outro é Peninha.

faraco-cruzeiro

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O Amor de Mítia, de Ivan Búnin

O Amor de Mítia, de Ivan Búnin

o-amor-de-mitiaIvan Búnin (Prêmio Nobel de Literatura de 1933) fez parte daquele grupo de nobres russos, ricos ou decaídos, que fugiu da Revolução de 1917. Era vizinho de Nabokov em seu exílio parisiense. A Rússia de sua novela O Amor de Mítia (1925) ainda era a dos nobres e grandes donos de terras tão bem descritos por Tchékhov. Não é para menos. Filho de uma antiga família de proprietários rurais, Búnin viu sua fortuna ser perdida pelo avô e depois pelo pai, um alcoolista viciado nos jogos de cartas. Teve que trabalhar cedo na cidade para ganhar a vida, mas a infância na Rússia pastoril czarista parece tê-lo marcado muito.

O tema de O Amor de Mítia não é a política, mas a inquietação e o Ciúme com C maiúsculo. Mítia tem muito a ver com o Otelo de Shakespeare. Ele ama e ama uma jovem saracoteante que se dedica a concertos, saraus e aulas de teatro. Mas o inferno do ciúme faz com que ele não viva nem aproveite nada. Tudo isto é descrito rapidamente até que ele deixa Moscou e parte para a casa da mãe no interior, cansado dos desentendimentos com Kátia. Como vários apaixonados, crê não ser correspondido.

O livro é basicamente a espera de Mítia. Ele quer receber cartas de sua amada, mas ela não manda. Estará ocupada? Não gosta mesmo de escrever? O que estará fazendo? Ela é fiel? Onde está Kátia? E ele passeia pelo campos, belamente descritos por Búnin em tradução do excelente Boris Schnaiderman. Em seus passeios, sempre acaba no Correio, à procura de cartas.

O contato com os camponeses leva-o a uma negociação direta para a compra de sexo. Búnin descreve toda a estratégia criada por um funcionário da fazenda. Mas ele não quer Alionka, quer Kátia, que persiste em seu silêncio.

É um bom e perfeitamente esquecível livrinho que dá para ler numa sentada ou deitada (118 páginas com capítulos bem curtos).

ivan-bunin

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch

A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch

A guerra não tem rosto de mulherA guerra não tem rosto de mulher é mais um excelente produto do curioso, trabalhoso e eficiente método de Aleksiévitch fazer literatura. O livro é formado de pequenas introduções da autora e de trechos de entrevistas que são retrabalhadas, classificadas e ordenadas. O efeito é o de um torpedo, cheio de dor e humanidade. Os relatos são curtos, vindos todos de mulheres soviéticas que lutaram na 2ª Guerra Mundial. Suas funções são de francoatiradoras, enfermeiras, lavadeiras, médicas, pilotas, cozinheiras, artilheiras, comandantes, tanquistas, sapadoras, enfim, elas estiveram em todos os gêneros de trabalho de soldados em guerra. Matavam e eram mortas. E cada sobrevivente tem uma história diferente e pessoal para contar. A morte, é claro, é onipresente. Todos os relatos envolvem sofrimento, mas também há histórias de amor, de coqueteria e de pequenas alegrias.

Todos sabem que a história é escrita pelos vencedores, mas é pior do que isso, ela é escrita por homens e apenas sobre homens. As mulheres são apenas enfermeiras? Nada disso. E a escolha do feminino no livro de Aleksiêvitch é fundamental. O masculino ama as ações honrosas, a narrativa oficial, enquanto que as mulheres são mais afeitas às “anotações da alma” e aos sentimentos. Nada de estatísticas, de narração de batalhas, apenas detalhes do que é viver dentro de um conflito como aquele..

Isto é, depois de sete anos de entrevistas e de quilômetros de cassetes gravados, Svetlana Aleksiévitch não escreveu um livro somente sobre a guerra, mas principalmente sobre o comportamento do ser humano na guerra, perseguindo menos “os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo que é pequeno e humano”.

A originalidade de Aleksiévitch está em nos descortinar as mulheres não reconhecidas e que participaram ativamente de uma guerra crucial do século XX. Os relatos são crus e violentos, dando-nos uma realidade despida de heroísmo. O ambiente parece muito artificial para aquelas mulheres que usavam cuecas — por falta de calcinhas –, não menstruavam e trabalhavam dias sem dormir. O paradoxo entre ser mulher e soldado é um dos principais pontos dos relatos.

Não é um livro tão bom quanto Vozes de Tchernóbil — os fatos narrados em A guerra não nos causam as cada vez mais terríveis surpresas de cada capítulo daquele –, mas a autora bielorrussa nos dá uma notável contribuição para o entendimento do que foi o dia a dia do maior conflito armado de todos os tempos.

Svetlana Aleksiévitch
Svetlana Aleksiévitch

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Oito e meio, de Federico Fellini

ottoemezzo_02Ontem, na Sala 8 do Espaço Itaú do Bourbon Country em Porto Alegre, teve início a 8 ½ Festa do Cinema Italiano com a apresentação, em gloriosa cópia renovada e digitalizada, do clássico de Federico Fellini Oito e meio (8½). A programação da Festa pode ser conferida aqui.

.oOo.

Rever Oito e meio (1963) em impecável projeção digital é uma grande alegria. Para quem não sabe, Oito e meio é um filme autobiográfico de Federico Fellini cujo foco está no bloqueio criativo de um diretor de cinema, alter ego do próprio diretor. Este já tem os atores contratados e disponíveis, o produtor, o dinheiro do mesmo e a equipe, só lhe faltam as cenas e a história. Só. Muitas das cenas do filme foram retiradas da vida do próprio Fellini, outras, de seus sonhos e inseguranças. O título é uma referência à carreira do próprio, que até então já havia dirigido sete filmes e meio, sendo este o de número 8,5º.

Uma das imagens do sonho da sequência inicial
Uma das imagens do sonho da sequência inicial

O cineasta chama-se Guido Anselmi. Ele está esgotado e resolve se internar em uma estação-de-águas para buscar inspiração. Anselmi é conhecido por fazer filmes desencantados, sem esperança, e ele próprio parece tomado destas perspectivas em relação a si mesmo. Da mesma forma, Fellini passara por um desses bloqueios, só que utilizou uma estratégia engenhosa para contornar o que estava sentindo: narrou a própria dificuldade. Então, Oito e meio é metalinguístico, usa a linguagem do cinema para comentar um filme que parece que não vai acontecer. Só que muita, mas muita coisa ocorre na tela enquanto os personagens perguntam ao diretor o que farão.

Como disse, a ideia foi concebida em meio às dificuldades do próprio Fellini com um roteiro que simplesmente não andava. No caso real, a confiança em Fellini era tão completa que a produção — cujo roteiro nem existia — já tinha recebido financiamento, elenco principal e equipe técnica. Então, em vez de comunicar aos profissionais o cancelamento, o diretor criou uma original, rarefeita e simbólica história sobre um diretor de cinema sob bloqueio criativo. E foram realmente notáveis a liberdade de criação e os recursos disponibilizados pelos produtores. Assim, os fantasmas do diretor ganharam corpo e voz num filme de narrativa caótica, com um vasto exército de atores e figurantes, mas com cenas altamente estudadas. Várias delas parecem verdadeiros balés realizados em frente às câmeras. Todo um mundo onírico é mostrado paralelamente à realidade.

Fellini demonstra a seu alter ego Mastroianni como fazer
Fellini demonstra a seu alter ego Mastroianni como fazer

É um filme incrivelmente belo e confuso. O olho de Fellini parece mover-se impacientemente sobre cenas altamente plásticas, sem se fixar. Estamos realmente assistindo a uma crise. Guido Anselmi — interpretado por Marcello Mastroianni — é vazio e parece não ter o menor respeito por si e pela produção. Parece arrependido do que está causando, mas não consegue ou não quer fazer a máquina do cinema parar. O resultado é um filme todo quebrado em diversos episódios soberbos.

Também é uma história de culpa, de uma vida compartimentada onde a mentira está presente em todos os escaninhos. Ele diz aos produtores que tem um filme, quando na verdade não tem. Diz aos atores que o roteiro está pronto, quando não escreveu nada. Tenta apaziguar sua mulher — Anouk Aimée, lindíssima –, enquanto tem um caso.

Na cena da mesa do café, Guido está com sua esposa enquanto a amante, Sandra Milo, parece mostrar fisicamente a falta de direção do filme. Toda torta, suas pernas voltam-se para um lado, mas ela vai para outro… (Nota: Milo era a amante de Fellini na vida real). Como se não bastasse, ele parece criar uma mulher de sonho, a inatingível Claudia, vivida por uma inacreditável Claudia Cardinale.

Cardinale: beleza ideal, inacreditável
Cardinale: beleza ideal, inacreditável

Tudo isso vai acontecendo em uma crescente e estranha atmosfera de desencanto circense, um clima do qual apenas Fellini tinha a fórmula. A incerteza sobre o filme, a angústia, parecem não importar muito. Valem mais o riso e a reflexão. O final é esplêndido ao mostrar a vida como uma festa. Após formar uma imensa roda com todos os figurantes e equipe, espécie de melancólica despedida (a vida é triste, mas também é uma festa a ser compartilhada), Fellini cria um dos mais emocionantes momentos do cinema quando Guido e sua esposa, reconciliados, aderem à dança que Guido não dirige mais, passando a fazer parte dela.

Guido entra na dança da vida, confundindo-a com a arte
Guido entra na dança da vida, confundindo-a com a arte

 

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Francofonia, de Alexander Sokúrov

Francofonia, de Alexander Sokúrov

francofonia-Sokurov(****) Filmado em boa parte no Museu do Louvre, Sokúrov questiona a permanência da arte mesmo em um momento tão grave quanto a 2ª Guerra Mundial. Jacques Jaujard, diretor do Louvre, e o Conde Wolff-Metternich, general da ocupação nazista em Paris, inimigos e posteriormente colaboradores, formaram uma aliança para a preservação dos tesouros do museu francês. Explorando as relações entre arte e poder, o filme mostra o Louvre como um exemplo de nossa civilização. Misturando documentário e ficção, o denso filme do grande Aleksander Sokúrov (de Arca Russa e Fausto) reflete poeticamente sobre os papéis da arte e da civilização. Como pano de fundo, vemos toda a grande cultura europeia tendo que escapar de ser pisoteada. Belo filme.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Funcionário do Mês, de Gennaro Nunziante

Funcionário do Mês, de Gennaro Nunziante

Funcionario do Mês(***) Esta comédia dirigida por Gennaro Nunziante arrecadou mais de € 65 milhões (US$ 71 milhões), transformando-se no filme italiano mais rentável de todos os tempos. Com humor ácido e muitas críticas ao funcionalismo público na Itália, o longa traz a história de Checco, interpretado por Checco Zalone. Ele nasceu numa família que possui uma larga linhagem de burocratas que nunca soube o que é ter que colocar a mão na massa e trabalhar duro. Em sua vida adulta, ele desfruta da confortável e ultra vantajosa posição de funcionário público numa repartição que não exige muito. Uma verdadeira sinecura. Depois de muito evitar o trabalho duro, sua situação começa a mudar quando um governo mais austero assume a missão de fazer cortes no funcionalismo público, forçando sua demissão ao colocá-lo em funções cada vez piores. Eu curti.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

País das Neves, de Yasunari Kawabata

País das Neves, de Yasunari Kawabata

País das Neves KawabataSó hoje soube que a editora Estação Liberdade fez nova tradução deste País das Neves. A nova tradução deve ser ótima, conheço a autora, Neide Hissae Nagae. Li outras traduções de Kawabata pela Estação e elas foram totalmente satisfatórias. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer desta tradução (capa ao lado) de Marina Colasanti, feita lá pelos anos 70 para a Nova Fronteira. É a que acabo de ler… Cheia de erros de pontuação e concordância, a tradução não é direta do japonês, tendo vindo do alemão… Foi uma luta não apenas chegar ao final, mas tentar espreitar o Kawabata que estava por trás de tanta confusão. Não obstante, o livro por trás parece ser bom.

Este pequeno romance de Kawabata foi publicado primeiramente em 1937, depois passou por diversas revisões até chegar a seu formato definitivo em 1948. Tantos cuidados… Bem, vou tentar esquecer a tradução.

Shimamura é um homem de Tóquio, casado e com filhos, que viaja repetidamente ao “país das neves” região alta e fria do Japão, cuja neve muitas vezes isola povoados inteiros. É um intelectual observador e tranquilo, mas com enorme fascinação pelo feminino. Já no trem que o leva, fica apaixonado pela voz da jovem Yoko. Depois, tendo se fixado em uma hospedaria de águas termais, Shimamura é apresentado a Komako, uma das gueixas mais requisitadas no povoado. Ele retorna anualmente, sempre na estação fria, ao local e lá forma um estranho triângulo amoroso com Yoko e Komako.

Kawabata é um escritor poético, provocativo e delicadamente indecente. Este livro é o que dá maior liberdade ao leitor. As cenas são jogadas e interrompidas de tal forma que nunca são conclusivas. É um anti-naturalista que causa estranheza e prazer. Como sempre, Kawabata não descreve nenhuma cena de sexo, mas só um louco não veria o enorme erotismo da história.

Kawabata é sempre bom, mas, por favor, fujam desta edição da Nova Fronteira. Busquem a da Estação Liberdade, feita direto do japonês por quem sabe traduzir.

Yasunari Kawabata
Yasunari Kawabata

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

eles eram muitos cavalos RuffatoJames Joyce / Luiz Ruffato

Ulysses / Eles eram muitos cavalos

Dublin / São Paulo

16 de junho de 1904 / 9 de maio de 2000

18 capítulos organizados cronologicamente / 70 capítulos organizados cronologicamente

Capítulos escritos em estilos variados / Capítulos escritos em estilos variados

Com personagens principais / Sem personagens principais

Vamos fazer este blog voltar ao gonzo. Então, começo dizendo que gosto muito do ser humano Luiz Ruffato, dos livros que tinha lido dele, de suas posições e artigos. Porém este Eles eram muitos cavalos, que é tão bem avaliado por aí…

Ora, nada impede que um escritor de nosso tempo vá ao menu que Joyce disponibilizou para dele fazer uso, mas a sombra do irlandês é tão imensa que fiquei na expectativa da luminosidade e dos momentos extraordinariamente belos que se repetem como superfetações em Ulysses. E eles não pintaram. Talvez, se eu não tivesse o livro de Joyce tão presente na memória, pudesse apreciar melhor Eles eram muitos cavalos.

O livro me pareceu trancado pela falta de capítulos mais extensos, pela troca constante de personagens — rápida e desconcertante entre tantas divisões –, pela formatação algo exagerada — quase escandalosa entre tantos negritos, itálicos e mudanças de fonte –, pela falta de caracterizações mais fortes, pelo especialmente tolo início do capítulo 28, enfim…

O que deu errado? Não sei. Sei que talvez, se fosse paulistano, pudesse entender melhor a teia de citações e referências do romance e me entusiasmar por ele. Sabe quando tu lês algo que parece bom, mas que tu não gosta? É o caso.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva Ernani SsóQuando falei com Ernani, ele me disse que Corvos na chuva era uma coletânea de contos escritos nos últimos, sei lá, 25 ou 30 anos. Logo fui torcendo o nariz, achei que leria uma série contos desiguais em suas perspectivas, temas ou em qualidade, mas errei. O saldo foi muito, muito positivo. Acho que Ernani passou um bom filtro na coleção e, dos 15 contos do livro, deliciei-me verdadeiramente com uns 12, mas quando não gostei, a coisa foi realmente séria. Cheguei a reler Nana, nenê, O anjo exterminador e Safáris. Estava desconfiado de mim, queria conferir se não estava sonolento ou cansado demais para entender a intenção do autor. Porque o resto é excelente, a começar pelo conto que dá título ao livro e fecha o volume.

Corvos na chuva é uma realização extraordinária. Tem história clara e bem contada — onde todas as revelações vêm na hora certa — sob uma furiosa e sofisticada metalinguagem. Coisa rara. Olha, é arrebatador mesmo. Outros excelentes contos são Primeira comunhão, O rei da sanfona e o curtíssimo As férias do coveiro. Os dois primeiros são interessantes e diferentes abordagens ao amor adolescente. Já o terceiro é para se dobrar de rir. Deve ser da fase inicial e mais humorística de Ssó. Puro humor negro.

Os outros contos revelam um autor com pleno domínio de seus meios. Seu virtuosismo e ritmo dobra-se facilmente às necessidades de cada história. Ou seja, nenhum dos oito contos não citados são esquecíveis e um deles… Bem, vamos escrever algumas frases sobre o ousado Outra missa.

Outra missa é uma nova versão de Missa do galo, obra-prima de Machado de Assis. Ssó passa a narração em primeira pessoa para Conceição. Meus sete leitores são cultos e sabem que, no original, o narrador é o estudante Nogueira. A nova versão é respeitosa e nela as intenções da moça ficam, obviamente, mais claras para o leitor. Afinal, Conceição é o “polo ativo”, por assim dizer, da rarefeita história. Mas a sutileza de mostrar ao leitor o crescendo no qual a sedução ainda é possível (e até provável) e a demonstração de que o momento de decisão tinha passado e não seria mais possível recuperar, só estão no conto de Machado e no de Ssó. Lembro de um antigo livro em que vários autores — Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Osman Lins, Nélia Piñon… mais alguém? — recriaram o conto de Machado e nenhum deles chegou perto desta pequena joia criada por Ernani Ssó.

Recomendo muito.

P.S. — Ernani me esclarece por e-mail: “As férias do coveiro é o penúltimo conto escrito. O último foi o Outra missa“.

Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!