O Sorriso do Vampiro (por Ernani Ssó)

O Sorriso do Vampiro (por Ernani Ssó)

Ou o humor na obra de Dalton Trevisan

Ernani Ssó

Sem busto de vampiro na pracinha

Quando o Márcio Renato dos Santos, curador da FLIBI (Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná), me ligou pra perguntar se eu topava falar sobre o humor na obra do Dalton Trevisan, eu disse sim no mesmo segundo. Foi uma irresponsabilidade, claro. Eu gosto de humor e reli muito o Dalton, mas não sou um especialista em nada, apenas alguém com curiosidade. É bem provável que as pessoas que me ouviram podiam trocar de lugar comigo com grande vantagem.

Mas eu sinto que tenho uma dívida com o Dalton. Não só eu, o Brasil também tem, e como tem. Mas vamos deixar o Brasil pra lá, eu só pago as minhas dívidas e de preferência as que não envolvem dinheiro.

Os críticos reconheceram que o Dalton é um grande escritor, claro. Todos nós sabemos disso. Mas, veja, reconheceram e em seguida saíram de fininho. Fora o Ivan Lessa, não lembro de ninguém que festejasse o Dalton. Até autores de segunda são festejados no Brasil, ou Bananão, para os íntimos. Será porque ninguém tem coragem de botar busto de vampiro na pracinha?

O diabo é que o Dalton é mais profundo, mais preciso e com maior domínio técnico que todos esses concorrentes a miss simpatia que enchem jornais e academias, ou que se dedicam mais à divulgação do que a escrever.

Bem, me desculpem a empolgação, ou não desculpem, porque é mais do que justificada. E como não consegui falar nem um terço do que anotei, volto ao assunto, espero que um pouco menos confuso.

Falta de humor

Vocês não sei, mas eu deploro a falta de humor na literatura brasileira. Sim, sempre se fala no humor do Machado, ou do José Cândido de Carvalho ou do Campos de Carvalho. Mas mesmo os que se dizem machadianos ou cantam sua admiração por Campos de Carvalho, na hora de escrever assumem um arzinho de sobriedade senhorial. Quem é o herdeiro do deboche brincalhão de José Cândido de Carvalho? Eu não conheço. No máximo vi a linguagem que José Cândido criou ser chupada pelo Dias Gomes na novela O bem-amado. Até um humorista como Millôr Fernandes dizia que humor não é pra rir, mas fazer pensar. Ele parece se defendendo da velha acusação do Aristóteles de que a comédia é menor, que a tragédia é que está com tudo.

Parece que se confunde seriedade com cara fechada, com solenidade. É óbvio, qualquer um pode ser raso ou mesmo idiota com a cara mais solene do mundo e enganar os trouxas. E qualquer um pode ser profundo e risonho ao mesmo tempo, vide o Oscar Wilde, o exemplo mais caindo de maduro. É como dizia Cortázar: como se Cervantes fosse solene, carajo! Ou alguém tem coragem de dizer, ainda hoje, que o Quixote não é sério, que não trata de uma das grandes misérias humanas, o desajuste entre a realidade e nossos desejos? Melhor ainda: trata de um modo exemplar, que continua fazendo sentido e sendo divertido quinhentos anos depois. Os sérios profissionais têm de engolir que o primeiro e talvez mais importante romance seja um romance cômico.

Há quem atribua a pose de seriedade e a linguagem empolada de grande parte da literatura brasileira à nossa tradição bacharelesca. Pode ser, não? Começamos com muitos advogados, muitos deles de classe média, ou mérdia, como dizia o João Antônio. A primeira coisa que o cara fazia – ainda faz, na verdade – era esfregar na cara da patuleia o seu anel, sem jamais desconfiar da sua cafonice. Eu sou doutor. Olha com quem está falando – aí o chorrilho de palavras difíceis, pretensamente bonitas, com surtos gramaticoides cabeludos. Exagero meu? Leia as “poesias” de Ayres Britto, pra sentir o gostinho.

O humor apareceu muito mais na crônica, me parece. Um gênero considerado menor, pra jornal, pra consumo de gente que nem lê livro. Pode ser que isso tenha contribuído pra que alguns autores escrevessem com mais naturalidade. Se você senta pra escrever com o peso de fazer grande literatura, de desbancar Dante e Goethe, talvez embatuque, não? Veja o Cervantes, que se saiu melhor justamente quando sentou pra escrever um livro sem ambição, uma mera sátira aos romances de cavalaria. O certo é que temos grandes cronistas, mas, o nível desses cronistas a mim, pelo menos, parece maior que de nossos ficcionistas. Digo isso de um modo geral, bem entendido. Eu gostaria muito de ler um romancista do nível do Rubem Braga, pra começo de conversa.

Fomos mais felizes na música popular, não? Nossa música tem relevância internacional, coisa que não acontece de jeito nenhum com nossa literatura. Nossa música popular, também de um modo geral, escapou da maldição do doutor. Veja a quantidade e a qualidade de grandes letristas cheios de humor: Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Chico Buarque, Aldir Blanc – seria tão bom que muitos dos nossos poetas tivessem o talento deles. Mas até o baixo clero se mostra humorado. Pra não ir mais longe, o Erasmo Carlos, no começo da Jovem Guarda, era muito bem-humorado.

O caso do Chico é estranho. Com letras geniais, muitas cheias de humor, na hora que sentou pra escrever romances, em geral ficou chato, sem bossa nenhuma. Deve ser praga dos imortais da academia.

O humor, como tudo, tem vários níveis. O que o Renato Aragão faz é humor. Mas, não vamos esquecer – porque faz bem ao coração e ao fígado –, o que Jorge Luis Borges e Julio Cortázar fizeram também é humor. Se você cortar o humor da obra deles, vai fazer um estrago e tanto. O humor está inclusive na visão de mundo deles. Mas quem pensa neles como humoristas? Mal se pensa neles como escritores com senso de humor.

Eu até gosto de comédias que são apenas comédias. Mas, desde o começo – gosto que se acentuou com os anos –, prefiro a comédia dramática, ou a tragicomédia. É um gênero complicado, porque misturar dois elementos de climas tão diferentes, tipo mocotó com limonada, exige pulso muito firme, muito tato, muito faro pra equilibrar tudo. Mas me parece que é o gênero que está mais próximo dessa mixórdia que chamam de – pra agravar, em maiúscula muitas vezes – vida.

Aristóteles dizia que a tragédia é superior à comédia porque a comédia não tem a dor. Podemos inverter a frase: a tragédia é inferior porque não tem o riso ou o ridículo. Eis o ponto: a tragicomédia tem tudo.

Acho que é aí que o Dalton Trevisan se enquadra.

O humor do Dalton

O humor dele é pouco explícito e é, praticamente sempre, negro, ou ironia gótica, como disse a crítica Barbara A. Bannon. Por falar nisso, há um achado que considero genial no conto “Três irmãos”, em O rei da terra: “Logo está lavando as mãos e abrindo os armários – não é o espelho o melhor esconderijo de um fantasma?”.

Vocês sabem, há humor pra se gargalhar, pra rir, pra sorrir, às vezes apenas mentalmente, e há um humor tão duro, tão cortante, que nossa reação talvez seja o silêncio ou uma exclamação de espanto. Há no Dalton de tudo um pouco, mas, claro, o predomínio é de Jack, o Estripador, disfarçado de palhaço. Outra coisa amarga: os heróis dele são tão escrotos que não dá pra gente torcer por eles.

Meu exemplo favorito, pra ilustrar essa quizumba, é de um conto chamado “Barata leprosa”, que acho que li no Pasquim e nunca encontrei em livro, que me lembre. Trata-se de um suspiro de absoluta solidão: “Ah, se eu tivesse uma dessas mulheres de plástico, como eu a faria feliz!”

Às vezes a coisa está na linguagem. Mas com o Dalton nunca é apenas a linguagem, as palavras estão a serviço sempre, nunca por elas mesmas. A dor mais banal, com um pequeno toque de mão, se revela patética, sem falar que traça a estreiteza do universo da personagem, como nesse lamento de incompreensão de uma mãe tirada das páginas de A trombeta do anjo vingador: “Era cruel com o velho por amor ao filho? Como podia o filho não ficar ao seu lado? Se não era ela, quem enchia de água o filtro? Sempre lavando e chorando, varrendo e rezando, quem sabia fritar o ovo dos dois lados?”

Como disse, talvez na maioria dos casos seja mais ironia que humor. Isso acontece com Machado também. Só que no Machado isso é notado e cantado em prosa e verso. Pelo menos hoje em dia. Daqui a cem anos, por motivos de força maior, não terei como saber o que aconteceu, mas tenho minhas dúvidas de que haverá muitos interessados em ter vampiro como modelo. Quem tem jugular, tem medo.

Cortes e recortes

Há uma observação do Stevenson, num ensaio, que me parece de uma sensatez luminosa. Se você pede pra um menino contar seu dia, ele não vai dizer que ao se levantar desabotoou seis botões do pijama, deu quinze passos até o banheiro, abotoou tantos outros botões da camisa, tomou sete goles de café com leite, mastigou vinte vezes o pão com manteiga e desceu vinte e dois degraus pra sair de casa. Ele vai separar os fatos significativos, apenas. Daí que não interessa o acúmulo de descrições e detalhamentos, embora muitos escritores insistam, por pura tara ou tomado de uma espécie de êxtase.

O Dalton, entre dezenas de fatos e de detalhes, separa só os que interessam, quer dizer, aqueles que ilustrarão a ausência do resto, porque os silêncios, as lacunas são parte integrante do texto. Pra isso é preciso ter ótimo olho e precisa, também, ter vivido um pouquinho, não? Sem ter vivido e pensado no que se viveu não se tem a menor ideia do que importa.

O fato de Trevisan ser econômico ao extremo, de apostar em detalhes às vezes ínfimos, exige muito do leitor. De modo que é preciso reler – e reler como um Nero Wolfe examinando o depoimento de um suspeito. A cada releitura, nos damos conta do quanto deixamos escapar. A cada releitura, o Dalton se revela melhor do que pensávamos.

Vejamos um trechinho do dia a dia de um viúvo em Desgracida: “De volta à Pensão Bom Pastor com um jornal, às vezes uma revista. Um pouco de jornal, daí o rádio, logo me chateio. Mais jornal, suspiro, os pequenos anúncios, gemido. No fim começo a falar sozinho. Sabe que faz bem?”.

Deu pra notar? Ele recorta com tesourinha uns cacos de realidade e os cola numa ordem e com uma precisão perfeitas, quero dizer, de um modo que o efeito é cem vezes mais poderoso do que um acúmulo de cenas ou descrição de três páginas de lágrimas e lamúrias. É isso o que o humor e a poesia fazem quando são humor e poesia pra valer.

Acho esse trecho exemplar. Repito, o Dalton é o verdadeiro gigolô das palavras. Ele bate nelas pra mostrar quem é que manda no pedaço. No texto dele, as palavras nunca estão lá pra se exibirem apenas. Estão sempre em função da expressão. Elas são sempre meio, nunca fim.

Por falar nisso, li em algum lugar que o estilo do Dalton é antiliterário. Não entendi no primeiro segundo. Tive de lembrar que o pessoal acha Iracema, do José de Alencar, literatura. Bom, é literatura, no mau sentido do termo.

Pequenos fatos, pequenas observações

Há muitos exemplos de humor em pequenos fatos, ou em observações de passagem. Vejamos alguns.

No conto “Morte na praça”, há uma ceninha em duas frases: “à passagem do morto as lojas iam fechando as portas. Os homens revezavam-se nas alças do caixão: o cemitério perto, mas o defunto pesado.”

Detalhes realistas, simples. Primeiro, o fechamento das lojas indica um costume da época, talvez um respeito convencional, todo mundo se conhece na cidadezinha. Depois, a troca nas alças do caixão. Até aí, tudo normal, o leitor pode pensar várias coisas, até que os homens se revezam pra todos terem oportunidade de carregar o morto. Mas quando Dalton nota que o cemitério é perto e o defunto pesado, temos algo cômico. Ele não se deixa contaminar pela solenidade da situação. Na verdade ele premeditou a coisa. Veja, se ele diz apenas que o cemitério é longe ou que o defunto é pesado, não tem graça. Se diz que o cemitério é longe e o defunto pesado, força a barra, a graça diminui. Mas ao contrastar a distância e o peso, ele faz a formulação perfeita.

Lembrem do Mario Quintana falando do mistério da comicidade. Se você vê um perneta descendo a ladeira, qual a graça? Mas se você vê três pernetas descendo a ladeira? Há inumeráveis detalhes nos contos que provam que esse mistério não é nada misterioso para o Dalton.

Há quase a mesma piada no conto “Uma coroa para Ritinha”, do volume Abismos de rosas. Quase, porque aqui o cômico é melancólico, poético até. Vejamos: “Ali do cemitério poderiam ir todas para o bordel das normalistas. Disputavam uma alça do caixão, a da frente reservada para ele, que abria o cortejo. Como é que, tão leve nos seus braços, pesava tanto no caixão?”

Vocês lembram do conto “O caniço barbudo”, do livro Frufru Rataplã Dolores? O herói é todo doente, apaixonado pela mãe e, claro, tem ódio do pai. Quando o velho morre, o herói “Renova sempre a assinatura do jornal preferido do pai. Despreza as notícias de terremoto, ataque terrorista, inundação diluviana. O interesse antes nos pequenos anúncios que no fim do mundo”.

Talvez se possa dizer que o Dalton também despreza terremotos, ataques terroristas, inundações diluvianas. Que o negócio dele, como escritor, são os pequenos anúncios. Ele lida com os dramas cotidianos, muito particulares. Naturalmente que esses dramas valem em qualquer canto do mundo. Ele trabalha com uma lupa, nunca olha de longe, os movimentos das tropas não interessam, ele quer saber por que certo soldado manca. Ele é o ás do detalhe preciso, mas que muitas vezes parece banal. Quando digo preciso quero dizer que através dele temos o resto, a pessoa toda e, se somos chegados a somar dois mais dois, essa pessoa dentro do dito contexto maior. O mundo indo para o brejo e o camarada se queixando de que o sapato aperta o calo no joanete. Como se vê, é um retrato aterrorizante do bípede implume – o egoísmo, a irrelevância, a burrice extrema.

Se lermos com cuidado uns dez dos melhores contos do Dalton, compreenderemos mais facilmente o que acontece no país hoje do que lendo todo o jornalismo da grande imprensa. Mais, compreenderemos inclusive a calhordice da grande imprensa com seus eminentes colunistas chapas-brancas. Não conheço obra que tenha mais gente canalha ou burra ou maluca. Ou gente com tudo isso e mais alguns novos predicados.

No conto “O segredo do noivo”, do livro O rei da terra, temos um rapaz atormentado por um drama que só podemos supor. Ele quer mostrar pra noiva o que o atormenta, como quem deseja mostrar um objeto que precisa de distância e discrição. Ela não aceita, prefere casar e resolver tudo depois. Ele avisa: se você não for minha, não será de ninguém. A insinuação, claro, é que ela “não pode” ser dele.

Bom, na noite antes do casamento temos a seguinte cena: “Não dormiu aquela noite, a família ouviu que João andava pelo quarto. Três tentativas ele fez e nem uma deu certo: prendeu um fio no teto, amarrou na ponta um lápis vermelho e com a força do pensamento queria girá-lo. Com a mesma ordem dos olhos encarniçou-se por apagar a chama de uma vela. A terceira é muito triste para contar”.

Esse fecho é perfeito – e muito engraçado. Mas qual seria essa triste terceira tentativa? Alguém aí tem um palpite? Tremo só em pensar no que um psicanalista diria. Talvez, pra começo de conversa, que o lápis vermelho é um símbolo fálico. Afinal, tem forma cilíndrica e é vermelho, não? Fazer girar o lápis com o pensamento seria a vontade de fazer o pingolim se levantar? E apagar a chama da vela? Apagar o desejo pelas mulheres e tocar a vida? Mas a terceira tentativa ainda é mistério.

Pelo menos um exemplo de humor direto, brincalhão. No conto “Vozes no retrato” (na versão mais recente, não a de Desastres de amor:

“Com arte feiticeira desencantara um retrato de João.

“– Credo! Olhos fatais de Dom Pedro Primeiro”.

De volta ao grotesco. No conto “A gorda do Tiki Bar”. Primeira linha, a ironia direta: “Cambaleou na luz negra do inferninho: quanto mais escuro, mais lindas rainhas”. Mais adiante, ainda na mesma linha: “Credo, bem. Mais tarado que o meu marido”. Por fim, isto: “Nu, de meia preta e relógio de pulso. Ela surgiu balouçante na pontinha do pé, encheu todo o quarto. Se não a esperasse, teria gritado de susto”. Parece que estamos numa daquelas comédias do cinema italiano da década de 70, quando os índices relativos do ar eram carregados de sarcasmo.

O vampiro de Curitiba

Vamos falar do conto “Vampiro de Curitiba”? Talvez seja inevitável, deve ter gente esperando, vão me cobrar se não falo. Quem sabe o Dalton, com uma obra tão extensa, sinta algum ressentimento por esse conto, que recebe um destaque que em muitos momentos ele pode sentir como imerecido. Ou, nessas alturas, pode ter se resignado, não? Tanto que aceitou ser chamado de Vampiro de Curitiba, confundindo a imagem do escritor – que jamais deu moleza pro sentimentalismo, segundo muitos o principal fator de sucesso – com a do tarado escroto.

Seja como for, o fato é que esse conto se destaca, mas, veja, não porque o Dalton não tenha muitos outros contos tão bons quanto esse ou melhores. Literatura não é concurso de miss, onde se mede a beleza com fita métrica, o que, em minha opinião, é uma ofensa às mulheres em geral e à Fanny Ardant em particular.

Não gosto muito de comparar autores ou livros. Não acho que seja justo. Cada autor, cada livro têm suas intenções, mexem com coisas secretas e profundas que às vezes mal transparecem, enfim, são aventuras diferentes. Depois tem a pessoa que avalia, com suas manias e miopias – mais importante, com seus segredos que às vezes não confessa nem a si mesma mas que o texto pode despertar. Ao comparar dois autores o que mais aparece somos nós mesmos. Eu, faço questão de reconhecer, gosto de coisas diferentes conforme a época, ou até o dia. Ou gosto das mesmas coisas de modo diferente, conforme o tempo.

Acho que o que faz a diferença nesse conto é que ele nos dá um personagem – e nos dá de corpo inteiro, em poucas páginas. Só isso já é imenso. Mas isso é feito num conto que nem tem enredo, não tem história. É só um cara divagando enquanto olha as mulheres na rua.

Quem encarna na gente é o personagem. É que nem o Quixote, que em seguida não precisou mais do Cervantes. Até o Rocinante logo não precisou do Cervantes. Eles, o Nelsinho, o Quixote e o Rocinante andam por aí sozinhos, independentes. Como no caso do Cervantes, muita gente que não leu o Dalton já ouviu falar do vampiro de Curitiba.

Acho que isso acontece, primeiro, porque o Dalton acertou no retrato, que é feito menos de fatos do que de um modo de falar e de ver o mundo. Segundo, porque esse sujeito, em toda a sua escrotidão, encontra eco na gente ou em nossa memória, em nossa experiência.

Vejamos isso melhor. Quando Nelsinho vê na rua uma mulher com o marido, pensa: “Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama – acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos”.

Essa observação me lembra outro personagem de um conto de que não lembro o nome. O sujeito diz: “velho sujo também tem sentimentos”. Talvez nossa identificação, maior ou menor, com o vampiro de Curitiba seja o reverso disso: boas pessoas também têm sentimentos sujos.

Outra coisa: esse conto é cheio de energia, é contagiante e engraçado. Pelo menos eu acho engraçado. O que não dá pra negar é que é extremamente irônico. E a ironia às vezes se volta contra o próprio personagem, que por alguns segundos parece se dar conta da própria loucura.

Nelsinho se define nas primeiras frases: “Veja, a boquinha dela está pedindo beijo – beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz”.

O sexo é o caminho da felicidade mas é um perigo mortal. Pobres mulheres. Porque Nelsinho atribui a felicidade e a dor a elas, felicidade e dor inseparáveis. Curitiba está menos no mapa do Brasil do que no Velho Testamento, a meio caminho entre Sodoma e Gomorra. Nelsinho não pensa que tem parte ativa no negócio. Até o fato de ele ser um canalha, oco de pau podre cheio de aranhas e escorpiões, é devido à existência das mulheres.

Em outros contos isso é levado ao delírio. O sexo trazendo embutida a punição pelo prazer. Lembrem-se de personagens transando com as mulheres mais horrorosas. O velho sujo, em nome dos seus sentimentos, tem de se punir. É uma doença monstruosa.

Há outra coisa presente em todo o devaneio do vampiro. A boquinha dela está pedindo beijo, certo? Mas onde o sinal disso? Pro Nelsinho o fato de essa boquinha existir e ser bonita é prova de que está pedindo beijo.

Mesmo que isso fosse verdade, pede pra quem? Nelsinho jamais pensa que uma mulher pode ter desejo e esse desejo ser legítimo e natural – e, note-se, com endereço específico. É sempre uma safadeza, um pecado. Se o desejo é por ele, é porque ele é poderoso, nada menos.

Não é exatamente assim que pensam os que dividem as mulheres entre as que merecem ou não merecem ser estupradas? Frase, aliás, que poderia ter sido dita por Nelsinho.

O estupro pode ser apenas o exercício da lei do mais forte, lei tão onipresente quanto a lei da gravidade. Mas em muitos casos também é punição. Pela lógica do vampiro, mulher nenhuma tem o direito de ser bonita, de querer ser vista e de não ter interesse pela maioria dos homens ou ter, que Deus atalhe, por outras mulheres. E se se entregar a muitos homens, é a pior das putas, merece a morte do mesmo jeito. Enfim, nas mãos do vampiro, mulher nenhuma tem escolha nunca. Ou é a Virgem Maria ou a puta da Babilônia.

Peço paciência: vamos pensar no óbvio ululante.

Por que uma mulher não pode ser vaidosa? Por que ela não pode desejar ser admirada? E, ao mesmo tempo, dar apenas pra quem ela quer dar? Só porque ela é bonita e vaidosa tem de pagar pedágio pra todo marmanjo que aparecer?

Os homens também não são vaidosos? Também não querem ser admirados por todas as mulheres? Mas, ao mesmo tempo, não querem ser agarrados por todas, só pelas que acham bonitas e interessantes, não é mesmo?

Olha, estou mastigando isso tudo porque conheço muita gente que acha que o Dalton está ultrapassado, que fala de um mundo que não existe mais, que Curitiba não está mais entre Sodoma e Gomorra apesar do esforço dos fundamentalistas evangélicos. Esse mundo poderia dizer, como Mark Twain, que sua morte foi um tanto quanto exagerada.

Há algumas semanas li, não lembro se no El País ou no UOL, as seguintes manchetes: “A cada 4 minutos, uma mulher é espancada”; “A cada 4 horas, uma menina com menos de 13 anos é estuprada”.

Nelsinho continua em ação. Sem bigodinho, mas é ele, talvez fazendo o tipo lenhador. Sem dente de ouro, agora com dente de porcelana, mas é ele.

Foram 8 anos no Sul21

Foram 8 anos no Sul21

A foto abaixo foi tirada na redação do Sul21 no dia 9 de março deste ano. No Facebook, até porque eu não disse nada, o pessoal pensou que era apenas mais uma sexta-feira feliz de uma turma meio festeira. Mas não, era minha saída do jornal. Por isso, estou bem no centro da foto. Era uma retirada voluntária e planejada, sem grandes traumas. É claro que paguei chopes pra galera, deixando todo mundo feliz, ora bolas, inclusive eu.

O dia da despedida na redação do Sul21
O dia da despedida na redação do Sul21 | Foto: Guilherme Santos, com o próprio, Luiza, Matheus, Annie, Luís Eduardo, Milton, Marco, Joana, Fernanda, Giovana e Ana.

Permaneci quase oito anos no Sul21. O jornal começou a publicar diariamente em maio de 2010 e fui efetivado em junho. Foi um período estável trabalhado entre pessoas honestas — a começar pela diretoria da empresa — e de bom nível. Aprendi muito e com muita gente.

Quando entrei, a sede do jornal era numa velha e charmosa casa da Rua Fernando Machado na encosta do morro perto do Alto da Bronze. A casa era pra lá de estranha, tinha uns cinco andares. Na verdade, cada um deles abrigava apenas uma sala ou banheiro. Eram escadas e mais escadas. Tenho lembranças muito boas de lá. Foi um período de enorme crescimento do jornal. Começou ainda na gestão da Núbia Silveira como editora e depois explodiu com o Daniel Cassol, certamente a mais criativa das pessoas com as quais trabalhei no Sul21. O Cassol dava um jeito de tornar interessante a mais chata das audiências públicas. Se houvesse mais gente como ele, as publicações de esquerda seriam bem mais confiáveis e lidas do que são.

Ainda no tempo do Cassol, mudamos para a atual sede da Gen. Câmara, muito mais funcional e próxima de bares, restaurantes e das sedes do governo e assembleia.

Não pretendo escrever aqui a história do jornal, apenas fazer um agradecimento geral, publicar as fotos que tenho e seguir a vida. Trabalhei como editor-assistente, repórter e me metia onde achava necessário dar uma ajuda. Em minha fase final, tornei-me editor do Guia21. Até hoje me pedem para criar um Guia do Ócio no meu blog, mas vai ser complicado. Não tenho muito tempo e teria que voltar aos cinemas.

Dia desses, numa manhã em que acordei cedo, fiquei olhando para o teto, fazendo uma lista de todas as pessoas com as quais trabalhei no jornal. São jornalistas, colunistas e blogueiros que tiveram repetidas participações e que, portanto, fizeram o Sul21. Peço antecipadamente perdão a quem esqueci. Gosto de todo mundo e muitos deles já me deram o prazer da presença aqui na Bamboletras. Vamos à lista e depois às fotos?

Adroaldo Mesquita da Costa
Ana Ávila
André Carvalho
Annie Carolline Castro
Antônio Escosteguy Castro
Augusto Maurer
Astrid Müller
Bárbara Arena
Benedito Tadeu César
Bernardo Jardim Ribeiro
Bruno Alencastro
Caio Venâncio
Carlos Latuff
Carmen Crochemore
Caroline Ferraz
Céli Pinto
Cristiano Goulart
Cristóvão Crochemore Restrepo
Daniel Cassol
Daniela Sallet
Daniele Brito
Débora Fogliatto
Eduardo Silveira de Menezes
Enéas de Souza
Ernani Ssó
Felipe Nino Prestes
Fernanda Canofre
Fernanda Melchionna
Fernanda Melo
Fernanda Morena
Filipe Castilhos
Flávio Fligenspan
Francisco Marshall
Gabriela Silva
Gilmar Eitelwein
Giovana Fleck
Gregório Lopes Mascarenhas
Guilherme Escouto
Guilherme Santos
Igor Natusch
Israel Cefrin
Iuri Müller
Jaqueline Silveira
Joana Gutterres Berwanger
Jorge Buchabqui
Jorge Seadi
Julia Landim Lang
Lélia Almeida
Lorena Paim
Lucas Cavalheiro
Lucia Serrano Pereira
Luís Augusto Farinatti
Luís Eduardo Gomes
Luiz Antônio Timm Grassi
Luiza Bulhões Olmedo
Luiza Frasson
Maia Rubim
Manuela d`Ávila
Marcelo Delacroix
Marco Weissheimer
Mariana Duarte
Marino Boeira
Matheus Leal
Milena Giacomini
Mogli Veiga
Musta Juli
Natália Otto
Nícolas Pasinato
Nikelen Witter
Nelson Rego
Núbia Silveira
Paulo Timm
Pedro Nunes
Pedro Palaoro
Rachel Duarte
Ramiro Furquim
Raul Ellwanger
Roberta Fofonka
Robson Pereira
Ronald Augusto
Rui Felten
Samir Oliveira
Sergio Araujo
Tiago Prosperi
Tyaraju Terra
Vicente Nogueira
Vivian Virissimo
Vlad Schilling
Yara Pereira
Zeca Azevedo

O time crescendo ainda na sede da Rua Fernando Machado
O time crescendo ainda na sede da Rua Fernando Machado | Ramiro, Vlad, Rachel, Seadi, Vivian, Igor, Guilherme Escouto, Prestes e Milton.
Já em nosso escritório extra oficial: o Bar Tuim.
Já em nosso escritório extra oficial: o Bar Tuim. | Samir, Prestes, Rachel, Pedro, Milton, Vivian e Igor.
No restaurante do SindiBancários, comemorando o primeiro mês em que alcançamos 1 milhão de acessos.
No restaurante do SindiBancários, comemorando o primeiro mês em que alcançamos 1 milhão de acessos. | Carmen, Milton, Débora, Igor, Samir, Nícolas, Iuri, Guilherme Escouto e Rachel
Parte do time num encontro no Café Macuco da Jerônimo Coelho.
Parte do time num encontro no Café Macuco da Jerônimo Coelho. | Igor, Milton, Iuri, Bernardo, Fofonka e Débora.
Aniversário do Igor. Nossa chefe tinha viajado e deixado alguma grana pra nós. Sobrou. No último dia...
Aniversário do Igor. Nossa chefe tinha viajado e deixado alguma grana pra nós. Sobrou. No último dia… | Samir, Igor, Débora, Iuri, Nícolas, Milton, Guilherme Escouto e Bernardo.
No elevador voltando para o trabalho após o almoço.
No elevador voltando para o trabalho após o almoço. | Bernardo, Milton, Samir, Débora, Fofonka e Nícolas.
Apesar dos sorrisos, um dia não muito feliz: o da saída do Ramiro Furquim.
Apesar dos sorrisos, um dia não muito feliz: o da saída do Ramiro Furquim. | Caio, Débora, Samir, Yara, Guilherme Escouto, Ramiro, Carmen, Mariana, Milton, Fofonka, Bernardo e Jaqueline.
No primeiro Gre-Nal com torcida mista.
No primeiro Gre-Nal com torcida mista em encontro não combinado. | Latuff, Milton, Igor, Caio e Filipe.
Mil almoços no Tuim.
Mil almoços no Tuim. | Milena, Milton e Luís Eduardo.
Mil e um almoços no Tuim.
Mil e um almoços no Tuim. | Milena, Gregório, Milton e Joana.

Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País

Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País
Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Machado de Assis e Guimarães Rosa.

O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.

Relatos universales que no hay que perderse

Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.

— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).

— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).

— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).

— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).

— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).

— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).

— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).

— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).

— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).

— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).

— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).

— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).

Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.

Contos estrangeiros:

— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.

Contos brasileiros:

— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva Ernani SsóQuando falei com Ernani, ele me disse que Corvos na chuva era uma coletânea de contos escritos nos últimos, sei lá, 25 ou 30 anos. Logo fui torcendo o nariz, achei que leria uma série contos desiguais em suas perspectivas, temas ou em qualidade, mas errei. O saldo foi muito, muito positivo. Acho que Ernani passou um bom filtro na coleção e, dos 15 contos do livro, deliciei-me verdadeiramente com uns 12, mas quando não gostei, a coisa foi realmente séria. Cheguei a reler Nana, nenê, O anjo exterminador e Safáris. Estava desconfiado de mim, queria conferir se não estava sonolento ou cansado demais para entender a intenção do autor. Porque o resto é excelente, a começar pelo conto que dá título ao livro e fecha o volume.

Corvos na chuva é uma realização extraordinária. Tem história clara e bem contada — onde todas as revelações vêm na hora certa — sob uma furiosa e sofisticada metalinguagem. Coisa rara. Olha, é arrebatador mesmo. Outros excelentes contos são Primeira comunhão, O rei da sanfona e o curtíssimo As férias do coveiro. Os dois primeiros são interessantes e diferentes abordagens ao amor adolescente. Já o terceiro é para se dobrar de rir. Deve ser da fase inicial e mais humorística de Ssó. Puro humor negro.

Os outros contos revelam um autor com pleno domínio de seus meios. Seu virtuosismo e ritmo dobra-se facilmente às necessidades de cada história. Ou seja, nenhum dos oito contos não citados são esquecíveis e um deles… Bem, vamos escrever algumas frases sobre o ousado Outra missa.

Outra missa é uma nova versão de Missa do galo, obra-prima de Machado de Assis. Ssó passa a narração em primeira pessoa para Conceição. Meus sete leitores são cultos e sabem que, no original, o narrador é o estudante Nogueira. A nova versão é respeitosa e nela as intenções da moça ficam, obviamente, mais claras para o leitor. Afinal, Conceição é o “polo ativo”, por assim dizer, da rarefeita história. Mas a sutileza de mostrar ao leitor o crescendo no qual a sedução ainda é possível (e até provável) e a demonstração de que o momento de decisão tinha passado e não seria mais possível recuperar, só estão no conto de Machado e no de Ssó. Lembro de um antigo livro em que vários autores — Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Osman Lins, Nélia Piñon… mais alguém? — recriaram o conto de Machado e nenhum deles chegou perto desta pequena joia criada por Ernani Ssó.

Recomendo muito.

P.S. — Ernani me esclarece por e-mail: “As férias do coveiro é o penúltimo conto escrito. O último foi o Outra missa“.

Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Vivências de um pobre comentarista na cultura gaúcha

Vivências de um pobre comentarista na cultura gaúcha

gato 5Neste final de ano, por alguma razão 100% inédita, recebi alguns convites para falar sobre o espaço da crítica literária e musical em nosso estado, o RS. Há muito o que dizer e, quando dos convites, a primeira coisa que me veio à mente foram as caras. Escrever sobre os escritores e músicos de nossa província é ver caras feias, é fazer perigar amizades ou perdê-las. Há aqueles que reagem com elegância e merecem ser citados — casos do falecido escritor Moacyr Scliar, de Luiz Antonio Assis Brasil, de Sergio Faraco e do maestro Tobias Volkmann, entre outros — e os que jamais citaria neste texto, pois não gosto nem de caras viradas nem de cumprimentar o ar.

Domingo passado fui ao cinema. Estava sentado, aguardando o início de uma sessão e uma pessoa que entrou e procurava lugar me negou o cumprimento. Fiquei pensando no motivo e penso ter descoberto. O não cumprimento não se deveu a uma crítica negativa, mas à ausência de crítica após ter recebido seu livro. Ou seja, na província, as suscetibilidades e o ressentimento podem ser catalisados por coisas muito pequenas. Há toda uma cultura de compadrio que tem de ser respeitada. Eu elogio o teu livro, tu elogias o meu. Eu amo de paixão tua interpretação e tu dizes que sou um gênio.

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É desagradável ser criticado negativamente, claro. Porém, quando alguém escreve um livro ou vai a um palco, passa do espaço privado ao público e pode, sim, receber críticas orais ou por escrito. Porém, no RS, quem quer ter um milhão de amigos deve silenciar a parte ruim, abrir um sorriso, suspirar embevecido e tratar de achar algo de bom para dizer. É o que o escritor ou músico esperam. E, nossa, como sofrem! O escritor normalmente ganha a vida em outra atividade, comete suas fantasias com o maior esforço e pensa que merece ser sempre elogiado por sua esforçada colaboração na construção do edifício da cultura. O músico não tem apoio, luta com dificuldades e depois vem um raio de um arrogante e destrói seu esforço e idealismo em dois parágrafos.

Tem também aquele curioso escritor que colaborava comigo, mas que apareceu na capa do Segundo Caderno da ZH e que passou a me descartar até no Facebook– coisa que a RBS não lhe pediu, obviamente.

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Há uma função na atividade crítica. No mínimo, o crítico deve ser uma pessoa com grande vivência em sua área de atuação. É óbvio que deve gostar dela. Nunca vi, por exemplo, um crítico de cinema que odiasse os filmes ou que considerasse um sofrimento passar duas horas fechado numa sala escura. Nunca vi um que não se interessasse por roteiro, encenação, filmagem e montagem. Ou seja, o crítico deve ser minimamente qualificado de forma a poder orientar quem se interessa por lê-lo. Pelo conteúdo do que escreve, o público imediatamente nota se a crítica lhe serve ou não, se aquele cara tem algo a lhe dizer ou se é melhor deixar de lado.

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Existe uma poética na crítica. O leitor leu um livro, sentiu o livro, gostou ou não gostou. Porém, é comum acontecer de ele não saber de seus motivos e o crítico o ajuda a dizer: olha, eu gostei (ou não) por causa disso. O livro pode crescer para o leitor. A critica é o desmonte parcial de uma máquina. Às vezes contextualiza a obra, às vezes dá uma explicação tão surpreendente que acaba abrindo portas jamais visitadas. A crítica também pode ser útil ao escritor, porque ele escreveu páginas e páginas em impulso artístico e pode ocorrer de ele desconhecer suas razões. O crítico, deste modo, iluminaria zonas das quais o autor não tem plena consciência.

Mas dá muita confusão exercer um espaço crítico numa província como a nossa. Incluo-me nela, é claro, faço parte da sociedade gaúcha, e não tenho a pretensão de ser um antídoto ao paroquialismo, ao bairrismo, ao regionalismo orgulhoso e tolo. Tudo o que faço é tristemente insuficiente. Quando escrevo uma resenha favorável, sou saudado exageradamente. Quando faço uma resenha simples e nada profunda, não li o livro como deveria. Porém, quando critico o livro pode acontecer qualquer coisa.

gato 1A moda é o autor colocar em seu perfil do Facebook algo mais ou menos assim. “Este cara (eu) disse isso do meu livro. Vocês concordam com ele?”. Bem, como resultado, seus amigos me dão uma saraivada de golpes, muitos abaixo da cintura. Já fui chamado de tudo. Acostumei-me com as ofensas, mas o que me fascina é quando me chamam  de recalcado. Sei lá, gosto de palavras com vários significados. Só que, como dirá o Ernani Ssó num texto que sairá amanhã no Sul21, denominar-me assim não melhora nem piora uma crítica. O que piora ou melhora uma crítica é o nível dos argumentos – e chamar um crítico de recalcado nem é argumento, é só um ataque pessoal, uma tentativa óbvia de desacreditar o crítico. Veja, me chamar de recalcado é como me chamar de feio. Não faz a menor diferença na discussão, já que não estamos num concurso de beleza.

Houve um “artista” que me chamou de recalcado no título de um direito de resposta que concedi. O cara me chamou de “recalcado e formatado”. Explico o “formatado”: minhas opiniões não seriam minhas, mas sim de outros, pessoas maquiavélicas que já são inimigas do cara e que me assoprariam o que devo escrever. Pura paranoia. Com este artifício, o autor afirma ser impossível que aquela opinião seja minha… E ainda me acusou de usar imagens de divulgação sem permissão… Ah, tem outra ofensa que acho sensacional: “tu não tens trajetória”. Houve outro que passou a ameaçar minha namorada em função do que escrevo. É um show de horrores.

Idealmente, os assuntos da arte deveriam ser discutidos com serenidade, com a possibilidade de discordâncias. De cordiais discordâncias. A opção pelo ataque ao crítico revela insegurança — coisa que só admiramos em poucos autores –, narcisismo — coisa que só admiramos em Oscar Wilde — e infantilidade — coisas que só admiramos na literatura infantil… Sabem? Eu acho que temos que ser tolerantes com quem leu o livro até o fim. Mas pedir humildade a um autor provinciano é foda. Esse papo de exigir somente as criticas “construtivas” ou de estigmatizar o interlocutor me parece muito aparentado do período Médici, Brasil Ame-o ou Deixe-o. “Se tu não gostas, por que escreveste a respeito?”, ouvi de outro. Ah, outra coisa que me exigem é dar um tom solene à crítica. Nada de humor ou ironia!

Enquanto isso, a literatura e a música ficam lá, num canto, esperando que passe a briga de casal. E não passa.

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Como o diabo gosta, de Ernani Ssó

Como o diabo gosta, de Ernani Ssó
A capa da edição da Cosac Naify
A capa da edição da Cosac Naify

Como o diabo gosta é um livro delicioso. Ele já foi O diabo a quatro em 1985 e, radicalmente revisado e ampliado pelo autor, está sendo relançado neste ano em bela edição da Cosac Naify. Merece, e não apenas por estar completando 30 anos. O que talvez não mereça é minha participação de hoje à noite no lançamento da nova edição na Palavraria, batendo um papo com Ernani Ssó. Ainda bem que pretendo falar pouco. Porém, neste momento, peço desculpas ao Ernani, pois aqui no blog quem faz os solos sou eu.

Ernani realizou uma auto-entrevista a la Glenn Gould numa crônica chamada 50 tons de vermelho.  O título é chamativo, mas é redutor. Ali, ele começa dizendo que “os resenhistas, como todo mundo nos jornais, trabalham demais, leem os livros correndo, quando leem, e escrevem a toda, sem pensar direito”, o que justifica a entrevista. Ele tem toda a razão, principalmente na necessidade de pensar, tanto que hoje acordei e fiquei matutando sobre como escrever a respeito de um livro do qual gostara muito. O problema é que é mais fácil dizer o que ele não é. Mas vamos ao que ele é.

Numa manhã, Camilo Severo tenta inspirar-se para escrever um romance. Seus pensamentos são interrompidos por lembranças desordenadas. O livro é isso, uma série de capítulos fora da ordem cronológica, às vezes escritos na primeira pessoa, às vezes não, talvez inspirado por O Jogo da Amarelinha do Cortázar que Ernani tanto ama. O livro se passa em Porto Alegre, no triângulo obtuso formado pela cidades de Ermo, Sombrio e Turvo (SC) e um pouquinho mais longe, no Farol de Santa Marta (SC), provavelmente durante o final dos anos 70, quando aquela região estava sendo recém descoberta pelos turistas, principalmente gaúchos. Para lá se dirigiam hordas de bichos-grilos a fim de alugar as casas de pescadores. Lá, ficavam tomando banho de mar e de caneca, bebendo cerveja, consumindo drogas e trepando. Era bom, participei.

Por que é mais fácil dizer o que ele não é? Pelo fato de que Como o diabo gosta ser um livro enganador: ao leitor mais superficial pode parecer uma série de descrições do desbunde, da perda do autodomínio, da loucura e das muitíssimas relações sexuais mantidas pelo narrador. Realmente, o sexo é um tema importante de um livro que se pretende meio bandalho, só que não podemos esquecer que este se apoia mais na literatura do que no sexo. O texto é excelente. Tudo aparece em seu lugar e tem ritmo. Exatas, as palavras só poderiam estar onde estão. Isto é que torna o livro uma delícia e é sempre difícil elogiar um volume dotado de tamanho potencial de prazer e que não envolve grandes e claras teses. É um livro cujas melhores metáforas vêm da musicalidade e isto confunde.

E há o humor. Como o diabo gosta é um livro engraçadíssimo, mas não é um livro de humor. A história também revela a angústia do personagem principal, presente desde o elaborado e culto “tô nem aí” de Camilo, que é refletido no desespero de algumas cenas de sexo. A repetição de alguns fatos — descritos de forma inteiramente diversa no romance — não resulta num quadro divertido, mesmo que se ria deles. Isto parece ser muito bem controlado por Ernani, que espalha pistas que formam um quadro de uma época em que, ao lado da vida no desbunde, havia uma ditadura se desmanchando.

Recomendo muito.

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Julio Cortázar — 100 anos

Julio Cortázar — 100 anos

Publicado em 24 de agosto de 2014 no Sul21

Por Ernani Ssó

Há cem anos – em 1914, dia 26 de agosto –, nascia Julio Cortázar. Eu poderia seguir assim por páginas, mas sei que o velho cronópio não tinha paciência com a burocracia, daí que pensei em comemorar a data redonda de um modo não muito redondo, às vezes me deixando levar por digressões entusiasmadas. Mais, como o texto foi escrito faz um certo tempo e retomado várias vezes, contém acréscimos em forma de ps, o que, em minha opinião, deixou tudo mais vivo, ou desleixado se você quiser.

Gabriel García Márquez disse que “Os ídolos infundem respeito, admiração, carinho e grandes invejas, claro. Cortázar inspirava todos esses sentimentos como muito poucos escritores, mas além disso inspirava outro menos frequente: a devoção”. Aí está: devoção. Mas por quê? Que diabos Cortázar tem que desperta devoção em tantos leitores? Eu mesmo, um leitor bastante crítico, até maledicente segundo os maledicentes, continuo devoto. Por quê? O texto a seguir é, entre outras coisas, uma tentativa de resposta a essa perguntinha.

julio cortazar

Um tal Julio ou amores literários

“A melhor qualidade de meus antepassados é a de estarem mortos; espero modesta mas orgulhosamente o momento de herdá-la. Tenho amigos que não deixarão de me fazer uma estátua em que me representarão de bruços no ato de chegar a um charco com rãzinhas autênticas. Botando uma moeda numa ranhura, me verão cuspir na água, e as rãzinhas se agitarão alvoroçadas e coaxarão durante um minuto e meio, tempo suficiente para que a estátua perca todo o interesse.”

Julio Cortázar, Rayuela.

Grandes escritores há muitos, mas amados são poucos, não? Faça as contas: quantos você ama? Admiração e simpatia não valem. Falo de amor a sério, tipo Romeu e Julieta, Dante e Beatriz, Jane Calamidade e Wild Bill Hickok, por aí.

Você ama Dostoievski? Ama Flaubert? Certamente há quem ame, como Mario Vargas Llosa a Flaubert e Robert Arlt a Dostoievski, mas você, mas multidões? Eu sou permissivo em matéria de literatura. Demais, quem sabe. Tenho paixões, casos, flertes: Julio Cortázar, Mario Quintana, Jorge Luis Borges, Stendhal, Gogol, Turguenev, Tchecov, Rabelais, Cervantes, Melville, Stevenson, Graham Greene, John le Carré, Georges Simenon, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Ivan Lessa, Luis Fernando Verissimo, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Edgar Allan Poe, Dickens, J. D. Salinger, Philip K. Dick, Brian W. Aldiss, Stanislaw Lem, Raymond Chandler, Ross Macdonald, Sófocles, Henry Miller, Campos de Carvalho, Irmãos Grimm, Kafka, T. S. Eliot, Drummond, Rubem Braga, Ítalo Svevo, Anne Tyler – eu poderia continuar por páginas e assim mesmo esquecer alguns. Olha aí, tinha me esquecido de Nabokov, como é que pode?

Se alguém estranhar na mesma lista nomes como Borges e Stout, Melville e Gardner, meus mais sentidos pêsames. Isto aqui não é um concurso de seriedade. Isto é uma festa. Falo de amor ou de puro prazer. Também falo de inquietações, mas vamos deixar para os bustos de bronze a pose de intelectual preocupado com o grave destino deste vale de lágrimas.

Se na hora de subir na arca Noé reclamasse do excesso de bagagem? Se eu pudesse levar apenas um autor? Acho que escolheria Cortázar. Cheio de remorsos eu escolheria Cortázar. Sei que minha escolha será apoiada por muitos com grande algazarra. Com Cortázar sim pode-se falar de multidões. Por quê? Não acho que tudo o que ele escreveu seja divino, maravilhoso, pelo contrário, mas continuo fiel, mesmo com Borges tomando a dianteira todo santo dia, mesmo que hoje eu mal suporte algumas coisas que me encantaram na adolescência, como certa partes de Los premios, por exemplo. Isso apenas complica a pergunta, não?

Tenho uns palpites. Quer dizer, eu pensava que tinha, porque há meses tento escrever estas notas e em poucas frases acabo enrolado nos meus próprios argumentos. Quando consigo ser legível, não passo disso – falta cor e brilho ao meu texto. O pobre parece um anúncio de néon desligado: informa mas e daí? O mais sensato seria desistir, só que aí me sinto injusto: Cortázar faz parte da minha biografia, não posso, não devo nem quero silenciar.

O jeito talvez seja ir lembrando algumas leituras.

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Primeiro Round

Foi amor à primeira leitura. Uma colega de aula, a jornalista Heloísa Golbspan, me emprestou Los premios. Que susto! Então era possível escrever assim? Adolescente sem a mínima graça, ainda não tinha metido na cabeça ser humorista, mas era freguês de caderno (H) de Mario Quintana e fazia plantão na banca de jornal, toda semana, à espera do Pasquim. O diabo é que agora encontrava o humor e a irreverência num romance. Eu não era um ignorante total, conhecia Oscar Wilde, Mark Twain, o Machado de Assis de O alienista e o García Márquez de Cem anos de solidão, mas faltava a eles alguma coisa. Por mais que eu me divertisse, por mais que eu me encantasse, não poderia dizer: estão falando comigo, diretamente comigo, como a um camarada ali no bar da esquina – sem solenidade, sem impostura. Se você não é sensível a isso, sinto muito, meu nego, mas nunca me convide pra um chope.

Fiquei louco com a intimidade que sentia com os personagens. Mal tinha começado o livro, me vi sentado com Lopez no London bebendo uma Quilmes Cristal não muito gelada. Era isso. Até a temperatura da cerveja era real. Como esse tal Cortázar conseguia isso? Como conseguia que eu aceitasse tão prontamente o seu jogo? Por que eu me sentia participante desse jogo? Por que logo eu me esquecia de que era um jogo?julio_cortazar

Na certa o humor influi. Não uma série de tiradas, de gracinhas, que podem perturbar, mas um jeitinho, o astral de algo que está como quem não quer nada entre as palavras e vai se infiltrando em nosso sangue e logo rola manso em nossas veias como os primeiros goles de um bom tinto. Isso modifica nossa disposição para com a – suspiro – vida. Não é que a gente se torne indulgente, é que há uma espécie de desdramatização, ou a supressão daquele ar de peste que liquida com tantas ficções, porque Los premios tem muitos momentos dramáticos. Cortázar anota ridículos e infâmias dos seus personagens sem tremer a mão, mas há, sei lá, compaixão e ternura – ele nos diz as piores coisas sobre nós mesmos sem que haja aí uma ânsia de extermínio da humanidade.

Outra coisa: o mimetismo. Parece uma besteira, mas só quem tentou sabe como é difícil. Cortázar se cola nos personagens: o que está escrito é o que eles pensam, sentem e veem. Mais: o texto não nos informa sobre uma ação, tenta ser essa ação – isso nos puxa para dentro do livro. O autor é um intermediário invisível entre o que é dito e nós, leitores.

Releio os dois últimos parágrafos com cansaço. Explicam um pouco, mas não o que importa, o estado de graça efervescente em que o livro me deixou. Cortázar uma vez disse: “Essa biblioteca me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Quando escrevo sou feliz e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade não estou dizendo felicidade beata: pode ser exaltação, amor, raiva, digamos: potenciação”.

Estamos ficando quentes. Você, não sei, mas eu realmente me senti feliz, o que acabou sendo um problema. Depois de provar o gostinho da felicidade, a maioria dos autores se tornou muito chata, muito mais chata do que já me parecia. Na certa isso acontece com outras pessoas em relação a outros escritores e na certa, como eu, sentem que tiveram uma sorte danada, que de algum modo foram salvas. Salvas, entende-se, de passar o resto da vida à procura da ponta do próprio nariz.

Foto: Alberto Jonquieres
Foto: Alberto Jonquieres

PS: Outro dado nada desprezível: Cortázar procurava evitar os truques sempre, ou criava novos. É preciso muita cancha ou muitas releituras para se saber como foi que ele escreveu, principalmente os contos. Mas alguns desses contos me resistem até hoje. Parece que sempre existiram, como pedras, árvores, rios. Parece que apenas usaram Cortázar para se revelar. Eu ao menos não consigo pensar no mundo sem “La casa tomada”, “Después del almuerzo”, “Circe” ou “Las fases de Severo”. O próprio Cortázar repetia não ter mérito pelos contos, não ser responsável por eles, que era o primeiro a se surpreender com o que saía da máquina.

PS2: Pensando em contos como “Las fases de Severo”, “Circe”, “Después del almuerzo”, “Cefalea”, “Las puertas del cielo”, “Cartas a mamá”, “El perseguidor”, “Los venenos”, “La puerta condenada”, “Las Ménades”, “Final de juego”, “Intrucciones para John Howeell, “Todos los fuegos el fuego”, “El otro cielo”, “Los pasos en las huellas”, “Manuscrito hallado en un bolsillo”, “Verano”, “La noche de Mantequilla”, “Tango de vuelta”, “Fin de etapa”, “Satarsa”, “La escuela de noche”, “Pesadillas”, “Silvia”, “Siestas” e “Ciao, Verona” me pergunto: Cortázar é mesmo um autor só pra adolescentes? Deve ser. Tenho visto muitos adolescentes com quarenta ou cinquenta anos ou mais. Na verdade, tenho visto até alguns vovôs ainda em plena adolescência.

Outra coisa: muitos críticos dizem que lá pelas tantas Cortázar começou a se repetir, que contos como “Noche boca arriba” e “Todos los fuegos el fuego” ou “La puerta condenada” e “Cartas de mamá” são a mesma história contada do mesmo jeito. Nos primeiros, a mistura de tempos e lugares distantes. Nos outros dois, o horror despontando no final de uma situação cotidiana. Sim, e daí? São os mesmos problemas vividos por pessoas diferentes, daí o clima e as emoções serem outros. O próprio ritmo, que é fundamental em Cortázar, uma espécie de dança em que mete o leitor, também é diferente. Mas mesmo que nem clima, emoções e ritmo fossem diferentes, por que todo esse nariz torcido? Qual escritor não se repete? A rigor, pra não se repetir, o cara tem que escrever apenas um livro. Ninguém troca suas obsessões como quem troca de camisa ou cueca. Sem falar que, se vamos ver direito, temos uma tendência a usar camisas e cuecas do mesmo tipo.

JULIO CORTAZAR - palimpsestos-jf.blogspot.com

PS3: Muitos meses depois, mas com Cortázar me acontece isso, retomo a conversa como se não houvesse interrupção nenhuma. Em Conversaciones con Cortázar, de Ernesto González Bermejo (Edhasa, 1978), há um trecho revelador:

Bermejo: “Las fases de Severo” talvez seja o conto mais inquietante de Octaedro, e o mais desconcertante”.

Cortázar: “Inquieta a mim mesmo. É como aquele continho de Bestiário, ‘La casa tomada’. Um dia me perguntei por que entre todos os meus contos esse inquieta muito mais do que os outros e agora acho que tenho a explicação: esse conto é a escrita exata de um pesadelo que tive.

“Sonhei o conto – com a diferença de que não havia ali esse casal de irmãos; eu estava sozinho –, o típico pesadelo onde você começa a ter medo de algo inominável, que nunca chega a saber o que é porque o terror é tão grande que você acorda antes da revelação.

“Nesse caso se tratava de uns ruídos confusos que me obrigavam a me atirar contra as portas, a fechá-las e a ir retrocedendo enquanto os ruídos continuavam avançando e algo tomava a casa.

“É curioso como lembro: era pleno verão em minha casa de Villa del Parque, em Buenos Aires; acordei banhado em suor, desesperado, frente a essa coisa abominável, e fui diretamente para a máquina e em três horas o conto estava escrito. É a passagem direta do sonho para a escrita.

“E então acho que o interesse que as pessoas têm por esse conto tem que ver não apenas com o prazer literário que possa lhe produzir, mas com algo que toca suas próprias experiências profundas. O que dizíamos de Jung e o inconsciente coletivo.

“‘Las fases de Severo’ nasceu de uma espécie de alucinação visual. Um dia eu estava lendo ou escutando música – não lembro bem – e num certo momento me apareceu mentalmente um rosto humano totalmente coberto de mariposas, de traças.

“Me produziu uma sensação de horror aquele rosto prateado, móvel, recoberto de milhares de animais, como certas máscaras astecas ou equatorianas.

“Foi tudo o que vi e, de repente, senti que o conto estava aí, que isso fazia parte de uma série de rituais. Mas isso não bastava para fazer um conto. Severo é uma espécie de profeta, de xamã que naquele clima de velório – onde parece que o estão velando – prediz os destinos, anuncia a ordem em que os presentes vão morrer. É uma coisa inventada no momento em que vi todo o conto, porque se me limitasse a descrever as fases, isso não teria sido um conto”.

É isso, me parece: somos presas do fascínio da literatura de Cortázar porque ela lida com nossas experiências mais profundas, porque essas experiências passam direto, ou quase, do sonho para o papel. A carga de emoção é avassaladora. Só depois, só muito depois, a razão ensaia alguma reação. Eu ao menos leio Cortázar como uma criança ouvindo contos de fadas, ou o botocudo ouvindo os mitos da tribo.

Parece um dado menor, mas não é, não: se apenas descrevesse as fases, não haveria conto. Se apenas descrevesse as fases, teríamos jornalismo. Sentimos as fases se formando sob nossos olhos – há a surpresa, o mistério do instante. Sentimos intimamente que o próprio Cortázar não sabia aonde aquilo ia dar nem o que exatamente significava. Ele pressentiu alguma coisa e está atrás, tocando de ouvido.

CORTAZAR

Segundo Round

Para rebater Los premios, a Heloísa – gracias, Helô – me emprestou Final de juego. Em seguida fui correndo comprar Bestiario. Desde o começo os contos de Cortázar me deram a impressão de alguém que acorda com uma aranha andando pela cara e que tenta se livrar dela com um tapa, imagem usada pelo autor em algum lugar. Sinto em cada linha a tensão, o desespero do gesto – o gesto é quase sempre inútil para o personagem, mas o personagem não renuncia a ele, nem se lamenta. Romantismo? Talvez também se possa chamar isso de saúde.

A gente sabe que cada conto (ou pelo menos os melhores) era uma aranha que Cortázar tirava de cima de si mesmo. Ao contrário de muitos, não morria abraçado com a aranha. Porque, se uma literatura cheia de aranhas não me leva a um exorcismo qualquer, nem parece admitir que essas aranhas tenham um avesso ou nem deem um segundo de folga, me sinto num jogo de cartas marcadas. Sou prisioneiro e o autor, uma espécie de carrasco. Deve-se notar que o carrasco também é um prisioneiro: ao escrever, o autor vive a aventura que eu, leitor, vivo em seguida. No fundo o carrasco é mais prisioneiro, porque o autor não conseguiu deixar de escrever, não teve opção, enquanto que eu posso muito bem ler umas linhas e atirar o livro pela janela e escolher outro.

Pra mim a leitura de um bom conto de Cortázar sempre foi a revelação da aranha sobre meu rosto com o consequente tapa. O tapa é que faz a diferença. Cortázar uma vez disse que, se não tivesse escrito Rayuela, talvez tivesse se atirado no Sena. Em Rayuela Horácio Oliveira enfrenta o diabo a quatro e no fim se mata, ou enlouquece, ou afunda na mediocridade, ou espera pacientemente recuperar o fôlego antes de tentar de novo. Seja qual for o final preferido pelo leitor, Oliveira se dá mal. Mas Cortázar se salvou através dele e nós, leitores, de uma certa forma também. Não afundamos num maelström de aranhas.

Mas houve mais, houve a invenção, houve o senso lúdico e não fui capaz de passar o fio de uma navalha entre eles. Claro que eu acho que deve ter de tudo um pouco, mas Cortázar me converteu à invenção para sempre. Acho que a realidade é um bicho muito arisco. Não se deixa nem apontar com o dedo, muito menos pegar. É preciso grande astúcia e paciência para surpreendê-lo um instante antes que fuja de novo. Parece que quanto mais a gente o persegue, mais o danado do bicho escapa e mais zomba de nós. A invenção, por aparentar fazer pouco caso do bicho, por aparentar estar se afastando dele, acaba burlando suas defesas, sem falar no que existiu em nós mesmos trabalhando a seu favor. É, se você inventa e é fiel à invenção, à sua lógica interna, suas opiniões sobre a Vida, sobre a Existência, sobre tantas coisas que se diz em maiúscula, têm menos chances de interferir e estragar a festa. Quando se inventa, o inconsciente, esse outro bicho arisco, acaba mostrando o focinho ou deixando a ponta do rabo de fora.

Depois, a invenção quase sempre é mais plástica. O que um jornalista poderia nos dar sobre um homem botando um blusão? Se for inteligente, é capaz de intuir algumas coisas sobre o homem, mas acho duvidoso ainda que essa reportagem, no caso de ultrapassar a mera correção, consiga chegar à beleza. Cortázar nos deu “No se culpe a nadie”, em Final de juego, conto que é um verdadeiro bailado de suspense e terror.

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Mas veja, Cortázar não transformou uma situação cotidiana numa aventura mortal. Ele arrancou dela uma aventura mortal. Ele descobriu nela a aventura que estava latente – porque, estamos cansados de saber, não se inventa a partir do nada. Quem não lembra de se embaraçar com um blusão quando era criança? Aquela sensação de ficar meio amarrado, meio sufocado. O conto é essa sensação levada ao limite. Se Cortázar fosse realista, se dissesse que a gente sentiu isso, a coisa morria aí mesmo, podia ser um parágrafo não muito interessante numa outra história. Não. Ele nos faz reviver a sensação. O conto deu forma à sensação, como nos sonhos. A razão, as palavras vêm depois. Mas você pode muito bem passar sem elas. Algo em você, algo no fundo do seu sangue, já entendeu, já foi tocado. Ítalo Calvino, ao comentar esse conto, disse que se sentia surrado, fisicamente. Acho muito boa essa observação, não sei se porque senti a mesma coisa. A melhor parte do “sentido” desse conto é essa surra. Difícil explicar isso pra profe botar na ficha de leitura. Fica mais fácil a gente cavar com a pá da psicanálise ou encolher os ombros: ah, os fundos falsos da realidade.

Outro detalhe, talvez ligado a isso: os melhores contos de Cortázar me deixam a sensação de serem objetos, coisas entalhadas. Simenon é que dizia que escrevia assim, como um artesão trabalhando um pedaço de madeira. Cortázar tem um pequeno texto em que mostra como se veste uma sombra. Texto poético, erótico, mas podia muito bem ser uma metáfora da escrita, não? Com as palavras e o tato certos você pode vestir uma sombra mal entrevista entre outras. Se você a vestir direitinho, ela pode parecer sólida e tridimensional.

Quanto ao senso lúdico, nem sei por onde começar. Sabe-se, uma criança que não brinca é uma criança doente. O brinquedo é um espaço que a criança abre na realidade para instalar a própria realidade num modelo mais flexível e aí poder explorá-la, aí poder se expor. Mas e nós, marmanjos? Se alguns brinquedos já caducaram para nós, outros nos aguardam, basta termos preservadas essa disposição infantil de explorador e a capacidade de encarar a realidade não como um bloco de granito mas como uma massa de modelar.

A literatura é como o brinquedo, ou é um brinquedo, a criação de um território onde a gente ensaia outros gestos, onde busca um sentido. Mas Cortázar me pegou na hora em que o vi levando o brinquedo para dentro do brinquedo. Isso dobra as possibilidades de prazer de um livro e dobra a liberdade de movimentos do escritor, coisas que vão repercutir no leitor, se é que dois mais dois é quatro.

Cortazar, julio

Terceiro Round

Não li, tomei um porre de Rayuela. Por vinte anos eu o esperava sem saber que o esperava e sem saber que preparava meu fígado apenas para ele. Foi de uma violência e de uma maravilha difícil de explicar e mais difícil ainda de engolir. Levei quase outros vinte anos e outros dez ou quinze autores para fazer um quatro razoavelmente equilibrado. Reli mais outros livros, sim, mas uma coisa é certa: tudo o que me aconteceu depois em literatura foi para me defender de Rayuela. A defesa começou a ficar interessante na hora em que passei a usar contra Rayuela as armas que a própria Rayuela me deu.

Já se disse que é um livro que agrada aos jovens. Só pode. Trata-se de uma busca – e uma busca nada sóbria. Cada página se levanta como um galo de briga contra tudo quanto é certeza, contra o que um crítico e Cortázar chamaram de status quo literário. Como eles, acho que é uma crítica imperfeita, quer dizer, o galo apanha em muitos momentos, mas veja a sangueira e o andar trôpego do vencedor. O mero sucesso de Rayuela é um sinal claro de que há algo de podre no reino das belas letras, detalhe que jamais entrará na cabeça dos Josué Montello ou Nélida Piñon desta vida, ou daquela gente que caiu de quatro com os malabarismos técnicos de Cortázar e pensa que isso é o melhor Cortázar, que isso é Cortázar.

Mas antes da crítica, muito antes na verdade, o que me encantou na época e continua me encantando agora é a atmosfera, o uso da linguagem (a luta contra os lugares-comuns, incluindo ainda os narrativos e psicológicos) e a fluência espantosa de Cortázar. Num mundo ideal, nenhum escritor seria considerado como tal se não fosse fluente, porém, contudo, todavia, as coisas sendo como são, vemos as livrarias cheias de autores que precisam de papel pautado pra escrever e deixam à mostra a bengala que usam entre uma palavra e outra. Notei, sem estranhar, que vários autores que insistem que Cortázar é um autor pra adolescentes, que eles mesmos se deslumbraram na adolescência e depois caíram si, quando ficaram adultos, fazem parte dessa turma da bengala e do papel pautado. Eles podiam se conformar com a mediocridade de um modo mais digno, me parece.

Não custava nada a Cortázar pegar Rayuela e fazer cortes, amarrar pontas, preencher vazios. Provavelmente teríamos um livro perfeito, mais um livro perfeito, mas não teríamos Rayuela. Cortázar se propõe uma espécie de esponja monstruosa que tenta absorver tudo, mesmo o que não pode ou não deve. Temos o romance e sua cozinha, o serviço sujo, confundindo assim um pouco leitura e escrita, o que exige maior participação do leitor, o que o torna quase um cúmplice, como virou moda dizer. Nas palavras de Cortázar, ou do personagem Morelli, Rayuela é o romance em gestação, autor e leitor vivendo-o juntos, no mesmo instante.

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Isso tudo parece ligado ao improviso, que Cortázar amava no jazz e tentou transplantar para o papel. Mas não se pense que para Cortázar improviso era encher páginas de qualquer coisa que lhe passava pela cabeça e deixar por isso mesmo. O poder de associação e o senso de ritmo do homem são miraculosos, e treinados uma vida inteira. Logo nas primeiras palavras, nos grandes momentos, o texto acerta o passo, entra numa cadência e segue, nos levando juntos. Cortázar disse através de Morelli que “escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por isso que chamam de pensamento e que faz a prosa, literária ou não (…). Esse balanço, esse swing em que a matéria confusa vai se formando, é para mim a única certeza de sua necessidade, porque apenas cessa compreendo que já não tenho nada que dizer. E é também a única recompensa de meu trabalho: sentir que o que escrevi é como as costas de um gato sob a carícia, com faíscas e um arquear-se cadenciado”.

Para isso é preciso uma entrega e uma vigilância totais. Qualquer interferência, qualquer cochilo, pronto, perde-se o fio das associações, perde-se o pulso do ritmo. Depois ainda tem que Cortázar revisava de forma implacável os seus textos – como disse Borges, nele cada palavra foi escolhida. Quer dizer, aquele ar de desleixo é apenas isso, ar. Como Juan, o herói de 62, Cortázar gostava de contar as coisas com uma espécie de desorganização artística, o que ajuda a disfarçar o esqueleto que sustenta a narrativa.

Por falar em ritmo, Cortázar era fanático por música. Inúmeras vezes disse que era um músico frustrado, que teria sido mais feliz na música do que na literatura. Pois é. Mas lendo-o, eu me pergunto: se ele não era, quem é músico, então?!

Cortázar é sempre movimentado, não tem nada de canção de ninar. Lemos longos trechos, onde não acontece grande coisa, de modo inflamado, como criança acompanhando o mocinho a toda no seu cavalo alazão, dando vinte tiros com seu revólver de seis. Isso é importante na medida em que muitos romances atulhados do que se chama ação se mostram intragáveis como ofícios burocráticos.

Rayuela ainda me deu o modo como Horácio Oliveira lida com as palavras, como já falei de passagem. Lembro direitinho de quando lia a cena final do primeiro capítulo, Oliveira às voltas com o cubo de açúcar no restaurante. O cubo caiu no chão e rolou, em vez de ficar parado “por razões paralelepípedas óbvias”. Não ri – não ri de pura surpresa. Eu acabava de descobrir um negócio chamado linguagem.

Foi uma sarna. Quanto mais eu me coçava, mais vontade tinha de me coçar. De tanto me coçar, com os anos comecei a achar que em grande parte do que escreveu Cortázar não se livrou das palavras: o fato de viver falando na traição delas, de surrá-las em público não demonstra como estavam ligados? Há momentos em que ele não nos deixa esquecê-las. Claro que as palavras são um prato cheio para o humor, mas não sei se não preferia um Cortázar menos luxuoso, menos exuberante às vezes. Balanço entre o autor que aponta para as palavras e o que as deseja invisíveis, como se fosse possível o leitor nem se dar conta de que lê.

Hoje, quando releio algum trecho de Rayuela, me dou conta de que continuo amando várias cenas, mas vejo com tristeza que outras parecem ter se esgotado. Quanto aos contos, bem, os que eu gostava mais são justo os que gosto cada vez mais. Talvez porque agora os compreenda melhor, porque agora sei das manhas e mesmo assim eles resistem.

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Quarto Round

A lua de mel continuou febril: Todos los fuegos el fuego, Las armas secretas, Historias de cronópios y de famas, La vuelta al día en ochenta mundos, Último round, 62 – Modelo para armar e Octaedro. Eu não era mais um leitor, era um crente. Esses livros me pareciam e me parecem mais interessantes do que outros mais bem acabados, ou profundos. Talvez eu aceite suas fraquezas porque, além do charme avassalador, Cortázar se arrisca sempre, não engorda sobre território conquistado. A literatura de Cortázar é de combate permanente, linha a linha, muitas vezes contra si mesma e contra a literatura em geral, talvez sem razão às vezes, mas e daí? Essa atitude de busca, de invenção contra a rotina, de luta mesmo quando a sabe perdida de saída, me toca e então torço, me orgulho e agradeço. Quero ser assim quando crescer. Como se vê, com Cortázar – como com todos os que realmente valem a pena – não se trata apenas de literatura, mas de visão de mundo, de postura frente a essa baderna que chamam de realidade.

Aí vieram os anos de cão.

Estava tentado a deixar pra lá, não por covardia e sim por cansaço de ver que nas discussões em que entram a política e a religião as pessoas ouvem apenas o que querem muito mais do que nas outras. Mas é aquilo, se a gente cala… Como Cortázar é um autor cheio de babados formais, manadas de oligofrênicos evadidos das faculdades de Letras, na calada da noite, cometeram todo tipo de atentado ao pudor. A política naturalmente atraiu novas manadas, pitorescas como as outras, mas bem mais sinistras.

Eu poderia citar uma porção de ataques a Cortázar, ataques que vão da canalhice ao absurdo, sem faltarem os chiliques do mais deslavado nacionalismo. Seria divertido e instrutivo, só que agora me interessam principalmente duas coisas, a literatura e o militante Cortázar. Como minhas informações sobre o militante não são muito profundas, fico num ponto que me parece chave, abrindo aspas para um pequeno texto de Cortázar que saiu em Último round, chamado “No te dejes”:

“É óbvio que tratarão de comprar todo poeta ou narrador de ideologia socialista cuja literatura influa no panorama de seu tempo; não é menos óbvio que do escritor, e só dele, dependerá que isso não aconteça.

“Em troca, será mais difícil e penoso para ele evitar que seus correligionários e leitores (nem sempre uns são os outros) o submetam a toda gama de extorsões sentimentais e políticas para forçá-lo amavelmente a se meter cada vez mais nas formas públicas e espetaculares do ‘compromisso’. Chegará um dia em que, mais do que livros, lhe reclamarão discursos, conferências, assinaturas, cartas abertas, polêmicas, idas a congressos, política.

CORTAZAR EM PARIS - LITRATURA.ORG.BR

“E assim esse justo, delicado equilíbrio que permite seguir criando uma obra com ar nas asas, sem se transformar num monstro sagrado, o prócer que exibem nas feiras da história cotidiana, se torna o combate mais duro que o poeta ou narrador terá de livrar para que seu compromisso continue se cumprindo ali onde tem sua razão de ser, ali onde brota sua folhagem.

“Amarga e necessária moral: Não se deixe comprar, garoto, mas tampouco vender”.

É, Cortázar não se deixou comprar, quando isso seria facílimo, mas – amarga e necessária observação – se deixou vender. Esteve em todas as feiras, com artigos, discursos, conferências, polêmicas. Até arriscou a pele algumas vezes em territórios quentes. Apoiou Fidel Castro sem reservas. Pôs toda a sua fama a serviço da publicidade cubana, depois nicaraguense. Segundo Saúl Yurkiévich, no suplemento de El País, “nunca deixou de ser escritor. Mas nos últimos anos escrever implicava literalmente se esconder do mundo, necessitando uma energia e uma vontade enormes que nem sempre encontrava. Dava escapadas, se refugiava em ilhas”. Agora, Cortázar não apenas entrou na roda-viva política, como passou a depreciar muito do que tinha escrito, dizendo por exemplo que os primeiros livros não problematizavam nada além da própria literatura, enfim, que eram livros do tempo da arte pela arte.

Sempre vi a expressão arte pela arte usada de modo pejorativo. Por quê? Se arte, para ser arte mesmo, precisa ir fundo no homem, jamais será uma coisa gratuita, feita de nada em pleno ar para admiradores de nada que vivem no ar. Um poema de amor é engajado, me parece, já que até o último mendigo ou o mais feroz revolucionário tem seus probleminhas amorosos. Se você acha que assuntos como a fome e a tortura têm primazia, escreva você mesmo. Para outros pode ser a solidão, a alegria, o sexo, o sonho, o brinquedo, sei lá. Mais: não se anda atrás dos temas, os temas é que vêm até a gente. Não é possível controlar o processo criativo na base da força de vontade, ou é, mas o resultado não vale um dólar furado. Limitar os temas que devem ser abordados, ou limitar os ângulos de abordagem desses temas, é o que foi dito: limitar. Qualquer pessoa, por mais imbecil que seja, é um bicho muito complexo para caber nos esquemas de crentes de qualquer espécie. Arte pela arte pode ser uma legenda pejorativa para gente que pensa que a arte é um adorno, um mero enfeite, ou deseja que ela funcione como um decreto governamental ou uma forma de assistência do tipo Exército da Salvação. Mas pode também ser a determinação do artista em ser fiel à arte, ao que a arte supõe de compromisso, quer dizer, ser profunda, tentar pegar o homem inteiro, da fome ao sonho mais delirante, não ser apenas um manual de sociologia ou economia, ou uma campanha publicitária de determinada causa, por mais justa que a causa possa ser.

Foto: fysm-149.wp.trincoll.edu
Foto: fysm-149.wp.trincoll.edu

Me perdoem o discurso, mas é que me tira do sério ver gente dizendo que o melhor de Cortázar está em Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda (publicado aqui como Orientação dos Gatos). Penso que é exatamente o contrário. O pior da ficção de Cortázar está nesses livros. Em Queremos tanto a Glenda há uns bons contos, mas falta o brilho, aquela força que arrasta tudo pela frente. Bons contos? Talvez contos corretos, com uma exceção, uma senhora exceção: “Tango de vuelta”. Com uma história mínima, e sem esforço aparente, Cortázar dá um baile em muito joyceano de plantão em matéria de como se escreve um monólogo. Por falar nisso, as oficinas de literatura deviam dar cursos sobre a técnica de monólogo de Cortázar. Coisa simples, de uns cinco anos, três vezes por semana.

Essa falta de brilho tinha sido pior em Alguien que anda por ahí, também com uma exceção, o último conto, “La noche de Mantequilla”, onde temos a implacável descrição da execução de um militante pelos próprios companheiros durante uma luta de boxe, espécie de reedição melhorada de “Los amigos”, de Final de juego. Acho que se pode falar de outra exceção ainda: “Las caras de la medalla”. Um conto de amor angustiante, muito discreto e estranho dentro da obra de Cortázar, que só pode ser compreendido inteiramente ao se ler “Ciao, Verona” (um belo conto, por sinal), que foi publicado postumamente em Papeles inesperados. No conto “Alguién que anda por ahí” Cortázar dá um show de carpintaria literária, mas isso basta? Um bom conto não é algo mais do que um texto impecável? Em “Apocalipsis de Solentiname” Cortázar parte para a denúncia política. Muito bem, este Cortázar pode ser uma pessoa melhor do que a que escreveu “La casa tomada”, o mais famoso conto dos tempos da “arte pela arte”, agora, cá pra nós, como escritor é um arremedo desse Cortázar anterior.

Veja, “La casa tomada” vai mais fundo do que a denúncia de “Apocalipsis” porque “Apocalipsis” se esgota na comprovação da denúncia, quando sobre “La casa” você pode escrever um tratado. “Apocalipsis” só permite uma leitura. “La casa” quase tantas quantas forem seus leitores. Para se ter uma ideia, houve quem viu nela “a angustiosa sensação de invasão que o ‘cabecita negra’ (o povão peronista) provoca na classe média”. Não é uma piada minha, não, para reforçar meus argumentos – embora eu goste de humor grotesco –, nem uma tentativa de fazer um conto mais fantástico do que os que Cortázar produziu. Isso foi dito por um tal Juan José Sabreli em Buenos Aires – Vida cotidiana y alienación.

"Um autor que destruiu moldes, lugares-comuns na produção literária e, sobretudo, desacomodou o leitor" l Foto: federasur.org_.br
Foto: federasur.org_.br

Um texto que permite uma única leitura é um texto raso, mecânico, numa palavra: morto. A maleabilidade de “La casa tomada” – como a palavra do profeta, é tudo para todos, como diria Borges, que Alá o proteja para sempre – aproxima o conto da própria realidade, do que ela tem de inquietante e misterioso, de ambíguo. Isso é vivo – e nada que é vivo é inofensivo, nada que é vivo nos deixa indiferentes. Através do pesadelo dos irmãos de “La casa tomada” sei mais sobre as pessoas, sobre o que há de sombra nelas, o que me deixa mais armado para compreender o que há de sombra em mim mesmo. Com “Apocalipsis” eu não tenho nada além da informação que eu teria em qualquer página de jornal.

Penso que Cortázar só acertou o passo entre sua vocação de contista fantástico com seu interesse pela política, alcançando a velha e mortal eficácia dos melhores momentos, no último livro de contos, Deshoras, com “Pesadelos”, “Satarsa” e “La escuela de noche”. Aqui a gente até agradece seu interesse pela política, porque isso ampliou o território de sua literatura, ou quem sabe do conto fantástico, que em termos de política quase nunca ultrapassou a sátira, não? Aqui a gente sente assombro por um talento que sobreviveu a uma máquina de moer carne que trabalhou incessantemente por mais de duas décadas.

PS: Quando reclamaram de sua militância política, invocando os altos destinos da literatura, já que a relegara a um segundo plano, ele disse que pouco ligava pros altos destinos da literatura, que pra ele uma ação ética valia qualquer livro que pudesse escrever. Pode parecer um peitaço da vaidade, não? Uma bela enrustida, não? Mas ele publicou Libro de Manuel sabendo que, literariamente, o livro deixava a desejar, mesmo que tenha inúmeras páginas de dar água na boca. Publicou por motivos pedagógicos — note-se, em benefício da esquerda, não da direita, e nenhuma delas parece ter entendido patavina, a julgar pelas resenhas. E não ganhou um tostão com ele. A grana foi toda pra oposição a Pinochet. Entre parênteses: admiro essa banana a uma carreira literária, mas sou egoísta, preferiria mais livros de Cortázar. O que ele escrevia, só ele escrevia. Já sua contribuição política, em termos práticos, foi mínima e poderia ser dada por quase qualquer pessoa. Mas ele tinha esperanças e era um bom sujeito, ao contrário de mim.

Julio Cortazar Portrait Session

Quinto Round

Em algum ponto de Rayuela se discute o momento certo de parar. Fala-se de Armstrong e Picasso.

“Agora os dois estão feito uns porcos. Pensar que os médicos inventam curas de rejuvenescimento… Vão continuar nos fodendo outros vinte anos, vai ver.

“– Nós não – disse Etienne. – Nós já demos um tiro neles no momento certo, e tomara que me acertem quando chegar minha hora.

“– A hora certa. Não pede nada, cara – disse Oliveira, bocejando. – Mas é isso, já demos o tiro de misericórdia neles. Com uma rosa em vez de uma bala, digamos. O que continua é costume e papel carbono (…).”

Com Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda me senti traído: Cortázar estava na fase papel carbono e não tinha se dado conta. Não é fácil, como nota Oliveira, mas eu estava mal acostumado com tanta lucidez e ironia. Levei um bom tempo para digerir o sapo.

A notícia da morte de Cortázar me pegou como a notícia da morte de um tio distante. Morria o Cortázar de Alguien que anda por ahí, não o das Armas secretas, digamos. É horrível dizer, mas esse morto não me fazia muita falta. Tempos depois li Un tal Lucas, um bom livro, me parece, mas meio rarefeito, meio como se tivesse sido escrito por um discípulo aplicado de Cortázar. O próximo, Deshoras, veio realmente fora de hora. Na época, não consegui o original e a tradução brasileira tardou mais do que devia. Deshoras fechou minha boca. Cortázar não estava velho, não estava acabado coisa nenhuma. Apenas tinha estado fora de órbita uns tempos. Mas continuo achando que devia ter posto no lixo os maus contos, tenho a mesma sensação do grupo do conto “Queremos tanto a Glenda”, o desejo de corrigir as imperfeições do nosso amor nem que seja apelando para o assassinato.

Minha última leitura, Los autonautas de la cosmopista, foi uma tristeza. A ideia da viagem me parece bela. Apenas a ideia já deixa entrever o que foi Cortázar, esse homem com jeito de menino travesso brincando de gente grande que brinca de ser menino travesso. Mas é isso, uma bela ideia muitos podem ter. O que fez a diferença foi que Cortázar a executou. Mais: executou-a em péssimas condições, ele e a mulher à beira da morte. A gente sente isso em cada linha. O livro parece escrito porque Cortázar e Carol resolveram escrever, porque precisavam escrever como se não escrever fosse admitir a derrota. Não há alegria, não há entusiasmo, não há prazer nas palavras. Até as tentativas de humor não têm graça nenhuma. Admiro a atitude dos autores, esse compromisso com o brinquedo, o compromisso de brincar com toda a seriedade até o fim, de não desobedecer as regras.Mas o livro é penoso. Não consegui terminá-lo e não consigo afastar a imagem de Cortázar nos últimos meses de vida, doente, sozinho, acabando de escrever a última linha e pensando: aí está, Carol. Posso vê-lo juntando a página ao resto do manuscrito e depois o queimando lentamente.

PS: Muitos anos depois dos Autonautas, li Papeles inesperados e Clases de literatura – Berkeley, 1980. Em Papeles, como já mencionei, há “Ciao, Verona”, um conto excepcional. Apenas ele vale o preço do livro. Em Clases, destaco o capítulo sobre o que Cortázar entendia por música na literatura. Melhor eu recolher os adjetivos, pra não parecer boboca. Aí se entende por que a atmosfera e a fluência de um texto podem ser mais poderosas que o dito conteúdo, o tema explícito, a mera informação, como elas fazem parte do sentido do texto, um sentido mais profundo e misterioso. Talvez seja por elas que é tão prazeroso reler histórias que sabemos de cor. Como ouvir música, não?

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Último Round

Não preciso reler os rounds anteriores para saber que falhei. Tudo o que disse talvez explique por que Cortázar é um bom escritor, ou o que pra mim faz um bom escritor, mas não explica por que eu e muitos leitores temos amor por ele, por que seus textos são dos que despertam afeto.

Pablo Neruda descreveu uma doença pavorosa que ataca as pessoas que nunca leram Cortázar. É isso. Se você não leu Leon Tolstoi, por exemplo, o que acontece? Sim, trata-se de uma grave lacuna intelectual, mas e daí? Eu guardava Guerra e paz para o caso de ser preso um dia*. Cortázar pode não ter a metade da importância de Tolstoi, mas se você não o leu a gente pensa na hora: coitado. É como nunca ter visto o mar ou provado o sabor do vinho. Exagero conscientemente. É que para quem ama Cortázar é assim, algo vital.

Quase no fim, após anos de exílio, esteve na Argentina. Como sempre sem se anunciar, praticamente clandestino. Uma tarde, numa esquina no centro de Buenos Aires, foi reconhecido por uma multidão que vinha em passeata. Na mesma hora mudaram as palavras de ordem. Em coro, a multidão gritou esta frase, intraduzível sem perder a graça:

– Bienvenido, carajo!

As pessoas, antes de continuar a passeata, compraram todos os livros que encontraram numa banca próxima. Cortázar autografou até livros de outros autores.

Me pergunto: que país, que escritor produziria essa cena? Me pergunto: ela vale ou não vale mais que um Nobel? Mas ainda houve uma melhor.

Um pouco antes de morrer, Cortázar estava em Barcelona, andando à noite pelo Bairro Gótico. Havia uma garota, americana, bonita, que tocava violão e cantava meio como Joan Baez. Um grupo de jovens estava ao redor, ouvindo. Cortázar parou, meio afastado, nas sombras. Dali a pouco, um jovem de uns vinte anos se aproximou dele com um bolo na mão e disse: “Julio, pegue um pedaço”. Ele pegou, comeu e disse: “Muito obrigado por ter vindo e me dado o bolo”. O rapaz: “Olhe, eu lhe dei tão pouco comparado com o que você me deu”. Cortázar: “Não diga isso, não diga isso”. Então se abraçaram e o rapaz foi embora.

* Como a cana demorava, acabei lendo. Mas pulei horrores. Não sei se o releria mesmo preso.

CORTAZAR - JAZZ - LITERATURA.ORG

Uma Morta-Viva invade O Vermelho e o Negro, de Stendhal

Uma Morta-Viva invade O Vermelho e o Negro, de Stendhal

Meu genro, Vicente Cortese, é um baita leitor; também é um baita ouvinte de música, mas essa é outra história. Ele me mandou um excerto de uma tradução da Cosac & Naify de O Vermelho e Negro de Stendhal. Nela, uma mulher perde literalmente a cabeça e não morre. Para quem não sabe, o romance é um marco da literatura universal e não inclui mortos-vivos.

Foto: Vicente Cortese
Foto: Vicente Cortese

Mas nosso leitor, o escritor e tradutor Ernani Ssó, nos traz o original e…

Désespérée de ce qu’elle croyait deviner, et voyant que les sages avis devenaient odieux à une femme qui, à la lettre, avait perdu la tête, elle quitta Vergy sans donner une explication qu’on se garda de lui demander.

Ô, Stendhal, te liga!

Na escuridão, amanhã, de Rogério Pereira

Na escuridão, amanhã, de Rogério Pereira

na escuridao amanha

Escrevem-se poucos grandes livros com o propósito de escrever uma obra-prima. Em compensação, com um propósito circunstancial…

BIOY CASARES, citado por Ernani Ssó em sua crônica de ontem no Sul21

Na escuridão, amanhã (Cosac & Naify, 125 páginas) é um livro ambicioso, que deve ficar ao lado da melhor literatura nacional dos últimos anos. É um romance que, sob uma linguagem poética, trata da vida e da morte de uma família que sai do campo para a cidade grande. A narrativa carrega uma quase insuportável verossimilhança para contar a tristemente exemplar história de uma degradação familiar. Não é daqueles romances que narram o que não são, é do gênero que diz o que é, um texto onde há um pai terrível e odiado, abusador e animal, que mantém sob seu tacão uma mulher de religiosidade simples e seus três filhos, dois meninos e uma menina. O desajuste é geral. Desajuste e pobreza no campo; desajuste, pobreza e repetição de padrões de comportamento na cidade. Seu texto é luxuoso e sufocante.

O livro de Pereira tem seu parentesco mais próximo com Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, mas o clima — atenção, eu escrevi “o clima” — parece mais o de Os Desgarrados, de John Huston. A narrativa está estabelecida em dois planos: o primeiro são cartas enviadas ao pai pelos filhos. A maioria delas é de um dos filhos homens que está numa guerra, presumivelmente expatriado, que reflete com enorme ressentimento o passado familiar. O outro plano é direto, apesar de caminhar no tempo. Mas há outros flashes. Quem cala é o pai, o qual mantém o silêncio de um deus impiedoso do velho testamento. A mãe, personagem tão fundamental quanto o pai, também aparece pouco, embotada que fica pela religião e incompreensão. Há também a pequena e mirrada filha, ainda mais vítima.

A história é irremediável como alguns filmes de Bergman e romances de Faulkner, mas vou me negar a avançar nos spoilers.

Rogério Pereira é o criador e editor do jornal literário mensal Rascunho o qual existe desde o ano 2000. Está no número 165, algo inédito para os efêmeros padrões nacionais. O romance Na escuridão, amanhã é seu primeiro livro de ficção. E vale muito a leitura.

Chope e livros e riscos descontrolados

Após a entrevista que fiz com Ernani Ssó sobre sua tradução do Quixote, realizada sob os chopes do aprazibilíssimo Tuim, pegamos a mania de nos encontrarmos no mesmo local para falar de literatura e qualquer coisa. Não precisamos mais de pretextos, porém desta vez ele me pediu que, amanhã, eu levasse comigo meu exemplar de O mestre e Margarida, para lhe emprestar. Não há problema, costumo emprestar livros. Ou melhor, há um problema sim. É que, cada vez mais, faço anotações a caneta nos livros e não gosto que os outros as leiam, por serem feitas ao ritmo de meus imbecis pensamentos pessoais durante a leitura.

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O engenhoso tradutor e sua longa batalha com Cervantes e o Quixote

Publicado em 21 de outubro de 2012 no Sul21

Quando adolescente, Ssó tentou ler Dom Quixote no original. Não entendeu muita coisa | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

No final de novembro, a Penguin-Companhia das Letras publicará uma nova tradução de Dom Quixote. Os dois volumes — o primeiro publicado originalmente em 1605 e o segundo em 1615 — virão dentro de uma caixa da coleção Penguin Classics. Na última terça-feira, o Sul21 entrevistou o tradutor Ernani Ssó. O ambiente foi bastante estimulante à conversa: o Bar Tuim. Foram duas horas e quinze minutos de literatura, chopes e bolinhos de bacalhau que procuramos condensar no texto a seguir, deixando de lado a parte gastronômica, mas não o chope, presente na conversa cada vez mais franca e informativa. Mas antes apresentemos o tradutor do Quixote.

Ernani Ssó é um homem que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Ainda hoje, ele duvida que o Brasil seja um país tropical. Começou a cursar Jornalismo em 1973, em Porto Alegre, porque queria ser escritor. No ano seguinte, desistiu pelo mesmo motivo. Daí por diante se dedicou à literatura. Tem livros para adultos, muitas traduções, mas gosta mais de seus livros para crianças, porque são mais difíceis de escrever.

Eventualmente escreve resenhas e crônicas de humor para a imprensa. Mantém uma coluna semanal na revista eletrônica Coletiva.net e no Sul21, onde comenta literatura e política. Trabalha também, como já dissemos, como tradutor de espanhol. São mais de  cinquenta livros traduzidos. Dentre eles, um que ama especialmente: Dom Quixote de la Mancha (ou El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), de Miguel de Cervantes.

Leia mais: O Dom Quixote que viveu em Miguel de Cervantes.

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Sul21 — Como surgiu a ideia de traduzir o Dom Quixote?

Ernani Ssó — Eu tenho uma história antiga com Cervantes. Antes de fazer vestibular, quando eu tinha 17 anos, havia uma livraria no centro de Porto Alegre chamada Duca. Isso em 1972. Eu sou de 53. Um dia, encontrei lá uma edição de bolso do Quixote, de capa dura e papel bem fininho, com letrinha microscópica. Eu não sabia nada de espanhol, mas resolvi encarar, porque tinha ouvido dizer que o Quixote era um idealista, um cara que tentava viver sonhos impossíveis. Esse cara era eu, não? Com o livro debaixo do braço, fui comprar um dicionário de bolso e um manual de espanhol. Estudei por umas duas semanas e fui ler o Cervantes. Empaquei no primeiro parágrafo, meio apavorado. Não entendi praticamente nada. Voltei pro manual, comecei a ler outras coisas, descobri Borges, Cortázar e os demais latinos. De tanto em tanto, voltava ao cavaleiro. Então, lá por 1974-75, saiu o Quixote na tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo. O Ivan Lessa disse no Pasquim: “Se você vai ler só mais um romance na vida, leia esse”. Obedeci na hora, comprei a tradução, mas me decepcionei: achei tudo muito chato. Pensei que Cervantes não podia ser aquilo. Depois, li as traduções brasileiras, mas não consegui me acertar inteiramente com nenhuma delas. Talvez seja birra minha, mas sentia que o livro perdia muito de sua vida e humor. Daí minha vontade de tentar recuperá-lo até onde fosse possível.

Os romances de cavalaria levavam as aventuras a um nível tão escabelado que ela perderam totalmente o pé na realidade. Se não tem mais nada humano em que tu possas te espelhar, te emocionar, curtir, tu deixas de acreditar | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Na tradução, tu usas que tipo de linguagem?

Ernani Ssó – O espanhol de Cervantes tem mais de quatrocentos anos. Nem os próprios espanhóis entendem direito, tanto que as edições atuais vêm com dezenas e dezenas de notas. Se eu traduzo pra um português também de quatrocentos anos, estamos fritos. Só os especialistas poderiam ler. Mas esses não precisam de tradução. Se você manja de português arcaico, não terá grandes dificuldades com o espanhol daquela época. Ao mesmo tempo você não pode modernizar a ferro e fogo. Sabe, botar o Sancho falando como um personagem do Nelson Rodrigues, por exemplo. O que fiz foi preservar um ar antigo. Em vez de usar “alapar”, por exemplo, usei esconder, palavra na verdade mais antiga mas perfeitamente legível hoje. Eu tenho mania de legibilidade. Mas é claro que pra ler o Quixote o leitor tem de ter alguma cancha. Vai quebrar a cara se foi alfabetizado o mês passado.

Sul21 — O Sancho Pança é um personagem especialmente difícil de traduzir, imagino, porque ele fala através de adágios populares.

Ernani Ssó — Cara, as horas que eu gastei pesquisando! Alguns ditados não fazem sentido em português, outros perdem as rimas, perdem o ritmo, perdem a graça. Você sabe, os ditados são frases muito medidas, telegráficas. São dribles, não? Muitas vezes encontrei correspondentes em português. Mas às vezes tive até de inventar ou refazer. Sem internet eu não teria conseguido, provavelmente.

Sul21 — Tu sempre tiveste uma relação importante com o livro, mas como surgiu a encomenda da tradução?

Ernani Ssó — Sim, já era um caso. Eu pegava o original pra ler e, ao invés de curtir a história, ficava pensando “como se diz isso em português?”. Isso me acontece com outros livros, mas não o tempo todo. Deformação profissional é fogo. Mas antes de traduzir qualquer livro eu já fazia isso com Cervantes. Nos anos 90, me encorajei e comecei a traduzir o Quixote. Fiz umas duzentas páginas que ficaram no fundo da gaveta, porque nenhuma editora se interessou.

Sul21 – Quanto tempo levaste pra traduzir os dois volumes?

Ernani Ssó – Uns dois anos. Nesse meio tempo se comemorou o quarto centenário do Quixote, saiu a tradução do Sérgio Molina pra 34, a do Carlos Nougué pra Record, dizem que o Eugênio Amado reviu a que tinha feito pra Itatiaia. Aí sim é que ninguém mais me deu bola. Até que por agosto do ano retrasado, eu liguei para a Companhia das Letras e eles toparam, pra sair nessa coleção dos clássicos da Penguin-Companhia.

Sul21 — Vamos falar do romance em si. É um romance que Cervantes escreve contra alguma coisa. A motivação dele foi a raiva? É o fato de não gostar dos romances de cavalaria? Ou pelo menos fingir não gostar?

Ernani Ssó — Eu acho que ele se sentiu traído pelos romances de cavalaria. Esses romances são fantasias tão desatadas que é impossível a gente acreditar. Um cavaleiro contra um milhão de soldados, pode? Mais alguns gigantes de quebra. Não é mais humano.  Se não tem nada humano em que tu possas te reconhecer, não há como se emocionar, curtir. É puro vazio. É como num filme americano: quem consegue acreditar numa cena em que aparece um cara agarrado só pelas unhas no precipício e um bandido pisando nos dedos dele? Você sente o perigo? Acredita que o mocinho vai morrer? Só um imbecil se deixa levar por isso. Cervantes gostava de aventura, mas conhecia a realidade bem demais, esteve na guerra, foi preso, vivia na pobreza.

Sul21 — O Quixote enxerga um castelo em qualquer estalagem, uma linda donzela em qualquer prostituta. Vai lá, quebra a cara. E segue.

Ernani Ssó – Quando a força bruta da realidade pega o coitado, ele tem uma saída ótima: isso não é a realidade, são os magos que encenaram tudo. Essa reação é muito humana. A gente vê essa saída todo dia, em políticos, em religiosos, em casais apaixonados.

Esse troço vem de Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — E Cervantes não desiste do humor.

Ernani Ssó – Não. Quando a coisa periga, ou pra solenidade, ou pro sentimentalismo, pode esperar: lá vem bala. Acho que quando o Cervantes começou a escrever, ele não tinha noção do que viria a ser o livro. Essa edição da Penguin-Companhia tem uma introdução do John Rutherford. Ele é o tradutor da versão inglesa da Penguin. Ele diz que o Cervantes sentou para escrever um romance popular. Ele não pensou que aquilo ia ser uma obra-prima. Acho que à medida que o troço foi crescendo, ele foi se dando conta da importância do livro, mas tenho minhas dúvidas de que tenha tido consciência plena do que fez. Agora, esse negócio do humor é gozado, digamos. Teve gente que reclamou para mim porque eu escrevi que o Quixote é um dos grandes livros de humor. Disseram que eu estaria diminuindo o livro ao dizer isso. É uma visão tão estreita do humor, é achar que humor é o Renato Aragão e nada mais. Se é um grande livro de humor, é porque tem outras coisas lá também. Tire o humor de Cervantes, de Borges, de Cortázar, por exemplo. Sobra um terço e olhe lá.

Sul21 — O humor é algo muito nobre, impossível viver sem.

Ernani Ssó — Mas essa birra vem desde Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? Eu prefiro a tragicomédia, que tem os dois lados. Os grandes momentos do Cervantes são quando ele consegue a tragicomédia.

Sul21 — É um livro muito humano. É uma dupla visão, tu vês as duas coisas: o que o Quixote imagina e o que é real, a loucura e o idealismo sobre um fundo de melancolia. Hoje, quando estava me preparando para falar contigo, li um artigo dizendo que a primeira parte do livro é muito diferente da segunda. Que a primeira tinha a forma mais livre, que era melhor. Minha lembrança é a de que eu gostei muito mais da segunda, mas não me lembro por quê…

Ernani Ssó — Naquele livro dos diálogos do Borges com o Sábato, compilados pelo Orlando Barone, os dois acham que a segunda parte é melhor. Na primeira, o Cervantes tentava agradar os acadêmicos e na segunda ele caga pra academia e escreve muito mais solto. Acho que a primeira parte tem coisas chatíssimas como aquelas inserções de novelas.

Sul21 — Essas inserções são chatas, não têm a ver com o romance.

Ernani Ssó – Sim, sim, o primeiro volume tem essas inserções chatas, mas quase todas as grandes cenas pelas quais o Quixote é lembrado, como a do moinho e a libertação dos prisioneiros das galés, estão lá. No segundo volume o texto é ainda melhor, mais natural. Existem histórias paralelas, mas são de personagens que estão envolvidos com o Quixote, histórias em que ele participa. Então é mais harmônico, é mais pensado, mais bem estruturado. Numa conta geral, também gosto mais do segundo.

Sul21 — No início tivemos os gregos, os romanos e depois houve um período em que não tivemos grandes livros. O Quixote é o fundador do romance?

Ernani Ssó — Acho que é. Pelo menos do romance ocidental. E o incrível é que, brincando brincando, Cervantes fez com mais talento e mais graça o que muitos pós-modernos tentaram fazer, e ainda tentam, coitados. Na introdução, o Rutheford até dá uma gozada nos caras.

Sul21 — Como são as notas de rodapé da tua tradução?

Ernani Ssó – Reduzi ao mínimo possível. Mas tem algumas que se referem a dados históricos ou mitológicos de que não têm como escapar. Minhas mesmo são poucas e rápidas. São sobre trechos problemáticos da tradução em que apostei mais na audácia.

Sul21 — O que há de Cervantes no livro? Ele era esse louco que enfrentava moinhos e pensava loucuras?

Ernani Ssó – Quer dizer, até onde Cervantes era quixotesco?

Sul21 — Sim.

Ernani Ssó — É aquilo que a gente estava comentando, acho que ele era um romântico, gostava de aventura, queria que o mundo fosse mais interessante, mais bonito, menos tedioso. Acho que o livro dele não é só uma vingança aos romances de cavalaria, ou aos leitores que se babavam com eles. Acredito que é uma desilusão dele com a Espanha, com o heroísmo espanhol. Você vê ele mostrando a miséria dos soldados, quebrando a cara, ficando do lado dos mouros que estão sendo expulsos da Espanha. O próprio enredo desmente os elogios que alguns personagens fazem ao Rei e à Igreja. Acho que existe uma desilusão do próprio Cervantes com a realidade espanhola. Ele era um cara talentoso, mas se ralou a vida toda, foi ferido na guerra, foi preso, viu muitos escritores medíocres faturando.

O próprio enredo vai desmentindo os elogios ao Rei e à Igreja que há nas introduções | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Ele tem pouca coisa além do Quixote.

Ernani Ssó — Sim, pouca. Tem a Galateia. São coisas que foram escritas antes, mas publicadas depois de Dom Quixote. Fora Galateia, o resto foi publicado na época segundo volume do Quixote. Ele ficou famoso e resolveu despachar tudo. Tem as Novelas Exemplares — mais satíricas que exemplares, como ele mesmo admitiu —, peças de teatro, muitas comédias. Mas só o Quixote emplacou. Ele deu azar até aí, morreu logo depois de publicar o segundo volume.

Sul21 — Temos um contraste entre o Quixote e o Sancho Pança, que é um cara bem realista. Começa burro e vira  gênio.

Ernani Ssó — Sim. Ele entra no primeiro volume como um cara estúpido, a estupidez em pessoa. E no segundo, ele vai ficando inteligente, vai mudando, parece que o Cervantes mudou de ideia. Há essas incongruências no livro. Ele foi improvisando à medida que escrevia. Nesse sentido, é espantoso que o segundo volume tenha uma história mais fechada. Mas o interessante é que Cervantes se orgulhava mais de ter criado Sancho que Quixote. Sancho é muito menos crível que Quixote. Veja o que é a opinião do próprio autor sobre sua obra.

Sul21 — A Virginia Woolf disse que Dom Quixote foi o único livro que a fazia chorar, que a emocionava muito. Muitos escritores enormes escreveram a respeito do livro. Nabokov tem uma belíssima série de palestras sobre o Quixote. Por que tu achas que ele impacta tanto?

Ernani Ssó — Até Freud se deu ao trabalho de aprender espanhol para ler no original. Acho que você pode não acreditar muito nas aventuras do Quixote e do Sancho, mas você acredita nos personagens, se sente amigo deles. Na verdade todos nós somos um pouco o Quixote. Pelo menos eu sou: não me conformo com a realidade. É uma merda, ela não acompanha a minha imaginação e as minhas emoções. Mas a gente acaba se conformando. Tornar-se adulto é mais ou menos isso, não? Mas esse cerne irracional continua com a gente até o cemitério. Daí, nos identificamos profundamente com o Quixote. A gente ri do coitado como se se vingasse de nossa própria ingenuidade. É como quando olhamos fotos antigas nossas: veja como eu era ridículo de calça boca de sino. Rimos e ao mesmo tempo secamos as lágrimas.

Sul21 — Tu falaste sobre os personagens. O livro é muito centrado em dois personagens com os quais a gente se identifica. A Dulcineia aparece muito pouco.

Ernani Ssó — Falando nas incongruências, quando o Quixote arruma um nome para o cavalo e para ele mesmo, no começo da aventura, logo pensa que tem que ter uma amada. Aí ele se lembra de uma camponesa por quem tinha uma quedinha. O Sancho conhecia ela e o pai, e faz piadas, porque em vez de uma princesa linda é uma fulana que anda metida com os rapazes da aldeia e tal. Isso tudo nos primeiros capítulos. À medida que o livro anda, ninguém mais conhece ela. Quando o Sancho tem que levar uma carta, ele não sabe onde ou a quem entregar. O Cervantes esqueceu totalmente. No segundo volume, cadê a Dulcineia? Para eles ela não existe, é uma invenção. O Cervantes esqueceu totalmente, acho que nunca releu o próprio romance.

Sul21 — Vamos voltar à questão de traduzir humor. Acho isso muito difícil, porém, no caso do Quixote, fundamental.

Ernani Ssó – É um inferno. A graça de uma piada às vezes depende de uma palavra, ou da colocação dessa palavra na frase. Se na tradução você erra na escolha da palavra, ou no lugar onde ela entra, babaus. Há ainda a agilidade, a formulação da frase, não? Veja a tirada do Nelson Rodrigues. Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Que graça tem se eu digo só as mulheres normais gostam de apanhar? Talvez não seja necessário você ser humorista pra traduzir humor, mas certamente ajuda. Depois, no caso do Cervantes, há jogos de palavras, há piadas em cima de referências culturais. Se não se recriar tudo isso, a coisa fica insípida, achatada. Ou nem faz sentido nenhum.

Um dos problemas é você traduzir humor. Se você não for ágil o humor te quebra. Outro é que muitas piadas são jogos de palavras, se tu não recriares, terás que explicar a piada na nota de rodapé – o que, cá entre nós, não tem graça nenhuma | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu tens uma ligação com o humor.

Ernani Ssó – Sim, eu queria ser humorista quando era adolescente. Não consegui. Tive de me contentar em ser um escritor com senso de humor.

Sul21 — Onde tu localiza o tempo do teu texto?

Ernani Ssó — Eu peguei o Houaiss, que tem datação das palavras, e tomei uma atitude radical e totalmente arbitrária: até 1900 é antigo, o que veio depois é moderno. Não usei palavras que apareceram na imprensa depois de 1900. Mas a gente não devia levar essas datações muito a sério. As palavras circulam muito antes de aparecer impressas. Veja só. Cervantes usa normalmente a palavra “voleo”. Segundo o Houaiss, “voleio” só entra no português escrito no século XX. Enfim, tratei de usar palavras anteriores a 1900, mas que fossem compreensíveis hoje. E deixei de lado palavras antigas que soam moderninhas, como “esperto”, que é do século XIII. Esperto tem todo um peso hoje que detonaria com o sentido das frases de Cervantes. Outro problema são as palavras que se tornaram ridículas. Cervantes não usa “porquero” pra ser engraçado. Mas porqueiro ou, pior, porcariço são palavras cômicas, não? Chamam muita atenção. Eu preferi um termo mais neutro, guardador de porcos, pra me manter no clima do original. São por coisas assim que não se pode ser muito literal. Veja, Cervantes despacha um adjetivo ao correr da pena, mas eu ficava queimando a mufa por uma semana ou mais até achar um correspondente à altura. Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra. Eu tenho um saco de filó, como se diz, e tive a sorte de a editora não ficar me apressando. O pessoal só queria o trabalho direito. É incrível, não? No Brasil parece um luxo agir com profissionalismo.

Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra | Foto: Ramiro Furquim/Sul21